Após um mês, o filme “Marighella” (2019), estreia na direção do grande ator Wagner Moura, continua em cartaz em Campos, com sessões às 14h20 no Cine Kinoplex, no Shopping Avenida 28. Concluído durante a pandemia da Covid-19, seu lançamento teve que ser adiado até a reabertura dos cinemas no país. Neste tempo, a cinebiografia do ex-deputado federal do Partido Comunista Brasileiro (PCB, hoje Cidadania) Carlos Marighella, transformado em líder da guerrilha urbana contra a nossa última ditadura militar (1964/1985), esteve cercada de polêmicas na bipolaridade política acéfala em que o Brasil chafurda desde as eleições presidenciais de 2014.
Em vida, Marighella sofreu sua primeira prisão política em 1932, quando tinha apenas 21 anos e escreveu um poema com críticas a Juracy Magalhães, interventor na Bahia do Governo Provisório (1930/1934) de Getúlio Vargas no Brasil. Em 1934, se filiou o PCB ainda na Bahia, quando abandou o curso engenharia civil e se radicou no Rio de Janeiro, então capital da República. Em 1936, com Getúlio como presidente do Governo Constitucional (1934/1937), Marighella foi preso sem condenação e torturado pela Polícia Política de Filinto Müller. Solto em 1937, entrou na clandestinidade para ser preso e torturado novamente em 1939, com a ditadura de Getúlio já escancarada no Estado Novo (1937/1945).
Marighella só sairia da prisão em 1945, com o fim da II Guerra Mundial (1939/1945) e do Estado Novo, na redemocratização do Brasil. Eleito deputado federal constituinte pelo PCB da Bahia em 1946, cai de novo na clandestinidade em 1948, com a proscrição do seu partido e a perda do seu mandato popular. Entre 1953 e 1954, conhece a China comunista de Mao Tsé-Tung, a convite do Comitê Central do Partido Comunista daquele país. Em março de 1964, ajuda a escrever o discurso do marinheiro José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, durante a Revolta dos Marinheiros. Anselmo era agente infiltrado dos militares, que o usaram para darem dias depois o golpe civil-militar que instalou outra ditadura no Brasil.
Após o golpe, Marighella é preso em maio de 1964, mesmo sem ordem judicial, acusação ou condenação, dentro de um cinema no Rio. Desarmado, mas alto, forte, capoeirista e fisicamente corajoso, Marighella resiste à prisão em luta corporal contra vários agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), mesmo após ser baleado no peito. É a partir deste fato, com sua libertação em 1965, sua expulsão do PCB em 1967, sua fundação do grupo guerrilheiro Aliança Libertadora Nacional (ALN) em 1968, até sua morte metralhado pelo Dops em 1969, novamente desarmado, dentro de um Fusca em São Paulo, que o filme conta os últimos cinco anos da sua vida.
O resultado nas telas não é o grande filme de ação que Wagner Moura, após a passagem por Hollywood como ator, prometeu em sua estreia como diretor. Mas é, sim, politicamente maniqueísta. O que fica patente desde a abertura, onde a origem do rico e controverso personagem nos escravos malês — negros africanos muçulmanos que se revoltaram na Bahia do início do séc. 19 — é lembrada. Mas a italiana do seu pai e do próprio nome Marighella é sonegada. Também baseados em fatos reais daquele conturbado período do Brasil, “Lamarca” (1994), de Sérgio Rezende, e “O que é isso, companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, são filmes menos militantes e melhores.
Após brilhar como o Mané Galinha de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund, o músico Seu Jorge tem atuação opaca como Marighella. Cujo maniqueísmo forçoso do filme aparece em outras cenas, como na que Marighella e um dos frades dominicanos que o delatariam sob tortura, deliram que Jesus seria um negro, por ter se refugiado quando bebê com Maria e José no Egito, país da África Setentrional, sem ter sido percebido como diferente. Jesus era galileu, tão semita (moreno, não negro) quanto os egípcios eram e são até hoje. A África Negra é a Subsaariana. Wagner Moura e seu corroteirista Felipe Braga andaram faltando as aulas de Geografia.
Assassino de Marighella, antes de também participar da perseguição ao capitão do Exército Carlos Lamarca no sertão da Bahia, quando a guerrilha contra a ditadura saiu da fase urbana para a rural, o delegado do Dops Sérgio Paranhos Fleury é rebatizado como “Lúcio”, em boa interpretação de Bruno Gagliasso, na cinebiografia da sua vítima. Já sobre o drama particular dos frades dominicanos que delataram Marighella, sob a tortura do Dops comandada por Fleury, também há outro filme brasileiro melhor que o de Wagner Moura: “Batismo de sangue” (2007), de Helvécio Ratton.
Marighella foi um personagem forjado no choque entres as democracias liberais comandadas pelos EUA e a ditadura comunista da extinta URSS, aliadas na II Guerra para decretar o fim das ditaduras europeias do nazifascismo que inspiraram o Estado Novo de Getúlio. E na Guerra Fria (1947/1991) viveu entre as contradições dos EUA, democracia que apoiou ditaduras militares na América Latina, e as da URSS, com o genocídio comunista contra seu próprio povo comandado por Josef Stálin, que seria revelado ao mundo em 1956 por seu sucessor, Nikita Krushev. Consta que Marighella chorou quando soube, mas não rompeu com o marxismo.
Para uma esquerda latino-americana anacrônica que ainda não se libertou do paradigma da revolução, e relativiza as ditaduras “companheiras” de Cuba, Venezuela e Nicarágua, três décadas após o fim da Guerra Fria, Marighella foi um herói. Como não foi nada além de um terrorista comunista, que se tenta nivelar a bandido reles, para a extrema-direita reacionária que hoje governa o Brasil.
Para quem, entre a esquerda e a direita, abraça o paradigma da democracia como valor universal, ou pelo menos ocidental, Marighella não foi um “guerreiro da liberdade”. Mas um dos tantos que morreu numa luta suicida contra uma ditadura no Brasil, para tentar instalar outra, de espectro político oposto. Ainda que seja difícil não simpatizar com a coragem do Quixote quedado no combate contra moinhos de vento, não há um documento de nenhum grupo guerrilheiro brasileiro dos anos 1960 e 1970 que indique nada diferente.
Marighella foi um homem do seu tempo. E o marcou tanto que, mais de meio século após seu assassinato covarde, seu país ainda fala dele. Como o filme de Wagner Moura fala mais da visão do diretor/roteirista sobre o seu próprio tempo. Não por acaso, na única cena em que ele surge, ao final filme, só com sua voz como a do juiz que inocenta o Lúcio/Fleury, a câmera foca na placa onde se lê “Brasil: Justiça e Verdade”.
Sobre Marighella, o final do filme de Moura é uma clara referência a favor de Lula, liberto após 580 dias preso por corrupção pela Lava Jato, para hoje liderar todas as pesquisas presidenciais às urnas de 2022. Se esse outro filme terá final feliz, só o tempo dirá. O do deputado e guerrilheiro comunista, para ficar tanto tempo em cartaz no cinema de uma cidade conservadora como Campos, está dando lucro.