Não sei bem se por ter sido professor de história durante 40 anos ou por me intrometer publicamente em assuntos que me interessam, algumas pessoas estão solicitando minha posição sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esclareço, para decepção dos que me procuraram, que ficarei em cima do muro. Apenas farei considerações para que as pessoas interessadas em se posicionar diante do conflito possam contar com mais base. Creio que essas considerações revelarão, de alguma forma, a minha posição para os que tiverem olhos de ver e ouvidos de ouvir. Não se trata de um postura covarde, mas de respeito às duas posições mais fáceis: sim ou não.
Em 1625, o jurista holandês Hugo de Grotius publicou “O direito da guerra e da paz”, lançando as bases do direito internacional atual. Até então, a guerra se definia por razões pragmáticas, de forma maquiavelista, embora Maquiavel fosse um ilustre desconhecido dos governantes. Não havia regras que norteassem invasões e guerras. Não havia claros motivos ideológicos. A guerra era uma arte exercida por reis e comandantes. As bases do direito internacional também não foram levadas em consideração. Grotius não passou de mais um pensador relegado a plano inferior.
Os motivos ideológicos começaram a se definir no século XVIII, principalmente com a Independência das 13 Colônias da América do Norte, que deu origem aos Estados Unidos, e com a Revolução Francesa, de 1789. Os campos conservador, liberal, progressista e anarquista começaram a ser definidos. A independência das Treze Colônias não era mais um questão do mais forte e sim o direito de uma Inglaterra fora da Europa a se tornar independente livrando-se da monarquia (ainda que a caminho do parlamentarismo) e adotando uma república com base nas ideias do europeu John Locke. A Revolução Francesa consagrava o direito do povo de proclamar uma república progressista contra uma aristocracia monarquista retrógrada.
As guerras do século XIX na Europa assim com as guerras de conquista colonial não invocavam o direito do mais forte, mas razões ideológicas. Invocava-se o progressismo contra o conservadorismo e a civilização contra a barbárie. A conquista de uma colônia era justificada pelo dever de civilizar o bárbaro. A Primeira Guerra Mundial foi a última guerra europeia com repercussões extra-europeias. Ela foi travada por dois blocos. Inglaterra e França consideravam-se países liberais e progressistas, vendo Rússia, Alemanha e Áustria como países atrasados, ainda ligados ao Antigo Regime europeu. O Império Otomano, então, era um país atrasadíssimo por nem sequer ser europeu, mas muçulmano. Era um homem doente. O Acordo de Sikes-Picot, que dividiu o Império Otomano entre Inglaterra e França antes mesmo do fim da guerra, e a Declaração Balfour, que reconheceu o direito dos judeus a um lar nacional na Palestina, justificavam-se por expressarem o moderno contra o atraso.
A Revolução Russa de 1917 usou como justificava tratar-se de uma luta do comunismo contra o capitalismo e o imperialismo. Havia grande sinceridade nos revolucionários, mas logo percebeu-se que não seria fácil livrar-se do capitalismo. Daí a política leninista de um passo atrás para dar dois passos à frente e a política estalinista dos planos quinquenais para tornar a União Soviética competitiva num mundo capitalista. Hitler também se posicionou contra o capitalismo liberal em seu livro “Mina luta” e em seus discursos. Trata-se de criar uma nação forte, até mesmo um império em que empresários, políticos e operários se unissem contra a opressão e a exploração do capitalismo. Tudo indica que havia sinceridade em Hitler na sua luta “revolucionária”. A caracterização do nazismo e do fascismo como regimes reacionários e direitas foi desenhado posteriormente. Edgar Morin, comunista e militante durante a Segunda Guerra, escreve em “Lições de um século de vida”, que a resistência marxista chegou a acreditar que Hitler se estabilizaria na criação do seu espaço vital e terminaria a guerra. Ele escreveu que foi um grande erro da sua parte e que dele se arrepende até hoje.
O pacto nazi-soviético de 1939, dividindo a Polônia entre os dois países, assim como a invasão da União Soviética por Hitler em 1941 foram ideologicamente justificados. Jorge Amado e Joel da Silveira defenderam o pacto. Os Estados Unidos defenderam o lançamento de duas bombas atômicas sobre cidades japonesas em 1945. A Guerra Fria foi justificada por Estados Unidos e União Soviética. Atos indefensáveis contam sempre com justificativas ideológicas.
Geralmente, são mentirosas. Se vale argumentar que a Ucrânia é parte histórica da Rússia, o mesmo país pode reivindicar o Alasca. O Brasil pode reivindicar a Uruguai e a Guiana, pois são países que já integraram o país. As nações colonialistas da Europa Ocidental podem reivindicar suas ex-colônias na África. Por outro lado, podemos condenar a existência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) porque ele foi criado durante a Guerra Fria, que não existe (ia) mais. Alega-se que a organização é o órgão de defesa da União Europeia. Neste caso, Estados Unidos e Canadá deveriam ser excluídos.
Argumenta-se também que, em pleno século XXI (como se tempo fosse argumento sólidos), não cabe mais uma guerra convencional, com invasão de um país por outro. Pode não caber na Europa, mas cabe ainda no Oriente Médio, o maior campo de guerra dos últimos cem anos. França, Inglaterra, União Soviética e Estados Unidos não hesitaram em invadir países do Oriente Médio, considerando uma área atrasada do mundo em que invasões e guerras são justificáveis. Iraque, Afeganistão, Iêmen, Síria, Líbano e Palestina podem ser invadidos e bombardeados. Já Israel, não, por se tratar de um país europeu fora da Europa.
A esquerda sente nostalgia pela União Soviética. Afinal, foi a entidade política que prometeu acabar com o capitalismo e implantar o comunismo mundial. Não conseguiu nem o comunismo num só país. Assim, fica difícil para a esquerda nostálgica admitir que Putin é um político autocrata, conservador e moralista. Fica fácil colocar o selo de nazista no presidente da Ucrânia. A simplificação é uma operação mental que facilita posicionamentos.
Com base nesses argumentos, tenho condição de me posicionar, mas não o farei.
“A Câmara vai ser forte. Diferente dessa presidência (…) de hoje, que tenta jogar contra a população pautando aumento de impostos e servindo de puxadinho da Prefeitura”. Foi o que projetou para o biênio 2023/2024 o vereador de oposição Marquinho Bacellar (SD). Ele venceu a eleição a presidente da Câmara Municipal de Campos por 13 votos a 12 na sessão do dia 15. O resultado chegou a ser proclamado pelo atual presidente, o situacionista Fábio Ribeiro (PSD). Que foi derrotado no voto em sua tentativa de reeleição, junto com o governo Wladimir Garotinho (PSD). Fábio poderia ter marcado o pleito até 15 de dezembro, mas resolveu adiantá-lo nove meses.
Folha da Manhã – O voto de Nildo em você a presidente da Câmara, na sessão do dia 15, não foi registrado em ata. Mas ele declarou na tribuna que era seu, na sua vitória por 13 votos a 12. No dia 24, por 3 votos a 1, a atual Mesa Diretora da Câmara entendeu que o voto dele não valia. E anulou sua eleição a presidente da Casa em 2023/2024. A judicialização agora é inevitável?
Marquinho Bacellar – Estamos vendo uma das maiores vergonhas da história da Câmara de Campos. Perderam no voto, em uma eleição que eles anteciparam, e estão criando essa cortina de fumaça. O resultado não vai mudar. A maioria venceu e isso não tem discussão. Tenho certeza de que não vai mudar. Agora temos que seguir a votação para os outros cargos da Mesa.
Marquinho – O grupo de Garotinho vive um canibalismo eterno. É um querendo engolir o outro o tempo todo. Mas eles adiantaram porque são prepotentes, arrogantes e achavam que iriam vencer. Tudo foi feito na calada e com o consentimento do prefeito, que também é, desde o início do governo, um exemplo de prepotência, soberba e incompetência.
Marquinho – Há um entendimento até pelo jurídico da Câmara de que essa eleição deve continuar para que a pauta, posteriormente, siga seu rumo natural.
Folha – A sua eleição se deu com a traição de Maicon, que assinou termo de compromisso pela eleição de Fábio, mas votou em você. Agora veio essa anulação, no tapetão, do resultado do voto dos vereadores. Quando a política de Campos vai se pautar por parâmetros mais dignos?
Marquinho – Disputei a eleição para a presidência da Câmara e venci com o apoio de (outros) 12 vereadores. Quem antecipou e perdeu foi o grupo do prefeito. Antes da votação, membros do grupo do prefeito xingaram e atacaram o vereador Maicon Cruz. E depois choram porque ele votou contra? Enquanto houver um Garotinho no poder não vamos ver parâmetros dignos em Campos. Essa é a verdade. Qualquer campista sabe que eles fazem de tudo pelo poder. E quanto à “traição”, o vereador foi colocado dentro de uma sala fechada, sem acesso ao próprio celular, sendo coagido a votar em um candidato. Ele assinou um documento sem validade alguma, por medo. Eu não trato o caso como traição. Trato como coragem de quem se coloca de frente para encarar um grupo político que já fez tanta maldade na cidade.
Folha – Após sua eleição a presidente da Câmara, você agradeceu por ela à articulação do seu irmão, o secretário estadual de Governo Rodrigo, e de Caio Vianna, secretário municipal de Niterói. Como se deu o trabalho deles?
Marquinho – Ao contrário de Wladimir, que é um menino mimado e birrento, que só desagrega, meu irmão Rodrigo Bacellar e Caio Vianna sabem que o momento pode união de forças. Prova disso é que temos o apoio de novas e antigas forças políticas da cidade. Já o prefeito segue cada vez mais sozinho com sua arrogância. Quem achava que ele era diferente do pai, agora está vendo. Se bobear, Wladimir é pior do que Garotinho. O nível de imaturidade dele é assustador. E cabe lembrar que, em 2021, na eleição para o primeiro biênio, tanto o Caio (que, na verdade, fez um acordo com o grupo de Wladimir para dar ao governo a vitória na Mesa Diretora no biênio 2021/2022) quanto o meu irmão orientaram os seus grupos políticos a votarem como quisessem, com o objetivo de dar governabilidade ao governo que iniciava. Mas os dois viram que o prefeito não queria governabilidade, e, sim, uma Câmara que fosse subserviente às ordens dele.
Folha – Rodrigo e Caio chegaram a anunciar uma aliança para 2020, que se desfez antes de começar a campanha. Se ela tivesse se mantido, o resultado daquela eleição a prefeito teria sido diferente? Refeita agora na Câmara, essa união pode durar até o pleito de 2024?
Folha – Em 2020, a aliança com Caio teria se desfeito porque Rodrigo queria indicar o nome a vice-prefeito e, após a eleição da Câmara, o nome para presidi-la. O que tornaria o pedetista, se eleito, refém do seu grupo. Para 2024, quais termos deveriam ser buscados a um acordo?
Marquinho – A aliança se desfez porque nosso grupo optou por lançar uma candidatura (na verdade, a ruptura de Rodrigo com Caio se deu em março de 2020 e, só cinco meses depois, em agosto daquele ano, a candidatura de Dr. Bruno Calil foi lançada). Sempre tive uma excelente relação com Caio e todos amadurecemos muito. Agora temos que seguir juntos, mas sem ficar pensando em eleição de 2024. Temos eleição este ano com Rodrigo buscando a reeleição na Alerj e Caio como pré-candidato a deputado federal. O pensamento agora é no fortalecimento de um grupo para trazer recursos e ajudar o nosso município.
Folha – Campos saiu de 2020 dividida em três polos políticos: Wladimir, prefeito; Caio, que fez um segundo turno muito duro; e Rodrigo, deputado estadual que, em 2021, ganhou a musculatura do Segov. Se dois desses polos se unirem, o terceiro perde? Há espaço para um quarto?
Marquinho – Como eu disse, não se trata de uma união contra o prefeito. O maior adversário de Wladimir é ele, mesmo. A derrota ali é de dentro para fora. Vamos dialogar não só com Caio, mas com outros quadros que ofereçam alternativas e nos ajudem a conduzir Campos para um caminho de desenvolvimento e libertação.
Folha – A perda de popularidade de Rafael em 2020 impressionou tanto quanto a votação que o elegeu prefeito no turno único em 2016. O ex-prefeito pode voltar ao jogo como protagonista? Como reage às acusações de que grupo político dele hoje estaria abrigado no seu?
Marquinho – Rafael encontrou uma cidade destruída, quebrada, saqueada. E cometeu erros. Poderia ter escolhido alguns quadros diferentes e dialogado mais com a população. Sobre ele voltar ao jogo, depende dele, de forma gradual. Mas vamos pensar aqui. Garotinho foi preso cinco vezes e está aí, querendo voltar ao jogo. E Rafael, que teve seus erros, não pode voltar? Em relação aos quadros, é natural alguns que estejam não só em nosso grupo, como também na Prefeitura.
Folha – Dos 25 vereadores, até maio de 2021, você era a voz de oposição mais forte na Câmara. Caso você confirme na Justiça sua eleição, confirmando depois uma Mesa toda da oposição, Wladimir deve temer ser engessado ou até um impeachment?
Marquinho – Ele vai ver que não estamos aqui para perseguir. Vai ver que não precisa nos medir pela régua deles. Nosso mandato será pautado pela firmeza, mas com respeito. E por falar em respeito, foi o que faltou por parte do poder público até agora. O prefeito trata vereadores como capachos. Isso vai mudar. A Câmara vai deixar de ser um puxadinho da Prefeitura e fazer valer a sua força em defesa de Campos.
Marquinho – Essa aí é a narrativa de Wladimir e do Chucky (nome do personagem que batiza uma franquia de filmes de terror, com o qual o então vereador Marcos Bacellar apelidou o ex-governador) Garotinho. Veja como Mocaiber trata o meu pai até hoje. Com carinho e respeito. Pergunte na Câmara aos funcionários da Casa sobre o carinho que todos têm pelo meu pai. O que aconteceu ali foi que o meu pai não aceitou entrar na armação de Garotinho contra Mocaiber (mesmo com policiais federais tentando intimá-lo a não o fazer, Bacellar garantiu na Câmara a recondução de Mocaiber ao cargo de prefeito, após este ser afastado na Telhado de Vidro). Eles perderam no voto na suplementar de 2006 e tentaram tomar Campos no tapetão. Veja então quem são os que gostam de golpe e de emparedar. Quem emparedou e extorquiu alguém em Campos foi Garotinho, que mandou segurança armado na casa de um empresário para pedir R$ 500 mil (como foi denunciado na operação Caixa D’Água, derivada da Laja Lato, que rendeu a Garotinho a terceira das suas cinco prisões). Quem diz isso é próprio empresário, e isso foi amplamente divulgado. Entre nós não existe tática para emparedar o prefeito. Isso é choro de quem quer justificar o fracasso que é o seu governo.
Marquinho – Esse senhor tem credibilidade para falar o quê? Preso cinco vezes, alvo de centenas de processos, ficha suja e quadrilheiro. Ele só está criando desculpas para justificar seu instinto de escorpião e para fazer chantagens.
Folha – Além de tentar reeleger Rodrigo com uma bela votação a deputado estadual e Castro a governador, quais são os objetivos do seu grupo nas eleições de outubro? Seu pai, Marcos Bacellar, veio do sindicalismo, como Lula. E a aliança de Castro com o presidente Bolsonaro?
Marquinho – Vamos trabalhar muito para reeleger Cláudio Castro e Rodrigo. E temos que reconhecer a importância do governador para Campos e região. Fez em pouco tempo o que não fizeram em décadas. Reabriu o Restaurante do Povo, envio recursos para colocar salários dos servidores de Campos em dia, ajudou a Saúde, limpou canais, trouxe com Rodrigo Bacellar o Segurança Presente, campo do Farol, recuperou estradas, entre muitas outras ações em curso, como a reforma do HGG. Sobre a política nacional, temos aliados que pensam de uma forma, outros com outras linhas. Mas somos grupo e vamos debater com nossas lideranças.
Folha – Caso confirme sua eleição na Justiça, ou numa nova eleição, qual seria seu principal objetivo como presidente da Câmara?
Marquinho – Nossa eleição está confirmada. O resto é choro, jogo sujo e tentativa de golpe. Nosso objetivo é acabar com essa história de Câmara ajoelhada aos pés do prefeito. A Câmara vai ser forte e participar de debates sobre desenvolvimento, geração de empregos, Saúde, Segurança e Educação. Diferente dessa presidência da Câmara de hoje, que tenta jogar contra a população pautando aumento de impostos e servindo de puxadinho da Prefeitura.
“Vou mandar os vereadores lá para a Ucrânia. Vocês têm o Wladimir de boa e lá tem o Vladimir Putin. Mas, se precisar, a gente vira o Putin também”. Foi o que disse na noite de quinta (24) o prefeito Wladimir Garotinho (PSD), em discurso na inauguração da Vila Olímpica Valdir Pereira, no Parque Guarus. Com o mundo inteiro atento à injustificada invasão da Rússia de Vladimir Putin à nação vizinha e independente da Ucrânia, se foi uma brincadeira, foi de péssimo gosto. Gostando ou não da decisão dos vereadores, sobretudo da oposição, o prefeito é obrigado a respeitá-los. Como a democracia à qual seu xará russo tem tão pouco apreço.
Wladimir falou mais: “Tem outros por aí, como o vereador do grau, que teve a chance de ouro de estar ao nosso lado para ajudar ao povo do Eldorado, mas preferiu se vender. Ele esteve na minha antessala, na véspera da eleição, pedindo dinheiro. E eu falei: ‘Pode ir, pode ir com Deus, pois o dinheiro que nós temos é para fazer obra e cuidar do povo’”. Referiu-se ao edil Luciano Rio Lu (PDT), que tem sua base no Eldorado e já apresentou requerimento para oficializar a prática do “grau”. Ou conduzir motos empinadas numa só roda. Rio Lu chamou de “esporte” o que é crime pelos artigos 291, I e 308 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Apressado come cru
De São João da Barra, Maicon foi lá candidato a vereador derrotado duas vezes. Ganhou projeção em Campos como coordenador do secretário estadual de Educação do governo Wilson Witzel (PSC), Pedro Fernandes, preso em setembro de 2020. Aos 31 anos, Maicon talvez ainda não tenha projetado seu ato. Trair sua palavra pode ser hoje até defendido pelos beneficiados. Mas será lembrado quando o aliado virar opositor. Foi tão ingênuo e imediatista quanto o experiente Fábio Ribeiro. Por ter apostado sua eleição na palavra de alguém que foi avisado antes, por quem conhece Maicon desde criança, que não tinha motivo para confiar.
Ônus da prova é de quem acusa
A acusação mais grave de Wladimir, no entanto, foi ao “vereador do grau” do Eldorado. Como a referência parece clara, afirmar que o parlamentar “preferiu se vender” e que “esteve na minha antessala, na véspera da eleição, pedindo dinheiro” são gravíssimas. Ainda que a segunda versão estivesse sendo ventilada nos bastidores e redes sociais, antes mesmo da votação do dia 15, o ônus da prova é de quem acusa. Sobretudo quando tal denúncia é feita por uma autoridade, publicamente, em um ato oficial. Se tem provas do que diz, deveria ter feito a denúncia oficialmente. Se não tem, pode ter que responder judicialmente sobre isso.
“Às vezes, se fala na brutalidade animal do ser humano, mas isso é incrivelmente injusto e insultante para as feras; um animal nunca poderia ser tão cruel como o ser humano, tão artisticamente cruel”
(Fiódor Dostoiévski, em “Os Irmãos Karamazov”)
Morto no último dia 15, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor definiu talvez a grande lição sobre os atentados do terrorismo islâmico às Torres Gêmeas do World Trade Center, na Nova York de 11 de setembro de 2001:
— Deus está vivo. E se chama Alá.
Descendente de imigrantes judeus libaneses, educado em colégio de jesuítas e ateu, Jabor alertava que o ataque ao coração do novo Império Romano era a realidade esbofeteando a cara de todo o Ocidente. Soberbo na leitura porca do filósofo alemão Friederich Nietzsche, que no século 19 decretou: “Deus está morto”. Arrogante com o “fim da História” decretada pelo filósofo e economista liberal Francis Fukuyama, logo após a dissolução da comunista União Soviética em 1991.
Para quem passou por Renascimento, Reforma, colonização das Américas e Iluminismo, talvez. A quem, sem passar por nada disso, chegou às mesmas revoluções industrial e digital, não. Cada qual com suas particularidades, são os casos das civilizações Islâmica, Chinesa e Indiana. Que dividem o mesmo mundo e tempo conosco, Ocidente greco-romano-judaico-cristão. Fruto também deste, muito antes de ser a principal herdeira soviética, a Rússia é também um hibridismo geográfico e antropológico: enclave europeu espraiado por toda a latitude gigantesca da Ásia. Nela, é tão eslava, viking e católica ortodoxa, quanto mongol, tártara e islâmica.
As civilizações são diferentes. Como não são iguais os países. Prova disso foi dada na noite de ontem, quando o Conselho de Segurança da ONU, reunido na Nova York capada das Torres Gêmeas, vetou a resolução pela condenação da invasão injustificada da Rússia de Vladimir Putin, na madrugada brasileira de quinta, à vizinha e até então soberana Ucrânia. Dos 15 países votantes, 11 foram a favor, incluindo o Brasil de um Bolsonaro com medo de outubro, três se abstiveram. Como, então, foi reprovada? Simples. Só cinco têm assento permanente no Conselho e o poder unitário de veto: EUA, Grã-Bretanha, França, China e Rússia. Esta, por óbvio, vetou.
A Ucrânia não é só vizinha da Rússia. É sua irmã mais velha. Está para Rússia como a Bahia ao Brasil. Foi lá que tudo começou. E para quem acha que todo baiano é brasileiro, fica a autodefinição do cineasta Glauber Rocha aos seus anfitriões no tempo de exílio em Cuba, no auge da ditadura militar no Brasil, retratada no documentário “Rocha que Voa” (2002), dirigido por seu filho Eryk Rocha: “Eu não sou brasileiro, eu sou baiano”. A primeira vez que o nome Rússia surgiu nos mapas, na Idade Média do século 9, foi como Rússia de Quieve — e Kiev, desde ontem cercada pelo rápido avanço militar russo, é até hoje a capital da Ucrânia.
No tempo dos czares de todas as Rússias, do século 18 à Revolução Russa de 1917, Rússia e Ucrânia formaram o mesmo país. E continuaram juntas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que chegou ao fim em 1991. Foi justamente quando três destas repúblicas se tornaram independentes: Ucrânia, Rússia e Bielorússia (ou Belarus). Esta, hoje governada pelo autocrata tresloucado Aleksandr Lukashenko, aliado de Putin e chamado de “o último ditador da Europa”, que franqueou o caminho para os russos a Kiev. Confiante na fraternidade ancestral da sua relação com a Rússia, a Ucrânia se separou e passou a ela todo o arsenal nuclear instalado em seu território pela URSS. Quando o fez, de bom grado, a Ucrânia era a terceira potência atômica do mundo, atrás apenas da Rússia e dos EUA.
Se a Ucrânia tivesse mantido seu arsenal nuclear, do qual era tão herdeira quanto a Rússia, Putin hoje desinflaria o peito de pombo, arrulhando enquanto finge rosnar. O país foi ingênuo há 31 anos. Como foi ingênuo seu ainda presidente, o ex-comediante Volodymyr Zelensky. Por acreditar que, sem pertencer à Otan, o Ocidente viria em sua ajuda na guerra contra o Golias que a Ucrânia enfrenta sozinha. Como Davi, mas sem as mesmas virtudes bélicas do rei da Antiga Israel, Zelensky é judeu. E é acusado por Putin, ex-agente da Gestapo soviética da KGB, de ser neonazista. Se a URSS perdeu 20 milhões de vidas para derrotar a Alemanha Nazista na II Guerra, 8 milhões dessas almas eram ucranianas. Foi às margens do mesmo rio Dniepre que os tanques russos cruzam agora na Ucrânia, que os avôs dos antagonistas de hoje, juntos, derrotaram os nazistas em 1943, numa das maiores batalhas de blindados da História.
Capaz de matar dissidentes russos envenenados até na Inglaterra, de proibir que as russas deem queixa se agredidas fisicamente pelos maridos e de agora reprimir com a polícia as centenas de manifestações na Rússia contra sua invasão à Ucrânia, Putin é moralmente indefensável. A Rússia, não. Após a queda do Muro de Berlim em 1989, os EUA e a Alemanha temiam que a URSS fosse reagir militarmente, como fez na invasão da Hungria em 1956 e da ex-Tchecoslováquia em 1968. Último presidente soviético, Mikhail Gorbatchov ouviu o pedido, feito em 1990 por James Baker, então secretário de Estado dos EUA no governo George Bush pai, e pelo então chanceler da Alemanha, Helmut Kohl, de não intervir na reunificação germânica. A URSS prometeu não se meter. E cumpriu. Em troca, Gorbachov pediu que a Otan não agregasse países da área de influência soviética. Os EUA não cumpriram. Onze países do extinto Pacto de Varsóvia, feito pela URSS em resposta à Otan, hoje integram esta.
Os interesses geopolíticos da Rússia são moralmente justos. Os métodos de Putin, não. Mas, ainda que seja um canalha amoral, ele também mostrou ser uma águia geopolítica nestes seus 22 anos no poder. Como seu ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, tem só meio século de experiência. Com uma aliada China para chamar de sua e o recorde de US$ 630 bilhões em reservas cambiais, a Rússia guardou gordura para sobreviver às sanções econômicas do Ocidente sem passar fome no inverno da guerra. Esta sempre tem por característica a imposição cruel da realidade esbofeteando a face das idealizações.
Em se tratando de um combate, olhar para Putin e Lavrov em um canto do ringue e, no outro, um Emmanuel Macron preocupado com as eleições presidenciais da França em abril, um Boris Johnson aliviado por desviar as atenções dos comes e bebes que promoveu enquanto determinava à Grã-Bretanha isolamento social na pandemia da Covid, um Olaf Scholz que acabou de assumir como chanceler da Alemanha sob a sombra densa da sua antecessora Angela Merkel, e um Joe Biden humilhado pela retirada desastrosa dos EUA do Afeganistão, quem apostaria contra os dois primeiros? Biden, que derrotou nas urnas de 2020 um Donald Trump aliado de Putin, parece ser o adversário perfeito para este. Aos 79 anos, é moderado, empático, defensor da energia limpa, das minorias étnicas e de orientação sexual.
Assertivo, frio, exportador do gás que aquece o resto da Europa durante o inverno rigoroso deles, pragmático com as minorias étnicas e perseguidor da sua população LGBT, na defesa da “família tradicional”, Putin ainda assim consegue ser defendido por parte da esquerda mundial. Que é viúva, como a própria Rússia, do Muro de Berlim e da URSS. Na paráfrase de Jabor, a figura e os atos do autocrata russo bradam:
— O macho alfa está vivo. E se chama Putin.
Ao se alistarem heroicamente na defesa armada do seu país contra a invasão russa, os irmãos e ex-campeões Vitali e Wladimir Klitschko dominaram o mundo do boxe peso pesado profissional entre os anos 1990 e 2010. Vitali é o prefeito de Kiev. Seja na política ou no ringue, os dois sabem bem que luta não é briga. A contagem já está aberta. Na lona, como depois do 11 de setembro, o mundo que se levantar nunca mais será o mesmo.
Helinho também analisará qual será agora o caminho político da oposição no Legislativo goitacá. Por fim, ele dará sua projeção às urnas de outubro a deputado estadual e federal, governador do RJ e presidente da República.
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Dona Aída da Rocha Siqueira faleceu no último sábado, dia 19, mesmo dia em que completou 98 anos. Fez a passagem em casa, como queria e onde toda a estrutura hospitalar tinha sido instalada. Após uma infecção por Covid — para a qual tinha tomado as três doses de vacina — cerca de um mês antes de morrer, ela não resistiu à falência múltipla dos órgãos. Foi velada e sepultada na tarde de domingo (20), no Campo da Paz.
Dona Aída deixou os filhos Francisco Roberto, Sebastião José, Jayme Cézar, Silvana Dorotéa e Sheilla Siqueira; 15 netos e 16 bisnetos. E o legado de uma vida digna. Que hoje foi lembrado por sua filha Silvana, a SilSiqueira, amiga muito querida e escritora, em texto que segue abaixo na transcrição pungente do que foi e permanecerá sendo a sua mãe:
Mãe
Foi num dia de domingo, como cantava Tim Maia, de quem ela era fã.
Foi depois de uma vitória por 3 x 0 do Fluminense, “o melhor time”, como ela dizia.
Praticante de yoga até os seus 90 e poucos anos, colecionava imagem do Ganesha e lia sobre a vida de Yogananda. Fomos a San Diego, nos Estados Unidos, para ela visitar a casa onde o Yogue passou os seus últimos dias. Um sonho realizado.
Católica, devota de São José, contribuía religiosamente com a Canção Nova. Também lia a sorte no tarô e via o futuro na bola de cristal. Era múltipla!
Considerava o mundo um celeiro de oportunidades no qual deveríamos estar abertos ao conhecimento e às novas experiências.
Corajosa. Independente. Ousava!
Nos anos 60 montou um estúdio de beleza na casa da rua do Gás onde atendia às amigas: limpeza e tratamento da pele. Vendia Avon. Sempre foi muito vaidosa.
Academia de ginástica, musculação, pilates. Era puro movimento!
Quando menina, tinha sonho de ser bailarina. Mas a família desaprovava: moça direita não dança.
Um cafezinho era sempre bem-vindo. Só não podia ser “café rosita” — uma das expressões criadas por ela para designar um café frio. Criou outras, que somente a família entendia: chapelão, amara, catatau, caboio, balançou a roseira, Chico Russo, entre tantas.
Comia pouco. No passado foi adepta da alimentação macrobiótica e nos ensinou que açúcar e sal não são benéficos à saúde.
Não gostava de sol. Afirmava que envelhecia. E se besuntava de cremes e mais cremes, chapéu, óculos escuros para proteger e preservar a beleza da pele. Ir à praia era um sacrifício para ela.
Por onde passava deixava um rastro de alegria. Era um espírito livre de preconceitos, muito humana, sempre acolheu as pessoas sem rotular, sem julgar.
Carregava uma bondade inocente.
Tinha alma de artista! Tinha talento nato.
Começou a desenhar quando ainda era muito pequena; usando carvão queimado, ensaiava os primeiros traços. Saltou do carvão para os pincéis e deixou um acervo magnífico de porcelanas e telas assinadas com muito orgulho.
Com o passar dos anos foi perdendo a audição, mas não a vaidade. Aparelho auditivo? Apenas intra-auricular. E, contrariando todas as premissas, comprou um violão e contratou um professor particular. Sonhava tocar “Como é grande o meu amor por você”.
Ficou viúva aos 83 anos. Viveu o luto honrando o grande parceiro de vida. Deu a volta por cima dedicando-se aos filhos, netos, bisnetos e, principalmente, a si mesma.
Viajou meio mundo. Do calor de Corumbá ao frio da Suíça, aproveitou cada oportunidade.
“Esquenta a cabeça, não!” era quase que um mantra. Muito otimista, tinha sempre uma palavra suave, um conselho sábio, uma saída certeira para um problema que nos afligisse.
Era detentora da sabedoria das crianças.
Deixou no cavalete uma tela inacabada. São rosas que não falam, mas exalam o perfume da pessoa maravilhosa que foi.
Finalizo com o trecho de uma canção que eu costumava cantar para ela:
“ Não se admire se um dia, um beija-flor invadir a porta da sua casa, te der um beijo e partir … fui eu que mandei o beijo, que é pra matar meu desejo, faz tempo que eu não te vejo, ai que saudade d’ocê”.
Juninho falará também da suspensão da eleição do resto da Mesa Diretora e de como isso tem deixado a Câmara sem sessões, como ocorreu ontem (22) e hoje (23). Por fim ele dará sua projeção às urnas de outubro a deputado, governador do RJ e presidente da República.
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“Eu sou baiano. Lógico que também adoro Castro Alves. Mas não dá para escrever poesia, como os românticos do século 19, à beira do século 21. Você tem que ler o João Cabral, tem que ler o João Cabral. Aqui, aqui, pegue e leia, pegue e leia”. Naquela primeira metade dos anos 1990, foi o que me disse o cineasta Geraldo Sarno, em seu apartamento no edifício Salete, tomado por prateleiras de livros até nos banheiros. Falou com seu acento baiano e repetindo as palavras, como fazia quando queria reforçar a importância do que dizia, enquanto me dava para ler, página do livro aberta, o poema “O Cão Sem Plumas”, do mestre pernambucano João Cabral de Melo Neto. Foi meu primeiro contato com o grande poeta modernista brasileiro. Depois do qual meus versos e minha vida, então com pouco mais de 20 anos, nunca mais seriam os mesmos.
Soube na manhã de hoje pela imprensa nacional que Geraldo morreu na noite de ontem (23) aos 83 anos, por complicações de Covid, no Hospital Copa D’Or, no Rio. Amigo, conterrâneo, contemporâneo e camarada em armas de Glauber Rocha, a quem considerava o único gênio que conheceu em vida, era ele mesmo considerado o maior cineasta documentarista do Cinema Novo, movimento dos anos 1960 e 1970 que, influenciado pelo neorrealismo italiano de a Nouvelle Vague francesa, buscava romper com a influência do cinema comercial de Hollywood para retratar e discutir nas telas as abissais diferenças socioeconômicas do Brasil. Em uma entrevista, o diretor Héctor Babenco, argentino naturalizado brasileiro, revelou que decidiu sair da Argentina ao Brasil após assistir ao curta de documentário “Viramundo” (1965), de Geraldo, que trata da migração dos nordestinos como ele ao centro-sul do país.
Confira abaixo “Viramundo”, com direção e narração de Geraldo Sarno:
Enquanto trabalhou na Uenf, de 1993 a 1998, Geraldo também marcou a história recente de Campos. E, talvez irrelevante, a minha. Ele meio que meio que me “adotou” como filho quando trabalhamos juntos na Uenf. Pouco depois que a universidade idealizada pelo antropólogo Darcy Ribeiro se instalou em Campos, prestei concurso para auxiliar de fonoteca naqueles tempos pré-Spotfy, para a Casa de Cultura Villa Maria. Cinéfilo, minha intenção era, uma vez dentro, tentar me aproximar do projeto do Escola Brasileira de Cinema e Televisão (EBCTV). Do qual Geraldo era figura de proa e ao qual o Solar do Colégio, primeira construção de Campos, no século 17, pelos jesuítas, seria reformado no governo estadual Marcello Alencar (PSDB). A ideia era reproduzir aqui o modelo de internato da Escola de Cinema de Cuba. Muito antes de abrigar o Arquivo Público Municipal, estive presente na inauguração da reforma do prédio histórico. Como teria a chance de visitá-lo em várias outras oportunidades.
Dos canaviais cubanos aos campistas, eram três vagas incialmente. E fiquei em quarto lugar, entre algumas centenas de candidatos. Alguns meses depois, cruzei por acaso com o hoje falecido jornalista e amigo Joca Muylaert no Oásis, numa parada entre Campos e o Rio de Janeiro. Diretor à época da Villa Maria e sabendo que eu havia prestado o concurso, raspando na aprovação, ele me disse que estava pensando em reconvocar mais pessoas para trabalhar. O que se cumpriu pouco depois, facultando minha entrada na Uenf.
Aproximei-me do Geraldo, que frequentava a Villa Maria. Por coincidência, ele estava buscando realizar lá vários cursos preparatórios aos candidatos campistas para a vinda da Escola de Cinema, em áreas como direção, produção, roteiro, montagem, iluminação, fotografia, interpretação. Para os quais trouxe a Campos várias referências dessas áreas no Brasil e na América Latina. Colei com Geraldo e fui me integrando às suas atividades, ao lado também do produtor cubano Alfredo Calvino e da diretora argentina Patricia Martin. Quem estava à frente do projeto era outro cineasta baiano, Orlando Senna, amigo já de longa data de Geraldo e ex-diretor da Escola de Cinema de Cuba.
Além de Cabral na poesia, lida a que sempre me estimulou, Geraldo me apresentou outros mestres, que ampliariam muito a minha visão ainda juvenil do mundo. Na sua especialidade, que era o cinema documentário, me apresentou o mestre estadunidense Robert Flaherty, cuja obra prima “O Homem de Aran” (1934), sobre a vida dura de pescadores dos gigantescos tubarões Basking numa ilha irlandesa, seguramente está até hoje entre os 10 melhores filmes que assisti. Também me apresentou à estética revolucionária dos filmes de propaganda nazista da mestra alemã Leni Riefenstahl, nos documentários “Triunfo da Vontade” (1935), sobre o Congresso do Partido Nazista de 1934 na cidade de Nuremberg, e “Olympia” (1938), sobre as Olimpíadas de Berlim de 1936. Seu cineasta preferido era o mestre soviético (hoje, letão) da ficção Serguei Eisenstein, do qual já conhecia o aclamado “Encouraçado Potemkin” (1925). Mas Geraldo me mostrou também “Outubro” (1927), refilmagem 10 anos depois da revolução Russa de 1917, com os mesmos protagonistas do fato real.
Entre um filme e outro, um livro e outro, uma dica sobre a arte e a vida aqui e ali, Geraldo me propiciou também outros encontros. Nos cursos preparatórios gratuitos na Villa Maria para a vinda da EBCTV, lembro de uma conversa longa que mantive com o hoje falecido cineasta Alberto Salvá, espanhol radicado no Brasil, diretor do grande sucesso “A Menina do Lado” (1987), com Reginaldo Faria e que lançaria Flávia Monteiro, musa “Lolita” dos anos 1980 e 1990. Salvá conferia a exibição do filme que tinha preparado para ministrar o curso, com várias cenas marcantes do cinema. Na escolhida por ele do clássico musical “Cantando na Chuva” (1952), de Stanley Dolan e Gene Kelly, no lugar da cena icônica com o canto e a dança de Kelly que batiza o filme, ele optou por outra. Após alguns segundos de exibição, no início da melodia, cravei: “‘Make ‘Em Laugh’ (“Faça-os Rir”), com Donald O’Connor”. Impressionado, Salvá aprovou: “Você também é um cinéfilo!”. Algumas horas depois, no meio do curso, ele reforçou meu orgulho quando contou a história a todos os presentes ao exibir a cena. Quando o diretor morreu, em 2011, já com as facilidades do YouTube, coloquei a cena de O’Connor para lembrar daquele feliz encontro, quase 20 anos antes, na Villa. E, no lugar de chorar sozinho pelo que tinha ficado para trás, ri.
Lembro também que era uma noite de 1993, novamente no apartamento de Geraldo no Salete, porque assistíamos na TV da sala, em sua primeira exibição naquele ano, a minissérie da Rede Globo “Agosto”, ficção sobre o entorno do suicídio de Getúlio Vargas baseada no romance homônimo de Rubem Fonseca. Estávamos Geraldo, eu e um amigo dele, o produtor e ator argentino Tito Almejeiras, que tinha vindo a Campos dar um curso de produção na Villa. Mesmo sendo os dois de uma geração que, com o Cinema Novo, rompeu com a influência anterior de Hollywood nas populares chanchadas brasileiras da Atlântida, da qual Carlos Manga, produtor da minissérie global, era egresso, Geraldo exclamou sobre ele, enquanto observava atento a TV: “O velho está afiado!”. Ao que Tito concordou, no braço geracional a torcer: “É verdade!”.
Com a deixa, provoquei os dois, afirmando que o mestre John Ford, ao estabelecer a mitologia dos EUA com seus westerns, tinha marcado mais o cinema do que o marxismo também genial de Eisenstein. Geraldo era zen e não comprou a briga. Mas Tito reagiu em seu portunhol: “John Ford glorificou a matança sangrenta dos índios nos EUA”. Ao que respondi: “Se é para falar de derramamento de sangue, não há ninguém melhor que os espanhóis”. O descendente de espanhóis baixou a guarda e aquiesceu, reflexivo, com o mesmo: “É verdade!”.
No auge daqueles cursos preparatórios para a EBCTV, todos amarrados por Geraldo com seus contatos no mundo do cinema, chegamos a realizar o lançamento em Campos do filme “Perfume de Gardênia” (1992), de Guilherme de Almeida Prado, no já então decadente Cinema Goitacá, antes de ser convertido como cristão novo à heresia de se tornar templo da Igreja Universal do Reino de Deus. Como a exorcizar sem consciência o futuro daquele espaço, eu e Guilherme saímos juntos após a exibição do seu filme, prestigiado com casa lotada, para lhe apresentar a noite campista, até quase o nascer do dia.
Bem mais suave era a sensibilidade de Geraldo. Um dia chegou à casa que eu tinha alugado para sair da casa dos meus pais e morar sozinho numa Atafona pré-Porto do Açu, e me gritou do portão. Como estava treinando boxe no saco de pancadas, nos fundos, gritei que ele poderia ir entrando. Atraído pelo barulho dos murros sucessivos no saco, ele chegou observou e nada disse, aparentemente indiferente, voltando para me esperar na sala. Na sua visita seguinte à minha casa, ele trouxe de presente uma fita de VHS. Era “Rocco e seus Irmãos” (1960), clássico do neorrealismo italiano do mestre Luchino Visconti, com o galã francês Alain Delon ainda jovem como boxeador, que pude assistir pela primeira vez. O carinho paternal de Geraldo se sobressaía mesmo em meio à aparente violência. Como podia ser também sintetizado no livro “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”, do filósofo alemão Eugen Herrigel, com que ele era invocado e também fez questão de me presentear.
Um final de semana alongado por feriado, que não me lembro qual, Geraldo convidou a mim e a minha namorada de então para irmos com ele e sua esposa à época, Helô, ao sítio dele na área rural de Friburgo. Tomamos vinho, comemos fondue de carne e conversamos bastante. Num passeio pela propriedade, caminhamos pelo curso do riacho de águas transparentes que o cortava até uma piscina rasa que ele tinha instalado, sem interromper o curso d’água. E me contou, como se revelasse um grande segredo, que a função era de bebedouro aos animais silvestres que habitavam aquele pedaço preservado de mata atlântica. Depois, caminhando entre as árvores já altas que ele também tinha plantado, me disse: “Eu plantei elas ainda mudas. Hoje são árvores. Quando eu passeio entre elas, me olham de cima para baixo e conversam: ‘Olha Deus caminhando lá em embaixo. Olha como ele é pequeno e careca!’”, disse, rindo como criança.
Pelas dificuldades de adaptação do Solar dos Jesuítas, espaço tombado pelo Iphan, para instalação de um sistema de hotelaria que permitisse um regime de internato como a Escola de Cinema de Cuba, além de disputas internas por equipamento com o curso de cinema já existente na UFF-Niterói, o projeto de EBCTV acabaria abandonado. Quando percebi isso, fiz o que achava digno fazer: pedi exoneração do cargo público e voltei ao jornalismo, que nunca havia abandonado de todo. Depois de mim, Geraldo “adotaria” outro filho campista, o produtor e diretor de TV Vitor Sendra, filho da grande literata e dramaturga Arlete Sendra. Os dois trabalhariam juntos no Laboratório de Pesquisa e Tecnologia da Imagem do Centro de Ciências do Homem (CCH) da Uenf e, depois, no Projeto Rede Escola, junto à secretaria estadual de Educação e a TVE, produzindo conteúdos para teleducação.
No final dos anos 1990, com Geraldo já fora da Uenf, ele me chamou para um almoço na sua casa no Rio, na rua do Píer da Barra da Tijuca. Não pude ficar muito tempo, mas deu para bater um papo, mais ouvindo que falando, como o diretor cearense Zelito Viana, irmão do grande Chico Anysio e pai do ator Marcos Palmeira. Após, me despedi de Geraldo, que estava ocupado, dando atenção a outros convidados. Em 2008, soube e fiquei muito feliz com sua premiação como melhor diretor no Festival de Brasília, pelo filme “Tudo Isto Me Parece Um Sonho”, sobre a história do general pernambucano Ignácio Abreu e Lima, que lutou ao lado de Simon Bolívar, nas guerras de batalhas de libertação da Colômbia, da Venezuela e do Peru, da Coroa Espanhola no século 19. Seu último filme foi outra ficção, “Sertânia” (2020), que roteirizou, dirigiu e montou, com sua história não linear sobre os delírios do jagunço Antão.
Na última fase formativa da minha vida, quando iniciava a vida adulta, Geraldo foi para mim um mestre. Sem condescendência, sempre instigando o meu próprio olhar crítico, ensinou o que ler e como ler, o que ver e como ver, enquanto tentava apontar possíveis obstáculos e atalhos. Entre os que tive chance de conviver, talvez só o historiador Arthur Soffiati e o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa tiveram tanta influência intelectual e sensitiva sobre o homem que me tornei. Curioso é que Aluysio parecia saber disso. E, no lugar de ciúme, sempre demonstrou gratidão a quem serviu ao seu filho durante um tempo como “pai”.
Meu último encontro com Geraldo, com meu próprio filho já nascido, de quem lhe mostrei a foto, foi nos anos 2000. Entre um chope e outro, passamos a tarde conversando num bar à beira-mar de Copacabana. Em certa altura do papo, já mais soltos pelos chopes, ele parou num daqueles transes zen de quando se abstraía em pensamento. Após uns segundos, olhou por cima dos óculos de grau, observando o zoológico humano que desfilava na avenida Atlântica, entre nós e o oceano. E me indagou, em nosso último diálogo que guardo na memória:
— Está vendo todas essas pessoas, Aluysio? Está vendo todas essas pessoas indo pra lá e pra cá?
— Estou vendo, Geraldo. O que é que tem?
— São todos ovelhas, entende? São todos ovelhas balindo “bé”, balindo “bé, bééé”, entende? São ovelhas que seguem e balem felizes, a maioria sem saber, ao abate no matadouro!