Gil na ABL — Poesia à poesia para falar com Deus

 

O compositor Gilberto Gil foi eleito ontem (11) para a cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras (ABL). É um passo adiante da tradicional instituição da literatura nacional, que teve como seu primeiro presidente ninguém menos que Machado de Assis, na sinergia com outras formas de arte. Que já tinha sido dado antes, ainda neste mês de novembro, com a eleição da grande atriz Fernanda Montenegro à ABL.

Em termos formais, muito se discute se a poesia musical pode ser considerada, ou não, poesia literária. Chico Buarque já disse que não. E recusou uma indicação à ABL, embora tenha considerável obra literária como prosista, à parte sua lida mais conhecida de compositor. Seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, assim como o poeta Carlos Drummond de Andrade, se comprometeram desde 1941 a nunca integrar a ABL, depois que esta elegeu entres seus membros o então presidente e ditador Getúlio Vargas.

Vários outros grandes escritores brasileiros nunca integraram a ABL. Na prosa literária, é significativa a ausência de mestres como Graciliano Ramos, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Clarice Lispector e Caio Prado Júnior. Na prosa das ciências humanas, além de Sérgio, o polímata Gilberto Freyre também nunca entrou. Na poesia, além de Drummond, são também os casos de Vinícius de Moraes, Cecília Meirelles, Mário Quintana, Dante Milano, Paulo Leminski e Manoel de Barros.

 

Poetas, diplomatas e amigos Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto

 

O exemplo particular de Vinícius é emblemático na suposta contraposição poesia literária x poesia musical. Se é inegável que ele se tornou muito mais conhecido do grande público por sua atividade de compositor, tinha amigos na poesia e na ABL, como o mestre pernambucano João Cabral de Melo Neto, que criticavam a opção do poetinha pela popularidade. Por conta da música, consideravam que o sonetista lírico e de técnica perfeita se dedicou aquém do que deveria à literatura.

Homero, pai de todos os poetas

Aparentemente resolvida agora com a eleição de Gil à ABL, a questão entre poesia musical e poesia literária é muito antiga. Pai de todos os poetas, o grego Homero fundou a literatura ocidental, com suas “Ilíada” e “Odisseia”, sem atentar a qualquer diferença. Com sua lira, o rapsodo ia literalmente cantando de cidade em cidade a tradição oral da Guerra de Tróia e do retorno à Grécia. Do século 8 a.C. de Homero, a poesia permaneceu 2,6 mil anos basicamente inalterada em sua estrutura entre rima (melodia), métrica (harmonia) e ritmo, tripé necessário para versos a serem cantados sobre um fundo musical. Demanda que qualquer repentista ou rapper de hoje, ciente ou não de Homero, conhece tão bem quanto ele.

Walt Whitman, poeta maior dos EUA

Até que em julho de 1855 (d.C.) o estadunidense Walt Whitman lançou seu revolucionário “Folhas da Relva”, livro que foi acrescendo de poemas novos até o final da sua vida. Com eles, o maior poeta dos EUA criou o verso livre, ainda com base em ritmo, mas já liberto da rima e da métrica. Além de semear tudo aquilo que depois chamaríamos modernismo, Whitman abriria, talvez sem dolo, a cisão entre poesia literária e musical.

Antes de Gil na ABL, outro grande compositor, estadunidense como Whitman, Bob Dylan parece ter encerrado essa “diáspora” da poesia pelo mundo, quando foi anunciado em outubro de 2016 como vencedor do Nobel de Literatura. Ao qual já tinham sido indicados, sem levar, os poetas brasileiros Jorge de Lima e Geraldo Melo Mourão, outros que nunca integraram a ABL. O fato é que, obedeça ou não à rima e à métrica ignoradas por muitos versejadores que se julgam poetas, mas sempre atenta ao ritmo, é inegável a influência da poesia sobre a própria poesia, seja ela musical ou literária.

 

Compositor dos EUA, Bob Dylan foi o Nobel de Literatura de 2016

 

Nessa afluência da poesia sobre si mesma, da nascente à foz, segue abaixo um dos tantos exemplos da poesia de Gil, em homenagem ao baiano que se disse agora “imortalmente mortal”. Feito por ele para falar com o Imortal. E que, junto ao mineiro Drummond, ao inglês William Shakespeare, ao paraibano Augusto dos Anjos, e ao cineasta sueco Ingmar Bergman, modestamente influenciou, talvez, o único poema confessional que cheguei a arriscar:

 

Se eu quiser falar com Deus

 

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que ficar a sós

Tenho que apagar a luz

Tenho que calar a voz

Tenho que encontrar a paz

Tenho que folgar os nós

Dos sapatos, da gravata

Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data

Tenho que perder a conta

Tenho que ter mãos vazias

Ter a alma e o corpo nus

 

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que aceitar a dor

Tenho que comer o pão

Que o diabo amassou

Tenho que virar um cão

Tenho que lamber o chão

Dos palácios, dos castelos

Suntuosos do meu sonho

Tenho que me ver tristonho

Tenho que me achar medonho

E apesar de um mal tamanho

Alegrar meu coração

 

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que me aventurar

Tenho que subir aos céus

Sem cordas pra segurar

Tenho que dizer adeus

Dar as costas, caminhar

Decidido, pela estrada

Que ao findar, vai dar em nada

Nada, nada, nada, nada

Nada, nada, nada, nada

Nada, nada, nada, nada

Do que eu pensava encontrar

 

 

“Pois que, eu essência, não habito
Vossa arquitetura imerecida;
Meu Deus e meu conflito”

(carlos drummond de andrade)

 

sétimo selo

 

há os dias em que busco Deus

há aqueles em que topo o dedão

e O chamo de filho da puta

mas guardo na cômoda, por utopia

um pequeno grão de mostarda

e o amor da carpintaria

 

eu, quase sempre distante

como filho criado por outros

numa ilha sem fé no mar

e às vezes, meu Deus, tão seu íntimo

agarrado como uma criança

a quem a salvou de se afogar

 

minha imagem e semelhança?

falho demais para meu Deus

— teria mais em conta um gorila

ou a árvore que o aproxima do céu

 

caminho em sua vida

abençoado por sua sorte

encontro marcado com a morte

delirando chorar como hamlet

na certeza química dos anjos

nas dúvidas de antonius block

 

campos, 11/12/06

 

A Morte e o cavaleiro cruzado Antonious Block, vivido pelo ator Max von Sydow, jogam xadrez em “O Sétimo Selo” (1956), obra prima do cineasta Ingmar Bergman

 

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