Morreu hoje, aos 63 anos, o repórter-fotográfico e colunista social da Folha da Manhã, Esdras Pereira. Parceiro de Aluysio Barbosa na maior dupla repórter/fotógrafo, sem nenhum favor, da centenária história do jornalismo de Campos, os dois emplacariam não só muitas manchetes no extinto jornal A Notícia e na Folha da Manhã. Mas também no Jornal do Brasil nos anos 1970 e 1980, quando o diário carioca superava O Globo em conceito e vendagem.
Talvez auge do trabalho de Aluysio e Esdras, quando conquistaram também as manchetes do mundo, está a história da cobertura da primeira carga comercial de petróleo da Bacia de Campos, em agosto de 1977, cinco meses antes do primeiro número da Folha da Manhã chegar às bancas. Em 2015, com Aluysio morto há três anos, caberia ao seu maior parceiro profissional em vida relembrar a saga daquela reportagem do Jornal do Brasil. Com cenas de filme de ação para driblar a censura da ditadura militar (1964/1985) e levar a informação ao leitor, que mudaria radicalmente a cara de Campos e região.
A história de Esdras com Aluysio no Jornal do Brasil
Entre as páginas 172 e 176 do livro “Jornal do Brasil, História e Memória — Os Bastidores das Edições Mais Marcantes de Um Veículo Inesquecível”, da jornalista Belisa Ribeiro, ela e Esdras contam:
“Aluysio Cardoso Barbosa também não está mais aqui para contar suas histórias (faleceu em 2012, aos 77 anos). Ele foi repórter do Jornal do Brasil em Campos e viveu uma experiência incrível. Foi preso não por querer denunciar alguma coisa, mas por estar correndo atrás de uma boa notícia. Quem lembra é seu parceiro na aventura, o fotógrafo Esdras Pereira, que começou fotografando aos 15 anos e hoje, aos 57, se divide, entre cuidar do seu restaurante Madame Z, lá mesmo, em Campos, fazer coluna social e tocar um blog, no grupo Folha da Manhã:
‘A teoria é que se havia petróleo em terra, tinha que ter petróleo no mar, e essa teoria era defendida pelas pessoas que estavam procurando petróleo em Campos. Mas o governo negava o tempo todo. Era a ditadura, a gente não tinha informação nenhuma. Eu acho que havia interesses estrangeiros envolvidos. O fato de ter petróleo aqui, com potencial de exploração comercial, significava que o país ia ter uma independência. Não sei se o governo tinha medo de acontecer alguma coisa ou se os militares estavam sendo impedidos de alguma forma de revelar isso naquela hora. Era questão de segurança, ninguém podia falar nada, era perigoso, não se podia mexer com eles. Era Dops, SNI.
Mas quem dominava essa tecnologia da prospecção toda eram os gringos, então a gente tentava conversar com eles. E eles não tinham problema nenhum de censura, de falar nada. Até que apareceram uns lá em Atafona, fizeram um centro de comunicações na praia, um acampamento, e o Aluysio conversou com eles, e um cara falou que já havia sido descoberto o petróleo. Ele fez uma matéria, o Jornal do Brasil acreditou nele — era um repórter muito sério, muito conceituado — e publicou dizendo que havia petróleo na Bacia de Campos. Depois isso foi desmentido. Então, uma coisa que era verídica foi desmentida. A gente ficou com esse negócio encravado na garganta.
Algum tempo depois, o Aluysio ficou doente e estava em casa. Me mandaram para o aeroporto. Uma e meia da tarde, um calor desgraçado, fui para a pista do aeroporto fotografar a má conservação. Fotografei o que eu tinha que fotografar, aeroporto de interior, não tinha quase ninguém. Mas, no saguão de espera, tinha um gringo com uma maleta na mão, essas maletas tipo 007, falando inglês. Eu não falo nada de inglês. Aquele cara me chamou a atenção. Pedi a um piloto da Votec [empresa de táxi aéreo], que era do Nascimento Brito: ‘Pô, meu irmão, você fala inglês, pergunta a esse gringo o que ele está fazendo aqui.’ O piloto foi lá e me traduziu: ‘Eu vim aqui porque a gente está dimensionando como é que vai fazer, porque estamos preparando o primeiro carregamento comercial de petróleo.’ Eu disse: ‘Você está de sacanagem.’ E ele: ‘Não, rapaz, ele está falando isso.’ ‘Mas vai carregar quando?’ Aí o gringo: ‘Não, já está carregando, tem um navio lá.’
A gente estava atrás disso havia anos! O gringo continuou falando e deu a parada toda. Aí eu: ‘O senhor tem a latitude e a longitude?’ E ele: ‘Tenho.’ Abriu a maleta, me deu, eu anotei e parti para a casa do Aluysio. Aluysio doente, lá na cama, eu disse: ‘Olha, Aluysio, está havendo isso, isso, isso e isso, aquele negócio que você garante que tem, é verdade, está aqui.’ E ele. ‘Mas como é que nós vamos fazer?’ Eu falei: ‘Está aqui a latitude e a longitude.’
Nós tínhamos um amigo em comum, chamava-se Geraldo Coutinho, um grande usineiro aqui da Usina Paraíso que tinha um avião. Os usineiros, na época, eram poderosos. Não era o avião mais adequado para fotografia porque a asa era embaixo, atrapalhava um pouco. Mas o piloto tinha vindo da guerra de Angola, um português, sabia as malandragens todas. Aí o cara: ‘Ok, empresto o avião para vocês.’ Botou o piloto em contato, fizemos um plano de voo para a praia do Farol de São Thomé, onde estavam prospectando o petróleo em terra, a única praia campista. Claro que a gente não falou que ia em alto-mar, que eles não iam permitir. Quando a gente chegou lá, o piloto fez rasante até o local, para não ser detectado pelo radar.
De longe a gente já via a silhueta do navio. Fizemos uns voos com a asa deitada de lado para eu poder fotografar. Eu fotografei com a teleobjetiva. Quando chamei no zoom, entre uns caras que estavam no deque do navio vi um camarada com um binóculo olhando para a gente e falando alguma coisa, e outro anotando na prancheta. Rapidamente falei: ‘Aluysio, vai dar confusão, o cara está anotando o prefixo do avião, estou vendo ele daqui…’ Fizemos mais uns dois sobrevoos e partimos para terra, porque a aeronave não estava preparada para voo noturno e já estava querendo escurecer.
Quando se chega ao aeroporto de Campos, o avião tem que fazer umas três voltas, antes de aterrissar e ter permissão. Ao fazer a primeira volta, eu falei: ‘Tem uma Kombi branca lá embaixo, bem na frente do saguão, e é da Polícia Federal. Eles estão esperando a gente.‘ Ele disse: ‘Rapaz, e agora? A gente não pode perder esse filme.’ Eu o acalmei: ‘Vamos ver o que a gente faz.’
O piloto, na hora de taxiar, fazer a curvinha para voltar para o aeroporto, parou meio de ladinho, e eu desci pela asa. Abri a cabinezinha, desci pela asa com a chave do carro do Aluysio na mão, a máquina na outra e caí no mato. Era capim-colchão, que eles plantaram em volta do aeroporto para o caso de uma eventualidade, de acontecer um pouso de barriga, essas coisas. E fui abaixadinho para o aeroclube, que era perto do saguão. Peguei o carro e me mandei para Campos, que é perto, a uns 8 quilômetros.
Eu revelava o meu material e mandava para o Rio de ônibus. Só que, dessa vez, não ia dar tempo para mandar de ônibus. Revelei as fotos, tudo legal, liguei para o Jornal do Brasil e eles: ‘Manda que é primeira página .’ Aí eu corri de volta para onde? Para o aeroporto. Cheguei e eles lá detidos… e eu fiz de conta que não era nada comigo. Fui para a fila do embarque, tinha um avião de carreira que ia sair em uma hora, e da mesma forma que um usineiro me ajudou, outro botou areia. Cheguei para um, descendente de ingleses, muito petulante — nunca imaginava que ele fosse fazer aquilo —, e pedi: ‘Estou aqui com um material que preciso mandar para o Jornal do Brasil, eles estão lá no Santos Dumont esperando, eu vou dar esse envelope a você com umas fotografias, você podia entregar para mim?’ E ele: ‘Não sou carteiro, não, meu filho, procura outro.’ Mas o homem na fila atrás de mim falou assim: ‘Não, que é isso, eu não te conheço, mas se você quiser, eu levo.’ Anotei o nome dele, as características das roupas. Não tinha jeito, ali era ou tudo ou nada’.
A foto foi publicada, com destaque na primeira dobra da primeira página da edição de 14 de agosto de 1977, com a legenda:
‘Ligado à plataforma marítima Cedco-135-D por uma mangueira de mais de 200 metros de comprimento, o petroleiro Água Grande espera, a 56 milhas do litoral, completar sua capacidade de 45 mil barris para levantar âncoras — provavelmente na próxima sexta-feira — transportando o primeiro carregamento de petróleo do campo de Enchova para as refinarias da Petrobras. Ontem ao meio-dia funcionários da empresa que operam em outra plataforma na unidade Penrod-62 (P-6) anunciavam entusiasmados a conclusão, com êxito, de mais uma missão. ‘Encontramos muito óleo no poço que estávamos perfurando e nas próximas 48 horas a P-6 mudará de lugar’, disseram. O próximo poço da área a entrar em produção será o que está sendo perfurado pela plataforma Zephir -II’.
O governo militar não podia mais desmentir o Aluysio”.
A história de Esdras com a Folha da Manhã
Três anos depois de contar um pouco da sua história de jornalismo com Aluysio, no livro da Belisa sobre os grandes momentos do Jornal do Brasil, quando a Folha da Manhã completou 40 anos, em janeiro de 2018, Esdras também deu seu testemunho dessa história. Do jornal que vestiu a camisa como poucos, passando da reportagem-fotográfica até ser seu primeiro editor de fotografia, em meados dos anos 1990. E um pouco depois nele se tornar um conceituado colunista social:
Aventura, sonho & realidade
Por Esdras Pereira
Naquela manhã distante e modorrenta, de mormaço sufocante, eu jazia sentado naquele incômodo banco de madeira da antiga loja de Dib Hauaji, bem em frente ao relógio do Mercado Municipal. Do alto dos meus 14 anos, me impacientava à espera de algum serviço de fotógrafo freelancer, quando estacionou na porta da loja um fuscão ocre como gema de ovo bem passado e dele desceu um homem, tão despachado quanto bigodudo, que foi logo dizendo: “Dib, me arruma um fotógrafo aí que já não aguento mais ficar te pedindo fotos”.
Dib nem titubeou: “Leva esse aqui, que saiu da loja e está coçando o s…, é novinho, mas é bom.”
E, assim, lá fui eu viver a grande aventura de uma vida ao lado do jornalista Aluysio Barbosa, então redator-chefe de A Notícia. O melhor repórter que já conheci.
Professor/amigo/pai, ele foi me ensinando as manhas do ofício entre raríssimos elogios e generosos puxões de orelha. Tudo era novidade, uma aventura atrás da outra. Eu, adolescente, vibrava com as viagens, grandes reportagens, personagens e o seu faro para as boas histórias.
Dali para frente, Aluysio, também repórter especial do Jornal do Brasil, formalizou no JB a nossa dupla, conhecida como os “Caçadores de Primeiras Páginas”, tantas elas foram.
E as aventuras foram acalentando um sonho que nem a sua rabugice, muito menos seus penetrantes olhos verdes conseguiam esconder.
Aluysio queria mais, queria olhar acima da copa do jornalismo provinciano da planície. Queria poder fazer aqui um jornalismo moderno, sem as limitações dos antigos jornais de linotipos e clichês, e do ranço do comodismo ultrapassado.
O seu sonho foi compartilhado com Diva, que o abraçou de corpo e alma. Ela estava ao seu lado e ele ao lado dela. Logo eles foram compartilhando esse sonho com outros amigos.
Estava lançado o desafio. Não se tratava apenas de fazer mais um jornal em Campos, mas o melhor jornal da região. A semente germinou, brotou a Folha, lançando raízes profundas e caule forte. Nascia ali o primeiro jornal offset do interior do Estado do Rio. Mas o desafio não teria fim e seria sempre a nossa maior motivação.
A Folha da Manhã nasceu líder, são 40 anos de vitórias, essa a maior delas. Hoje, amadurecida, mostra-se a cada dia mais jovem. Aluysio já não está entre nós, mas o seu legado permanece através dos filhos Aluysio e Christiano, novos regentes dessa bela orquestra ao lado da mãe Diva Abreu Barbosa.
O que era uma aventura se transformou em sonho e depois realidade. E hoje nos dá o orgulho de ser Folha…
Minha história com Esdras
Esdras se tornou parceiro do meu pai logo após este voltar a Campos em 1973, ano seguinte ao meu nascimento em Niterói. O conheço, portanto, desde que me entendi por gente. Pela adoção profissional paterna, sempre o respeitei na condição de irmão mais velho. E, como irmãos, sobretudo dois de temperamento assertivo, tivemos nossos desentendimentos.
Muito talentoso como repórter-fotográfico, colunista social e até como romancista, a maior qualidade de Esdras, na visão do velho Aluysio, era outra: “Nunca faltou ao trabalho, nem com febre”.
Foi a mesma resiliência física que Esdras demonstrou no enfrentamento à Covid, que quase tirou sua vida em junho do ano passado. Alguns meses depois, em novembro, descobriria o câncer do sangue que hoje o mataraia precocemente por infecção pulmonar. Apenas três dias antes, no sábado, tinha voltado dirigindo de Niterói, onde foi com sua esposa, Alba, para consulta médica. Lutando até o final, como sempre fez, tinha marcado seu transplante de medula para 13 de dezembro.
Mas, entre suas lutas contra a Covid e o câncer, ele teve a chance de ver nascer sua quarta neta, Elis, de apenas três meses. E se casou em novembro passado com Alba, sua companheira leal há 39 anos. Esdras deixa também três filhos, Daniel, Aline e Marina.
A despeito de fugir de eventos sociais como o diabo da cruz, fiz questão de prestigiar o concorrido vernissage de Esdras: “Flores e Papiros”, na Femac, no último dia 3. Como sua visão sensível debruçada sobre as flores, usei uma camisa com este motivo para homenagear a quem sempre considerei o maior fotográfo de Campos. E pude testemunhar a bonita e derradeira homenagem prestada por outros tantos admiradores do seu trabalho na cidade.
Falando sobre jornalismo, redes sociais, democracia, ditaduras, do seu último trabalho exposto na Femac, segue abaixo, em dois blocos, a íntegra em vídeo da última entrevista de Esdras, ao Folha no Ar do último dia 2. No final, falando também sobre culinária, outra paixão dele, do radialista Cláudio Nogueira e minha, ficamos de fazer um novo programa só decicado ao assunto. Mas este ficará para outra oportunidade, talvez com a presença de Aluysio, que nunca cozinhou nada, mas nesta vida adorava comer.
Depois dos vídeos, o poema vencedor do 11º Concurso Nacional de Poesia Francisco Igreja de 2008, realizado no auditório Machado de Assis, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Como Aluysio, quem em sua morte relembrei pela face menos conhecida de pescador, Esdras foi também um grande mergulhador e caçador submarino, que me incentivou na prática desses esportes ainda adolescente. Com os dois tive a chance de aprender sobre jornalismo, a vida e o mar. Lições que guardo atadas à cintura, entre boca e guelras com sangue ainda quente, pela fieira.
conversão a mais de uma atmosfera
quando estou lá embaixo
esbarro comigo mesmo
sem dar de ombro
é em mim o tiro que miro
do arpão que zune nas águas
e rasga escamas
e carnes de pouco sangue
não vejo Deus vendo acima
só abaixo
perdido em arquiteturas
e faço parte d’Ele
refém do fascínio
de quem habita a zona morta
do meio do esquadro
atafona, 20/03/96
Meus sentimentos, que o Senhor conforte todos os seus amigos e familiares.