O poeta e tradutor amazonense Thiago de Mello morreu hoje, em Manaus (AM), aos 95 anos, de parada cardíaca. Era um dos mais conhecidos e reconhecidos poetas brasileiros, em seu próprio país e no exterior, onde serviu anos como adido cultural. Ícone da literatura regional, como foram o poeta pantaneiro Manoel de Barros ou o prosista goitacá José Cândido de Carvalho, Thiago marcou sua obra pelo humanismo, a crítica social, a defesa da Floresta Amazônica e seus povos originais, que conheceu e cantou tão bem.
O poeta do Amazônia e homem do mundo fincou raízes também na planície goitacá. Entre 1977 — logo após voltar do exílio imposto por nossa última ditadura militar (1964/1985) — e 1986, ele foi casado com a jornalista campista Ana Helena Ribeiro Gomes. Radicada há muitos anos na cidade do Rio de Janeiro, ela morou durante sua união com Thiago na cidade natal deste, em Barreirinha, numa casa projetada pelo arquiteto Lúcio Costa, que projetou junto com Oscar Niemayer a capital Brasília.
Ana Helena e Thiago tiveram um filho, Thiago Thiago, filósofo, sociólogo e compositor, hoje com 40 anos. Numa dessas coincidências que não há, ele estava no Amazonas neste período da morte do pai, cuja terceira e última residência em Barreirinha projetada por Lúcio Costa, à beira do rio Andirá, está sendo reformada para ser transformada em Casa da Poesia.
— Thiago voltou do exílio, em 1977, e estava na casa da irmã em Copacabana, para responder a um inquérito militar da ditadura. Eu era repórter de O Globo e fui enviada para entrevistá-lo. Thiago era conhecido do jornal, onde escreveu como cronista nos anos 1950. Como era um poeta e fiquei com receio de perder algum verso, levei um gravador. Fizemos a entrevista e, no final, ele pediu meu nome e telefone. Fui para casa, para tirar a matéria, onde percebi que não tinha gravado nada. Resolvi escrever de memória e deu um texto de oito laudas. No dia seguinte, com a publicação da matéria, ele ligou para mim e contei a história do gravador. Depois, apareceu na minha casa com um violão. Nós casamos ali, naquele processo. Depois, junto com o cantor e compositor Sérgio Ricardo, Thiago correu o Brasil com “Faz escuro, mas eu canto”, espetáculo de protesto contra a ditadura. Quando acabou, me mudei com ele para Barreirinha. Mesmo depois da separação, continuamos grandes amigos. Sempre que ele vinha ao Rio, se hospedava na minha casa. Fomos grandes amigos a vida toda. Somos! Ainda não consigo falar dele no passado. Perdemos um grande humanista; um homem que foi, em vida e obra, um belo resumo do século 20 — testemunhou Ana Helena ao blog.
Verso do poema “Madrugada Camponesa” e título do seu livro de 1965, considerado pelo autor como o mais querido, “Faz escuro, mas eu canto” seria também o tema da 54ª Bienal do Livro de São Paulo, em 2021. Na qual Thiago, ainda em vida, foi o grande homenageado.
Por conta do seu casamento com Ana Helena, amiga dos meus pais, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Thiago de Mello na minha infância, em algumas das suas vindas a Campos. Num desses encontros, ele chegou a escrever para mim um poema, que está, espero, guardado com a minha mãe. Segundo ela, o poema começava assim: “Aluysinho, companheiro, foi muito bom te encontrar”.
Caras aos poetas, entre as figuras de linguagem que mais aprecio, está o oxímoro, uso de expressões antagônicas para reforçar uma ideia. Desde a sua fundamentação, a língua portuguesa já era marcada a “fogo que arde sem se ver” pelo oxímoro. Como Luís de Camões, em soneto homônimo ao primeiro verso: “Amor é fogo que arde sem se ver,/ é ferida que dói, e não se sente;/ é um contentamento descontente,/ é dor que desatina sem doer”.
De Camões para cá, o Brasil também pariu grandes escritores que se destacaram pelo uso do oxímoro. Entre eles, o mais marcante talvez seja Euclides da Cunha. Que, na prosa da sua obra prima sobre a Guerra de Canudos (1896/1897), em “Os Sertões”, imortalizou alguns: “grande homem pelo avesso”, “Hércules-Quasímodo”, “a caatinga o afoga”.
É, no entanto, Thiago de Mello quem, na minha opinião, escreveu o oxímoro defintivo da língua portuguesa — ou de qualquer outra. E com ele batizou o poema e o livro homônimo de 1952:
Narciso Cego
Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.
Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo —
entre o sonho e o sonhador.