Deus conosco?
“Deus está morto”. Polêmica, a sentença foi proferida em “Assim falou Zaratustra”, livro lançado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche em 1883. De lá para cá, foi tirada de contexto para ser muito mal usada e interpretada, inclusive pela maioria que nunca leu a obra. Que, embora de filosofia, foi escrita em linguagem profética.
Antes de terminar a vida falando com cavalo, Nietzsche retomou a figura do profeta persa Zaratustra. Que viveu no séc. VII a.C. e foi primeiro a fundamentar um sistema de valores e crença baseado nos conceitos de bem e mal. Sendo por isso chamado pelo grego Platão de “o primeiro filósofo”.
Primeiro império do mundo, a Pérsia enraizou seu pensamento na religião judaica e, depois, em suas variações cristã e islâmica. O filósofo alemão reconhecia essa contribuição à humanidade. Mas pregou que só a partir da superação do bem e do mal, o homem se faria super-homem, indivíduo adequado às novas prerrogativas morais da civilização industrial.
Após o 11 de setembro de 2001, quando militantes islâmicos da Al Qaeda sequestraram e atiraram jatos comerciais contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, levando-as abaixo, e o Pentágono, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor escreveu um artigo. Que finalizou em diálogo com o Zaratustra de Nietzsche: “Deus está vivo. E se chama Alá”.
O presidente dos EUA naquele episódio era George W. Bush. Trazia o apoio político dos neopentecostais, outro grupo fundamentalista religioso, ao qual se convertera após anos de uso abusivo de álcool e cocaína. De cara limpa, liderou uma suposta nova Cruzada entre Ocidente e Oriente, cristianismo x islamismo, com as invasões do Iraque e do Afeganistão.
Donald Trump nunca foi religioso. Mas também soube apostar no fundamentalismo cristão dos neopentecostais para fazer deles importantes aliados políticos nos EUA. Em nova roupagem à Cruzada entre Ocidente e Oriente, deixou o fundamentalismo islâmico em segundo plano para eleger como novo “Grande Satã” o capitalismo de Estado ateu da China.
Católico praticante, Joe Biden também assumiu o antagonismo com Pequim. Mas, em moldes laicos, o fez resgatando esta semana os laços entre EUA e Europa na Organização do Atlântico Norte (Otan). Que tinham sido abandonados por Trump, a mando do presidente vitalício da Rússia, Vladimir Putin. Este, popular em seu país pela reaproximação do Kremlin com a Igreja Ortodoxa Russa.
No Brasil, Jair Bolsonaro trocou sua formação católica pelo filão eleitoral neopentecostal, ao ser batizado no rio Jordão, em 2016, pelo Pastor Everaldo. Que foi preso por corrupção em agosto de 2020. No meio do caminho, o batizado se elegeu presidente em 2018, reduzindo Deus a slogan de campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Com apoio da irmã de Nietzsche, o nazismo chegou ao poder pelo voto na Alemanha e, depois, pelas armas na Europa, nos anos 30 e 40 do séc. 20. E corrompeu racialmente o conceito de super-homem do filósofo morto em 1900, creditando-o ao ariano puro. Mesmo que a maioria dos alemães se mantivesse luterana e católica romana.
Eram, portanto, cristãos todos os nazistas que assassinaram em escala industrial 6 milhões de judeus em campos de extermínio durante a II Guerra (1939/1945) na Europa. Sufocando-os com gás e depois queimando seus corpos em fornos. Semelhante ao slogan bolsonarista, os soldados da SS que praticaram o Holocausto levavam escrito nas fivelas do seu cinto um antigo dito prussiano: “Gott mit uns” (“Deus conosco”).
“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” é um conselho do Cristo em três dos quatro Evangelhos: Marcos 12:13-17, Mateus 22:15-22 e Lucas 20:20-26. Que pareceu ser seguido pelo bispo católico auxiliar de Belo Horizonte, Dom Vicente de Paula Ferreira. No último domingo (13), dia santo aos cristãos, ele usou sua conta no Twitter (confira aqui) para clamar a Deus:
— Senhor, tu que fugiste de jegue para o Egito, mostra-nos um meio de nos livrar desse fascista brasileiro. Tu que entraste em Jerusalém montado num jumento, dá-nos a coragem de enfrentar o tirano que mata nossa gente. Livra-nos, Senhor, do desgoverno da morte. Está pesado demais.
Conhecido pelo seu trabalho em Brumadinho, palco de outra tragédia brasileira, Dom Vicente é doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estágio pós-doutoral em Teologia, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). É graduado em Filosofia pela UFJF e em Teologia pela Faje e integrante da Sociedade de Estudos Psicanalíticos de Juiz de Fora.
Poeta maior do nosso Romantismo, não é difícil supor como Castro Alves (1847/1871) seria hoje tratado por escrever: “Quebre-se o cetro do Papa./ Faça-se dele — uma cruz!/ A púrpura sirva ao povo/ P’ra cobrir os ombros nus”. Ou por seus versos ecoados à beira dos 500 mil mortos por Covid no Brasil: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus…”
Publicado originalmente aqui e republicado hoje (19), na Folha da Manhã
Em uma sociedade em que há um exorbitante imbricamento entre religião e política, a democracia tem o seu aspecto de soberania popular maculado, uma vez que é indubitável a ingerência das organizações religiosas sobre os seus adeptos, e isso acaba promovendo um substancial impacto nas eleições, pois o voto deles é impregnado de um teor doutrinário.
Isso acontece, porque, ardilmente trabalhado роr сеrtоѕ ambientes religiosos, o indivíduo perfeito, política e religiosamente, é análogo a uma ovelha estulta que trilha servilmente , por mais desarrazoados que possam ser, todos os comandos que lhe são dados por isso o fiel – vendo como inimigo o que é exógeno ao seu credo – torna-se sectário e ávido por inserir no campo político seguidores da sua doutrina, pois somente assim, segundo ele, haverá salvação para as mazelas que assolam a humanidade.
Por trás disso, existe, lamentavelmente, um arcabouço ideológico que busca solidificar a alienação: passividade diante das injustiças sociais.