Morreu hoje Astor, dogo argentino branco, pirata pela mancha negra em seu olho esquerdo. Foi o cão mais belo, forte, bruto, agressivo com estranhos e carente de carinho com os da casa, que já vi em meus 49 anos de vida. Os últimos sete em sua companhia, em Atafona, onde foi enterrado e sempre morou desde que o escolhi já com uns seis meses, em canil dedicado à raça. Foi um presente da minha mãe, Diva, que ironicamente padece de cinofobia, o medo irracional de cachorros. Superado no ato de amor por seu filho mais velho, que adora cães.
O dogo argentino foi uma raça criada nos anos 1920 por dois irmãos argentinos, médicos e caçadores, da região de Córdoba, província da região dos pampas daquele país. Foi desenvolvida a partir da cruza seletiva entre outras raças, como o bull terrier, o mastim dos pirineus, o boxer, o pointer inglês, o dogue de bordeaux, o buldogue inglês, o dogue alemão (ou dinamarquês), o irish wolfhound e o cão de luta cordobês — esta, já extinta. O dogo foi feito para ser o cão de combate perfeito e para caça de animais de grande porte, como onças e javalis. Para abatê-los, o caçador não leva arma de fogo, mas um ou mais dogos.
Sob minha criação, Astor nunca combateu, nem caçou nada, além dos desafortunados gambás que cruzassem seu caminho no quintal de Atafona. Seu nome foi em homenagem ao músico Astor Piazzolla, gênio do bandoneón e espécie de Tom Jobim argentino. Que mesclou a melodia e o ritmo do tango com a harmonia do jazz, exatamente como seu par brasileiro fez com o samba. Como o cão, Piazzolla também se marcou pelo equilibro entre grande sensibilidade e explosões de fúria, seja na música, ou na vida.
Extremamente dominante com outros cães, mesmo rottweilers machos que, apesar de fortes, nunca lhe foram fisicamente parelhos, Astor era docilíssimo com as pessoas da casa. Mesmo crianças, como meu afilhado Aquiles, hoje com 12 anos, mas que sempre foi respeitado pelo titã canídeo, desde que tinha só 5 anos. O único porém de Astor era, quando ele estava solto e nós de pé, termos o cuidado de ficar com um à frente do outro, em base. Com os dois pés abertos lateralmente e distraído, se corria o risco de ser atirado no chão pelo fortíssimo e explosivo cão, em suas estabanadas demonstrações de afeto.
Sobretudo mais jovem, Astor também tinha um incômodo instinto destruidor. Certa vez, comeu os dois paralamas das rodas traseiras da minha picape. Fui aconselhado a passar pimenta malagueta nas partes externas do carro a que o cão tinha acesso. Fiz, mas o efeito foi ainda pior. Ele pareceu ter gostado do tempero e comeu o parachoque traseiro, de metal, e minha câmera de ré.
Astor também fazia coisas que nunca vi em nenhum outro cão. Comeu e derrubou uma árvore do quintal, demonstrando que sua boca era, literalmente, uma motosserra. E sobre o piso de cimento do quintal, seco há anos, deixou fincados os sulcos das suas garras. Se alguém me contasse isso, diria que era coisa de filme de terror de lobisomem. Mas as marcas das suas garras continuam impressas no piso de concreto, para evidenciar a realidade.
Quando caminhávamos à beira-mar, com guia e enforcador, também ficavam patentes suas diferenças para os rottweilers. Tenho um macho, Bismarck, que mesmo sendo do mesmo tamanho de Astor, só faz força na parte inicial do trajeto. Mesmo se caminhássemos duas horas sob o sol e na areia, Astor continuava fazendo a mesma força, sem jamais baixar a tensão da guia, até voltar à casa. Não se cansava, ao contrário do ombro do seu condutor. Também tinha resistência impressionante à dor física. Uma vez, no veterinário, tomou pontos a seco, sem anestesia, como se nada fosse. Além da força, sua resistência e insensibilidade à dor eram características de um cão feito para matar onças e javalis a dentadas.
Apesar de tudo isso, Astor não foi páreo para o câncer que o matou. Como nenhum de nós é. Forte, grande e longilíneo, sempre disse que ele parecia um Muhammad Ali branco. Seu porte poderoso e altivo evocava a estátua grega de um cachorro. Se dogos argentinos existissem na Grécia Antiga de Fídias, tenho certeza que um hoje estaria imortalizado em mármore em algum museu, como estão os cavalos do escultor.
Escrevo diante da mesa da área externa de Atafona, sentado na mesma cadeira em que, tantas vezes, Astor enfiava sua cabeça poderosa de molosso em meu colo, pedindo carinho. E olho ao lado sua cova recém coberta, ao lado do buldogue francês Zidane, que tinha a mesma idade e também nos deixou precocemente neste ano de tantas perdas, ao Brasil e ao mundo.
Já tive vários cães. Três, os rottweilers Bismarck e Manfred, além do american bully Dempsey, estão nos canis, onde hoje Astor amanheceu morto. Os sobreviventes estão quietos. Acho que sentirão muita falta do macho alfa da matilha, que à noite lhes puxava o coro em uivos de lobo. Entre os cachorros que passaram por minha vida e os que ainda nela estão, tenho certeza que Astor foi um dos que mais me amou. Talvez ao lado dos rottweillers Rommel e Lutero, além do buldogue inglês Moe, todos também falecidos.
Quem ama cães sabe que o amor deles, por quem escolhem como donos, é incondicional. Como o de um fiel a Deus. Mesmo um tão imperfeito como eu. Astor era diferente. Não só fisicamente, como em seu espírito que vive agora em mim, ele foi um cão perfeito.
Para lembrar de você, ouvirei minha música preferida nesta vida, “Adiós Nonino”, obra prima do seu xará que agora ganha ainda mais significado:
Ler textos de pai e filho sobre cães tem me feito chorar, antecipando a dor que, ( se eu não partir primeiro), sentirei quando o meu Dog Dylan for para Canis Majoris ou algo mais próximo de um paraíso só para canídeos, mais humanos do que muitos humanos. Ri no trecho do paralamas com pimenta, e continuei a embebedar os olhos, na mistura de lirismo e amor aos mais leais e fiéis dos seres. Assim como a vida e morte de Zidane narrada por Ícaro cuja cera das asas derreteram ao sol da tristeza, a viagem de Astor, agora um astro, deixa marcas no concreto dos corações amantes de cães, mesmo sem ter conhecido o leviatã dos pampas. E como canta na vitrola Belchior, “ Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um blues”.
Caro Nino,
Só alguém que ama cães, como a palavra, poderia ter a sensibilidade e o lirismo do seu comentário. Pelo qual fraternalmente agradeço.
Abç e obrigado por sua participação!
Aluysio
A relação de amizade entre cães e seus tutores – porque não são objetos para terem donos” – sempre proporcionam belas histórias e relatos de experiências cercadas de carinho mútuo. Parabéns Aluysio, pela vivência com os cães e pelas histórias contadas.
Caro Wellington,
Discordo do politicamente correto pretenso. Mas as nomenclaturas certamente importantam muito menos que o sentimento ancestral que nos liga aos cães. Cuja domesticação pelo homem antecede a agricultura e a vida sedentária.
Abç e grato pela participação!
Aluysio