Conheci Marcelo Lessa em 1999. Ainda promotor de Itaperuna, ganhara notoriedade por sua característica pessoal e institucional mais marcante: a coragem. Ele dera voz de prisão a um delegado, três agentes e um informante da Polícia Civil, dentro da 141ª DP de São Fidélis, onde os cinco atuavam como milícia. Era noite e Marcelo dava entrevista sobre o ocorrido ao Aloysio Balbi, também correspondente de O Globo, na Folha.
Com curiosidade de conhecer o destemido promotor, embora a matéria não fosse minha, entrei na sala em que ela era feita. Apresentei-me e Marcelo respondeu em tom que me pareceu arrogante, pedindo que eu lhe servisse um copo d’água. Respondi no mesmo tom. Disse que quem servia água já tinha saído do trabalho, mas que ele poderia se servir à vontade, apontando à mesa em que estavam a garrafa d’água e os copos.
A tensão muda marcou aquele nosso primeiro contato. Que, no lugar da antipatia, pareceu reforçar a sensação mútua de reconhecimento. A partir dali e, sobretudo com sua vinda a Campos, onde atuou como promotor até falecer precocemente ontem, aos 51 anos, nossos contatos se tornaram mais constantes. E acabaram por exceder a relação profissional entre fonte e repórter, derivando naturalmente à amizade. A maior prova dela, eu teria em outro episódio.
Era 2002, quando um policial federal de Campos foi preso, por um esquema de adulteração de combustível. O episódio coincidia em tempo com a prisão do empresário campista Antônio Carlos Chebabe, que atuava no ramo de combustíveis. Externei essa estranha coincidência. E, apresentando os fatos, questionei publicamente se alguém que representava o Estado não poderia estar, usando dos poderes do Estado, simplesmente querendo substituir o empresário.
Como resposta, passei a ser seguido, campanado e ameaçado, com um destemor incomum a simples bandidos. Quando aquela tentativa de intimidação derivou também aos carros da Folha e à casa dos meus pais, procurei Marcelo, para saber o que poderia ser feito dentro da lei. Em uma reunião na Faculdade de Direito de Campos (FDC), onde ele lecionava, da qual participou seu então diretor, o procurador de Justiça e nosso amigo comum Levi Quaresma, Marcelo me propôs formalizar a denúncia no Ministério Público. Para que, através dos policiais do Grupo de Apoio à Promotoria (GAP), ele pudesse contracampanar quem me ameaçava sistematicamente, configurando o flagrante.
— Mas o que acontece quando todos se cruzarem? — indaguei.
— Aí todos vão para a Delegacia de Polícia Civil. E ali, formalizado o fato, só terá a temer quem estiver fora da lei! — respondeu Marcelo, falando sem perder a calma. E me conferindo ela.
Por conta de outro fato infeliz, a coisa felizmente acabou sem precisarmos cumprir o planejado pelo promotor. Já havia formalizado minha denúncia também à Associação Nacional de Jornais (ANJ), quando explodiu o caso da execução do jornalista Tim Lopes, por traficantes cariocas. Que catapultou as ameaças que eu vinha sofrendo à mídia nacional. E, como ácaros que fogem à luz, quem tentava me intimidar correu com o rabo entre as pernas de volta à escuridão. Mas nunca esqueci da solidariedade pessoal e institucional de Marcelo.
Sete anos depois, era 2009. Quando numa cheia dos rios Paraíba e Ururaí, e aconselhado por outro amigo comum, o ambientalista e eco-historiador Arthur Soffiati, Marcelo explodiu quatro diques da Lagoa Feia. Houve uma forte reação dos produtores rurais, que foram representadas por sua voz mais articulada, o industrial do açúcar e álcool Gel Coutinho. O tom entre os dois subiu, inclusive nos artigos que ambos escreviam como colaboradores da Folha.
Como Gel era e é também um amigo, intercedi junto aos dois e promovi um encontro entre eles, na Folha, para serenar os ânimos. Ao qual chamei também Levi, que intermediara o encontro de sete anos antes. Embora não houvesse grau de comparação entre as divergências dos dois com as ameaças que eu sofrera, me senti impelido em retribuir a Marcelo o gesto de solidariedade pessoal e institucional. E contribuí para baixar a corda entre dois amigos de grande relevância na comunidade e bem intencionados em suas discordâncias. Além de terem em comum a paixão pelo voo de ultraleve, cujos convites para acompanhá-los sempre recusei.
Mais cinco anos passados, era 2014 quando Marcelo comprou a briga do governo Rosinha Garotinho (hoje, Pros), na queda de braço com as empresas de transporte público de Campos. Ele chegou a prender os seus proprietários e a ir com força policial nas garagens, para colocar os ônibus em circulação, chegando a dirigir um deles. Em noticiário e, sobretudo, em opinião, a Folha questionou os eventuais excessos do promotor no episódio.
No meio daquela refrega de interesse público, Marcelo me ligou. Pensei que queria falar sobre o assunto. Mas ele me disse que queria levar sua filha mais velha, Maria Fernanda, para conhecer a redação e o parque gráfico da Folha. Marcamos o dia, quando acompanhei ele e a filha na visita. Ele não tocou no assunto dos ônibus, tampouco na cobertura do jornal. Ao acompanhá-los, já de noite, até o carro, Marcelo se virou a Maria Fernanda e disse, no tom sempre muito carinhoso com que tratava os filhos:
— Tio Aluysio uma vez disse ao seu pai, minha filha, que ele tinha poucos amigos. Mas que eu era um deles. E tenho muito orgulho disso.
Respondi, sinceramente, que o orgulho era recíproco. E nos despedimos.
Passados mais quatro anos, era março de 2018. Antes da prisão de Lula (PT), da eleição presidencial de Jair Bolsonaro (hoje, sem partido) e das revelações da “Vaza Jato”, o Centro Universitário Fluminense (Uniflu) promoveu no auditório da FDC o debate “Diálogos sobre a operação Lava Jato”. Que teve como como debatedores o juiz Eron Simas, o promotor Victor Queiroz, o advogado e professor Antônio Carlos Santos Pinto e odontólogo Alexandre Buchaul, que tive a responsabilidade de mediar. Foi um sucesso de público, no qual também estava Marcelo, como professor da FDC, assim como do Isecensa.
Ao final do debate, enquanto saíamos da bancada, Marcelo se aproximou de Eron e de mim. E sintetizou sua visão geral sobre a questão, com a contundência que era sua marca:
— Antes reclamavam que só preto e pobre ia preso no Brasil. Agora, quando grandes empresários e políticos são presos, também reclamam? Então, que admitam: a lei no Brasil só serve mesmo para punir preto e pobre!
Nunca chegamos a conversar sobre isso, mas minha impressão, a partir da leitura dos seus artigos na Folha, é que Marcelo foi um dos tantos que aderiram, pelo menos no segundo turno, à onda eleitoral bolsonarista de 2018. O que pode ter sido reforçado com o convite ao ex-juiz federal Sérgio Moro ao ministério da Justiça, antes de sair do governo Bolsonaro atirando. Mas, como democrata e legalista intransigente, o promotor logo passou a criticar com severidade o caráter autoritário do governo federal e os apoiadores fanáticos que lhe restaram, em delírios sadomasoquistas por intervenção militar e reedição do AI-5 no país.
Passados mais dois daquele debate da FDC, era 2020. Quando Marcelo foi figura de proa no enfrentamento de Campos à primeira onda da pandemia da Covid-19. Sem sua ação firme e diligente, certamente, as infecções e mortes de campistas teriam sido ainda mais numerosas naquele período. Até que, em 20 de maio do ano passado, ele deu uma declaração polêmica em entrevista à InterTV. Na qual sugeriu adoção de critérios médicos que privilegiassem o tratamento dos doentes de Covid que cumpriam as regras de proteção individual e de isolamento social, em detrimento de quem as quebrou e questionou.
A reação, capitaneada pelas milícias virtuais do capitão, foi inevitável. E tirou Marcelo da linha de frente do combate à pandemia em Campos e região. À qual voltaria este ano, para fazer companhia à sua colega promotora Maristela Naurath. Sobre o episódio que gerou seu afastamento, conversamos bastante. Como seu amigo há 20 anos, confesso que raras vezes o vi tão abatido. E estava ainda mais, muito mais, quando me comunicou a perda da sua mãe, dona Vera Lúcia Lessa de Lima, aos 70 anos, em 28 de janeiro deste ano, após 40 dias internada no Rio. A causa, como prova de que a vida não é um ato de justiça, foi a Covid.
— Ela estava tão perto da vacina! — lamentou ele, com a voz pesada.
Fiz o que pude como amigo e registrei o fato e sua tremenda injustiça. Ao que ele agradeceu, ainda sem dormir, na madrugada do dia seguinte:
— Seu registro me proporcionou ao longo da tarde e a noite inúmeras mensagens de carinho que muito me confortaram o coração e trouxeram paz à alma. Cheguei há pouco do Rio e vou dormir em paz, graças a você. Obrigado mais uma vez. Eu me senti muito querido e isto foi muito importante, com mensagens de muitos colegas meus, médicos que eu nem tinha muito contato pessoal, colegas seus jornalistas, até os bispos D. Rifan e D. Roberto. Você sabe como isso nos conforta. Nessa hora que você sabe bem como é difícil. Muito obrigado de coração. Vou dormir em paz. Abraço.
Penso que se referiu à morte do meu pai, o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa, que hoje completa exatos nove anos, ao falar do meu conhecimento da dificuldade pela perda que ele estava sentindo. Não sei se creio em vida após a morte. Gostaria sinceramente de acreditar. Na dúvida, consola pensar que, se existir, Marcelo está agora próximo à sua mãe. Após sua partida precoce da esposa Viviane, dos filhos Maria Fernanda e Gabriel, dos amigos, colegas, alunos, ex-alunos e da cidade pela qual esse carioca lutou como poucos campistas.
Sua lacuna, meu amigo, é do tamanho da sua presença. Preenchê-la não será fácil, embora menos difícil com o seu exemplo.
Vá em paz, Marcelo!
Bonito testo Aluysio, campos perde um dos maiores defensores da classe mais pobre e abandonada pelo poder público, que Deus conforte todos seus familiares.