Filmes sobre pregadores religiosos não são exatamente uma novidade. “As Sandálias do Pescador” (1968), de Michael Anderson, traz o grande Anthony Quinn como um Papa fictício. É parcialmente inspirado no italiano João XXIII e seu revolucionário Concílio Vaticano II. Mas, pela origem do personagem no Leste Europeu, parece também antever a realidade do polonês João Paulo II. Que só seria eleito Papa 10 anos após o lançamento do filme. Para ter papel protagonista na queda do “socialismo real” na Europa.
Filme mais recente e abertamente inspirado nos dois últimos ocupantes do Trono de Pedro, “Dois Papas” (2019) é dirigido pelo brasileiro Fernando “Cidade de Deus” Meirelles. Na transição entre o alemão Bento XVI e o argentino Francisco, traz Anthony Hopkins como o primeiro e Jonathan Price, como seu sucessor. Há ficção no roteiro adaptado de Anthony McCarten para contar fatos reais, com sucesso razoável de público e crítica. Ainda que, indicados ao Oscar de 2020 em categorias diferentes, Hopkins, Price e McCarten não tenham levado a estatueta dourada de Hollywood por seus trabalhos.
Ainda que seja mais sobre a ambição do homem na Terra, “Sangue Negro” (2007), de Paul Thomas Anderson, é considerado por muita gente boa uma obra-prima do cinema no século 21. Muito por conta da atuação visceral de Daniel Day-Lewis, como amoral e incansável prospector de petróleo. Que dialoga em nível mais alto com o pastor pentecostal, de moral igualmente duvidosa, vivido por Paul Dano. Entre algumas cenas antológicas do filme, está a que Day-Lewis usa a ambição material de Dano para obrigá-lo a repetir: “Eu sou um falso profeta e Deus é uma superstição”.
Instiga imaginar o que personagens como Jair Bolsonaro, Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares, ou Valdemiro Santiago diriam na mesma cena…
Sobre denominações protestantes menos fetichistas, há dois filmes talvez pouco conhecidos sobre pregadores religiosos que merecem a conferência. E ambos estão disponíveis pelo streaming.
Um deles, no Prime Vídeo, da Amazon, é “The Quarry” (2020). Dirigido e roteirizado por Scott Teems, traz como protagonistas dois atores quase sempre relegados a papéis coadjuvantes, geralmente como “vilões”. Shea Whigham é um andarilho que assume o lugar de um pastor itinerante numa igrejinha nos cafundós do Texas, frequentada por fiéis mexicanos e pobres. Michael Shannon é o xerife da cidade, que começa a desconfiar do novo “homem de Deus”. Seus passados e motivos vão sendo revelados sem “milagres”, no correr do thriller. Até que a última parte do quebra-cabeças se encaixa aguda na sentença: “Não sou eu quem pode perdoar!”
O outro filme, disponível na Netflix, é “Fé Corrompida” (2017), escrito e dirigido pelo veterano Paul Schrader. Apenas como roteirista, ele traz no currículo clássicos como “Taxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980) e “A Última Tentação de Cristo” (1988), todos dirigidos pelo mestre Martin Scorsese. Também como diretor, Schrader assinou obras de peso, como “Gigolô Americano” (1980), “Mishima — Uma Vida em Quatro Capítulos” (1985) e “Temporada de Caça” (1998), que rendeu o único Oscar da longeva e brilhante carreira do ator James Coburn.
Em “Fé Corrompida”, Ethan Hawke prova ser mais que um galã envelhecido ao interpretar um ex-capelão militar e pastor encarregado de uma igreja protestante de tradição secular. Ele revela seus próprios conflitos internos ao aconselhar um ambientalista, a pedido da esposa deste, desencantado com os rumos do mundo e a perspectiva de colocar nele um filho. A relação do religioso de meia idade com o jovem casal vai se estreitando. Até desfechos tão fortes quanto, não de todo, inesperados. A catequese vai se dando em via de mão dupla, na busca da resposta à pergunta: “Deus nos perdoará?”
O filme de Scott Teems é uma obra promissora de um diretor e roteirista com a carreira ainda pela frente. O de Paul Schrader, a prova de que nem tudo já ficou para trás. Ambos, encarnados por atores inspirados.
Na vida ou na arte que a imita para ser imitada, Deus só prevalece na vida dos homens pelo amor.
Confira abaixo os trailers de “The Quarry” e de “Fé Corrompida”: