Estudante de jornalismo da faculdade paulista ESPM, a Marina Leite chegou a mim na semana passada querendo enviar algumas perguntas para um seu trabalho sobre cinema. Mesmo apertado de tempo por conta das demandas profissionais, tirei um final de noite para tentar responder suas três indagações. Seja por poder colaborar com a formação de uma colega de ofício, seja porque suas perguntas eram genéricas, permitindo mais liberdade às respostas, seja porque deixar de falar da política brasileira e campista, para poder falar de cinema, é viver o slogan de um antigo comercial do cigarro Carlton: “um raro prazer”. Por estes motivos, seguem abaixo neste domingo as perguntas da Marina, com as respostas que pude lhe dar.
Marina Leite – O cinema pode atuar na construção e preservação da memória de uma sociedade? De que maneira isso ocorre?
Aluysio Abreu Barbosa – Creio que sim. Na preservação, na releitura e revisita de uma época, tanto em documentário, quanto em ficção, seja esta ou não baseada em fatos reais. Usemos como exemplo um fato histórico do peso da II Guerra Mundial, que moldou o mundo em que ainda vivemos. Você pode ter uma compreensão particular, mas essencial, do fenômeno do nazismo através do documentário “Arquitetura da Destruição” (1989), de Peter Cohen. Que mostra o regime político fundado por um artista plástico frustrado, Adolf Hitler, também como uma espécie de reação estética ao modernismo nas artes, em tentativa deformada de retomada dos valores clássicos da Esparta, da Atenas e da Roma da Antiguidade. Em busca de uma “pureza” idílica do passado, baseada também na mitologia germânica das óperas de Richard Wagner. Você pode reforçar essa mesmo compreensão vendo “A Queda! As Últimas Horas de Hitler” (2004), de Oliver Hirschbiegel. Mesmo baseado nos relatos de Traudl Junge, secretária particular de Hitler, e nos livros do historiador Joachim Fest, considerado o biógrafo definitivo do líder nazista, é uma ficção. Mas sem a qual talvez não se entenda o radicalismo político genocida e, em seu ocaso, literalmente suicida, em que mergulharam de cabeça pessoas inteligentes e cultas de um povo que derrubou o Império Romano, reformou o cristianismo, criou a música como a conhecemos e deu ao mundo a maior escola de filosofia desde os gregos antigos. Guardadas as proporções devidas, serve, inclusive, para compreender o que ocorre hoje no Brasil com o bolsonarismo. Você pode reforçar essa impressão a partir de um filme de ficção sem nenhum compromisso com os fatos históricos, recriando-os sem spoiler, como em “Bastardos Inglórios” (2009), de Quentin Tarantino. Ou pode ter o mesmo evento apenas como pano de fundo para um triângulo amoroso. E gerar um clássico de romance como “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz, filmado em plena II Guerra, quando nela a Alemanha ainda levava a melhor. E compreender como um evento daquela monta pode alterar radicalmente a vida das pessoas, em seus aspectos mais pessoais e cotidianos. Ou, maratonar uma série de documentário no streaming para se ter uma compreensão mais global do episódio. Como a que é oferecida a qualquer leigo ao assistir a “Grandes Momentos da Segunda Guerra em Cores” (2019), sem direção creditada, da Netflix. E com ela perceber que, se o nazifascismo foi realmente um dos raros momentos da história em que tivemos o mal encarnado, nem por isso quem o combateu era o “bem”, por ser também capaz de atos da crueldade mais extrema. Da mesma
maneira que não dá para negar que documentários como “Triunfo da Vontade” (1935) e “Olympia” (1938), ambos de Leni Riefenstahl, foram feitos para celebrar o nazismo em sua ascensão. Apesar do último, primeiro documentário feito de uma Olimpíada, a de Berlim em 1936, também glorificar um negro dos EUA, grande herói do atletismo naqueles Jogos: Jesse Owens. Mas, dentro da proposta estética detalhada em “Arquitetura da Destruição”, caberia a uma mulher, Riefenstahl, criar em “Triunfo da Vontade” e “Olympia” técnicas de filmagem e edição que influenciaram o cinema do mundo.
Marina – Diante do impacto social do cinema, qual postura profissionais dessa área devem tomar ao produzir filmes que retratam momentos importantes da História da humanidade?
Aluysio – Acho que parte do que pergunta está na minha resposta anterior. Se tivesse que complementá-la, o faria com o que disse em entrevista a James Lipton o ator e diretor Sean Penn, no programa de TV “Inside The Actors Studio”, nos anos 1990: “Entretenimento, para mim, é uma garrafa de whisky, duas prostitutas e um quarto de motel. Cinema é contar histórias”. Independe de todos terem a sua própria ideia de entretenimento. Se a de Penn pode hoje parecer misógina ao politicamente correto que há pelo menos duas décadas tem em Hollywood um bastião, a segunda parte da resposta dele me parece a chave à sua pergunta. A postura dos profissionais do cinema, mais que o impacto social da obra, seja esta documentário ou ficção, nunca pode perder de vista sua função primeva: contar histórias.
Marina – Você acha que a experiência de ver um filme no ambiente do cinema é a mesma que no ambiente doméstico? As plataformas de streaming poderão substituir essa experiência definitivamente?
Aluysio – Na assertiva imortalizada pelo cinema brasileiro: “nunca serão!”. Inegável que mais pessoas passaram a conhecer o capitão Nascimento imortalizado por Wagner Moura em “Tropa de Elite” (2007), de José Padilha, através do streaming. E que, desde que o sensibilíssimo “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón, primeiro longa de ficção feito para streaming e indicado ao Oscar de melhor filme em 2019, a plataforma entrou “em outro patamar” — no dito do atacante do Flamengo Bruno Henrique, que também virou lugar-comum no repertório tupiniquim. No entanto, parece um tanto esquizofrênico assistir a filmes em telas de celular. Como se ter ideia da direção de fotografia através delas? De certa forma, isso banaliza, vulgariza o cinema, nivelando-o por baixo, tanto quanto as redes sociais fizeram com a comunicação social. Mestre britânico da sétima arte, diretor de clássicos como “Lawrence da Arábia” (1962) e “A Filha de Ryan” (1970), lembro que David Lean, além de preferir filmar no formato mais amplo do cinemascope, dizia detestar legendas porque estas tiravam a atenção do espectador do todo da tela. “Cinema é imagem”, sentenciava ele. Pode ser um anacronismo geracional, mas a solidão voyeur diante da tela grande, no escuro das salas de cinema, me parece insubstituível. Sem ela, perdemos também a dimensão coletiva e humana dos filmes. Que só se dá quando descobrimos se riem, choram, suspiram, dormem, se assustam, afundam nas poltronas ou delas levantam para ir embora os nossos semelhantes, dividindo o mesmo espaço escuro, expostos ao mesmo tempo à mesma obra de arte na forma de luz. O cinema são as histórias da tribo contadas à noite ao redor da fogueira.