Mulherão da porra! — Merkel e o feminino no mundo

 

Um mulherão da porra!

 

(A Diva Abreu Barbosa)

 

Amanhã, domingo, dia 26, chega ao fim uma era. Que marcou a Europa e o mundo. Angela Merkel deixará o poder na Alemanha, que comandou por 16 anos e quatro mandatos consecutivos como chanceler. Em paralelo tupiniquim, ela conseguiu o que homens públicos marcantes, para o bem e o mal, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), sonham acordados fazer. E, muito dificilmente, conseguirão realizar antes de fecharem os olhos pela última vez.

Apelidada por seus conterrâneos de “Mutti” (“mamãe”), Merkel é, sem sombra de dúvida, a mulher mais importante deste nosso primeiro quarto do século 21 ainda em curso. Sobretudo para a tal Civilização Ocidental, ou greco-romano-judaico-cristã. Onde a correta máxima “o lugar da mulher na sociedade é onde ela quiser estar” tem eco ao sol real. A alemã ocupa a posição de destaque que, no século 20, pertenceu a Magaret Tatcher, ex-primeira-ministra conservadora do Reino Unido. E que, entre os séculos 16 e 17, teve na rainha da Inglaterra Elizabeth I a precursora daquilo hoje chamado de empoderamento feminino.

Malala Yousafzai

A realidade de Merkel é diferente das três civilizações que dividem conosco o mesmo tempo e espaço: a Chinesa, a Indiana e a Islâmica. Ainda que as duas últimas tenham produzido figuras femininas marcantes, como as ex-primeiras-ministras da Índia, Indira Ghandi; e do vizinho islâmico Paquistão, a polêmica Benazir Bhutto. Ou, também paquistanesa, a jovem e brava ativista Malala Yousafzai, que sobreviveu a um tiro no rosto disparado por um radical do Talibã, porque queria que as mulheres tivessem direito a… estudar. O fato é que, infelizmente, elas ainda são a exceção em suas sociedades fundamentalmente patriarcais, não regra.

Sun Chunlan, vice-primeira-ministra da China

Incensada por boa parte da esquerda no mundo, pelo capitalismo de estado com partido único que transformou sua ditadura em maior economia da Terra, a China de Mao Tsé-Tung, Deng Xiaoping e do sucessor de ambos, o hábil presidente Xi Jinping, ainda não teve uma presença feminina no comando do país, desde que deixou de ser um Império em 1912. Ainda que, mais recentemente, mulheres como Wu Yi e Liu Yandong tenham ocupado o cargo de vice-primeira-ministra da China. Que hoje é desempenhado pela colega de ambas, Sun Chunlan.

 

Park Geun-hye e Dilma Rousseff

 

Vizinha chinesa, na Coréia do Sul o exemplo solitário de Park Geun-hye na presidência foi tão exitoso quando o de Dilma Rousseff (PT) no Brasil. Ambas foram alvo de suspeitas de corrupção em seus governos e processo de impeachment. No Japão, entre os 63 nomes que ocuparam o cargo de primeiro-ministro desde 1885, nunca houve uma mulher.

Margaret Tatcher e Ronald Reagan

Esse é o mundo marcado por Merkel. Que não precisou de um par masculino mais poderoso, como foi o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan para a inglesa Tatcher nos 1980. Quando juntos os dois selaram a vitória do capitalismo sobre o “socialismo real” da ex-União Soviética, pondo fim à Guerra Fria. Dissolvido em 1991, aquele país duraria só dois anos após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Dividida desde o fim da II Guerra Mundial (1939/1945), o episódio emblemático em sua capital seria o estopim à reunificação da Alemanha em 1990.

Aquele movimento foi liderado pelo então chanceler da Alemanha Ocidental Helmut Kohl, correligionário democrata-cristão de Merkel, quando esta deixou a pesquisa científica e iniciou na vida pública. Química quântica vinda da Alemanha Oriental comunista, seria eleita deputada da Bundestag (Câmara Baixa alemã), nomeada ministra da Mulher e Juventude, e depois ministra do Meio Ambiente e da Segurança Nuclear de Kohl. Eleita chanceler pela primeira vez em 2005, caberia a ela sedimentar o processo da reunificação germânica.

 

Angela Merkel e Helmut Kohl

 

Nestes últimos 16 anos de Merkel no poder, a Alemanha levou nas costas a União Europeia. Mesmo após a saída desastrada do Reino Unido, com o Brexit de 2016. Sob o comando de uma mulher comedida e republicana, os alemães fizeram, na economia do século 21, o que não conseguiram pelas armas no século 20, sob lideranças masculinas consideradas fortes. Como a do kaiser Guilherme II, na I Guerra Mundial (1914/1918), ou de Adolf Hitler, na II Guerra.

Theresa May

Em seu tempo, a chanceler da Alemanha foi a mulher mais poderosa da Europa e do mundo. Lidou de igual para igual, não raro superando, homens como o presidente russo Vladimir Putin, todos os presidentes franceses de Jacques Chirac a Emannuel Macron, e todos os primeiros-ministros britânicos, de Gordon Brown a Boris Johnson, passando por uma Theresa May derrotada pelo Brexit, que nunca conseguiu espelhar a força da alemã. Sem contar, do outro lado do Atlântico Norte, os presidentes dos EUA, de George W. Bush a Joe Biden. Incluindo Barack Obama, de quem Merkel foi aliada. Mas que enfrentou no episódio dos grampos ilegais de líderes estrangeiros, revelado em 2013 pelo ex-agente da CIA Edward Snowden.

 

Refugiado sírio Aylan Kuri, de 3 anos, afogado em 2015 na praia de Bodrum, na Turquia

 

Reeleita à chancelaria alemã em 2009 e 2013, Merkel enfrentou a crise financeira global de 2008, o colapso econômico da Grécia em 2010, a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2014 e a crise migratória de 2015, com centenas de milhares de pessoas tentando entrar na Europa. Fugiam de guerras, fome, conflitos étnicos, intolerância religiosa, mudanças climáticas e violação dos direitos humanos em seus países de origem, no Oriente Médio e na África.

 

Merkel entre Trump e Putin

 

Líder da União Europeia em todas essas crises, ela planejava se aposentar politicamente em 2017. Mas decidiu se reeleger mais uma vez para enfrentar outro desafio: o populismo de extrema direita de Donald Trump, eleito presidente dos EUA em 2016. Bem como seus satélites europeus na Polônia de Andrzej Duda e na Hungria de Viktor Orbán, isolados por Merkel em seus retrocessos xenófobos e de liberdades individuais. Anteparo europeu a Trump por um lado e a Putin, pelo outro, não foi derrotada por combater em duas frentes, como foi Hitler. E teve papel decisivo também no enfrentamento da Alemanha à pandemia da Covid-19.

 

Merkel e Orbán

 

Mais recentemente, na retirada das tropas alemãs do Afeganistão neste ano, teve autocrítica, uma das suas características mais presentes enquanto política, para admitir que participar da invasão e ocupação do país asiático na coalizão comandada pelos EUA foi um erro. E no último dia 9, finalmente assumiu: “Ja, ich bin Feministin” (“Sim, eu sou uma feminista”). Uma que preferiu marcar sua posição pelas ações pessoais e públicas, mais que com palavras.

 

“Ele não!” na praça do Santíssimo Salvador, como em todo o Brasil, em 29 de setembro de 2018. O resultado? Segundo pesquisa Ibope feita naquele dia e no seguinte, Bolsonaro cresceu só no voto feminino brasileiro de 18% a 24%

 

Camille Paglia

Merkel sempre foi criticada pela ala mais conservadora do seu partido União Democrática Cristã (CDU), por ser, na verdade, uma socialdemocrata — ou “socialista fabiana” nos delírios bolsolavistas. Como sempre foi taxada de conservadora por parte da esquerda internacional. Cega ideologicamente a quem fez mais pela afirmação da mulher do que qualquer “marcha das vadias”, “ele não!” e congêneres, aprisionadas ao seu “lugar de fala” identitário. Que, não raro, alimentam reações como a eleição de Bolsonaro em 2018. E cujas entusiastas são melhor definidas pela feminista e crítica cultural dos EUA Camille Paglia: “mulheres burguesas de classe média que pensam poder transformar o mundo em sua sala de estar”.

 

Cena do documentário “O Homem de Aran” (1934), de Robert Flaherty

 

Por sua vez, desde seu primeiro mandato como chanceler, Merkel jamais aceitou morar na residência oficial de governo. Habita com o marido em um apartamento normal de Berlim. Em tempos de polarização política no mundo, ela se manteve 16 anos “wie ein Fels in der Brandung” (“como uma rocha no mar agitado”), como dizem os alemães. Nunca teve conta no Twitter, mudou seu corte de cabelo ou o guarda-roupa discreto. Pelo que foi e fez, a mulher que amanhã deixará de comandar o povo que derrubou o Império Romano, reformou o cristianismo, inventou a música como a conhecemos e criou a maior escola de filosofia desde os gregos antigos, seria chamada de outra coisa abaixo do Equador: um mulherão da porra!

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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Este post tem 4 comentários

  1. Sandra

    A chanceler não teve nesses 16 anos tempo pra fazer o sucessor?

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Sandra,

      Olaf Scholz, provável sucessor de Merkel, é socialdemocrata, não democrata-cristão como ela. Que, como dito no texto, sempre foi acusada pelos conservadores de seu partido de ser, na verdade, uma socialdemocrata. De qualquer maneira, não fazer seu sucessor é coisa comum da política, cuja alternância de poder é sempre benfazeja à democracia. Fernando Henrique, após oito anos, não fez Serra e passou o poder a Lula. O PT, após 13 anos no poder, assistiu à eleição de Bolsonaro. Como Obama, após oito anos, não elegeu Hillary e teve que passar a Casa Branca a Donald Trump.

      Grato pela chance do diálogo!

      Aluysio

  2. Claudya Ribeiro

    Sem dúvida, uma mulher de caráter sem semelhante comparação. Merkel marcou uma geração social e política nacional e internacional. Suas atitudes permanecem uma inspiração para a sociedade atual.
    Parabéns pelo artigo, Aluysio.
    Abraços,
    Claudya Ribeiro

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Claudya,

      Se há uma campista que conhece bem a realidade da Alemanha, é vc, que mora e trabalha no país há 28 anos. Obrigado pela leitura e a generosidade do retorno.

      Abraço tupiniquim!

      Aluysio

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