“Às vezes, se fala na brutalidade animal do ser humano, mas isso é incrivelmente injusto e insultante para as feras; um animal nunca poderia ser tão cruel como o ser humano, tão artisticamente cruel”
(Fiódor Dostoiévski, em “Os Irmãos Karamazov”)
Morto no último dia 15, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor definiu talvez a grande lição sobre os atentados do terrorismo islâmico às Torres Gêmeas do World Trade Center, na Nova York de 11 de setembro de 2001:
— Deus está vivo. E se chama Alá.
Descendente de imigrantes judeus libaneses, educado em colégio de jesuítas e ateu, Jabor alertava que o ataque ao coração do novo Império Romano era a realidade esbofeteando a cara de todo o Ocidente. Soberbo na leitura porca do filósofo alemão Friederich Nietzsche, que no século 19 decretou: “Deus está morto”. Arrogante com o “fim da História” decretada pelo filósofo e economista liberal Francis Fukuyama, logo após a dissolução da comunista União Soviética em 1991.
Para quem passou por Renascimento, Reforma, colonização das Américas e Iluminismo, talvez. A quem, sem passar por nada disso, chegou às mesmas revoluções industrial e digital, não. Cada qual com suas particularidades, são os casos das civilizações Islâmica, Chinesa e Indiana. Que dividem o mesmo mundo e tempo conosco, Ocidente greco-romano-judaico-cristão. Fruto também deste, muito antes de ser a principal herdeira soviética, a Rússia é também um hibridismo geográfico e antropológico: enclave europeu espraiado por toda a latitude gigantesca da Ásia. Nela, é tão eslava, viking e católica ortodoxa, quanto mongol, tártara e islâmica.
As civilizações são diferentes. Como não são iguais os países. Prova disso foi dada na noite de ontem, quando o Conselho de Segurança da ONU, reunido na Nova York capada das Torres Gêmeas, vetou a resolução pela condenação da invasão injustificada da Rússia de Vladimir Putin, na madrugada brasileira de quinta, à vizinha e até então soberana Ucrânia. Dos 15 países votantes, 11 foram a favor, incluindo o Brasil de um Bolsonaro com medo de outubro, três se abstiveram. Como, então, foi reprovada? Simples. Só cinco têm assento permanente no Conselho e o poder unitário de veto: EUA, Grã-Bretanha, França, China e Rússia. Esta, por óbvio, vetou.
A Ucrânia não é só vizinha da Rússia. É sua irmã mais velha. Está para Rússia como a Bahia ao Brasil. Foi lá que tudo começou. E para quem acha que todo baiano é brasileiro, fica a autodefinição do cineasta Glauber Rocha aos seus anfitriões no tempo de exílio em Cuba, no auge da ditadura militar no Brasil, retratada no documentário “Rocha que Voa” (2002), dirigido por seu filho Eryk Rocha: “Eu não sou brasileiro, eu sou baiano”. A primeira vez que o nome Rússia surgiu nos mapas, na Idade Média do século 9, foi como Rússia de Quieve — e Kiev, desde ontem cercada pelo rápido avanço militar russo, é até hoje a capital da Ucrânia.
No tempo dos czares de todas as Rússias, do século 18 à Revolução Russa de 1917, Rússia e Ucrânia formaram o mesmo país. E continuaram juntas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que chegou ao fim em 1991. Foi justamente quando três destas repúblicas se tornaram independentes: Ucrânia, Rússia e Bielorússia (ou Belarus). Esta, hoje governada pelo autocrata tresloucado Aleksandr Lukashenko, aliado de Putin e chamado de “o último ditador da Europa”, que franqueou o caminho para os russos a Kiev. Confiante na fraternidade ancestral da sua relação com a Rússia, a Ucrânia se separou e passou a ela todo o arsenal nuclear instalado em seu território pela URSS. Quando o fez, de bom grado, a Ucrânia era a terceira potência atômica do mundo, atrás apenas da Rússia e dos EUA.
Se a Ucrânia tivesse mantido seu arsenal nuclear, do qual era tão herdeira quanto a Rússia, Putin hoje desinflaria o peito de pombo, arrulhando enquanto finge rosnar. O país foi ingênuo há 31 anos. Como foi ingênuo seu ainda presidente, o ex-comediante Volodymyr Zelensky. Por acreditar que, sem pertencer à Otan, o Ocidente viria em sua ajuda na guerra contra o Golias que a Ucrânia enfrenta sozinha. Como Davi, mas sem as mesmas virtudes bélicas do rei da Antiga Israel, Zelensky é judeu. E é acusado por Putin, ex-agente da Gestapo soviética da KGB, de ser neonazista. Se a URSS perdeu 20 milhões de vidas para derrotar a Alemanha Nazista na II Guerra, 8 milhões dessas almas eram ucranianas. Foi às margens do mesmo rio Dniepre que os tanques russos cruzam agora na Ucrânia, que os avôs dos antagonistas de hoje, juntos, derrotaram os nazistas em 1943, numa das maiores batalhas de blindados da História.
Capaz de matar dissidentes russos envenenados até na Inglaterra, de proibir que as russas deem queixa se agredidas fisicamente pelos maridos e de agora reprimir com a polícia as centenas de manifestações na Rússia contra sua invasão à Ucrânia, Putin é moralmente indefensável. A Rússia, não. Após a queda do Muro de Berlim em 1989, os EUA e a Alemanha temiam que a URSS fosse reagir militarmente, como fez na invasão da Hungria em 1956 e da ex-Tchecoslováquia em 1968. Último presidente soviético, Mikhail Gorbatchov ouviu o pedido, feito em 1990 por James Baker, então secretário de Estado dos EUA no governo George Bush pai, e pelo então chanceler da Alemanha, Helmut Kohl, de não intervir na reunificação germânica. A URSS prometeu não se meter. E cumpriu. Em troca, Gorbachov pediu que a Otan não agregasse países da área de influência soviética. Os EUA não cumpriram. Onze países do extinto Pacto de Varsóvia, feito pela URSS em resposta à Otan, hoje integram esta.
Os interesses geopolíticos da Rússia são moralmente justos. Os métodos de Putin, não. Mas, ainda que seja um canalha amoral, ele também mostrou ser uma águia geopolítica nestes seus 22 anos no poder. Como seu ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, tem só meio século de experiência. Com uma aliada China para chamar de sua e o recorde de US$ 630 bilhões em reservas cambiais, a Rússia guardou gordura para sobreviver às sanções econômicas do Ocidente sem passar fome no inverno da guerra. Esta sempre tem por característica a imposição cruel da realidade esbofeteando a face das idealizações.
Em se tratando de um combate, olhar para Putin e Lavrov em um canto do ringue e, no outro, um Emmanuel Macron preocupado com as eleições presidenciais da França em abril, um Boris Johnson aliviado por desviar as atenções dos comes e bebes que promoveu enquanto determinava à Grã-Bretanha isolamento social na pandemia da Covid, um Olaf Scholz que acabou de assumir como chanceler da Alemanha sob a sombra densa da sua antecessora Angela Merkel, e um Joe Biden humilhado pela retirada desastrosa dos EUA do Afeganistão, quem apostaria contra os dois primeiros? Biden, que derrotou nas urnas de 2020 um Donald Trump aliado de Putin, parece ser o adversário perfeito para este. Aos 79 anos, é moderado, empático, defensor da energia limpa, das minorias étnicas e de orientação sexual.
Assertivo, frio, exportador do gás que aquece o resto da Europa durante o inverno rigoroso deles, pragmático com as minorias étnicas e perseguidor da sua população LGBT, na defesa da “família tradicional”, Putin ainda assim consegue ser defendido por parte da esquerda mundial. Que é viúva, como a própria Rússia, do Muro de Berlim e da URSS. Na paráfrase de Jabor, a figura e os atos do autocrata russo bradam:
— O macho alfa está vivo. E se chama Putin.
Ao se alistarem heroicamente na defesa armada do seu país contra a invasão russa, os irmãos e ex-campeões Vitali e Wladimir Klitschko dominaram o mundo do boxe peso pesado profissional entre os anos 1990 e 2010. Vitali é o prefeito de Kiev. Seja na política ou no ringue, os dois sabem bem que luta não é briga. A contagem já está aberta. Na lona, como depois do 11 de setembro, o mundo que se levantar nunca mais será o mesmo.
Publicado hoje na Folha da Manhã.
Outro belo texto que sai cirúrgico, trazido por esse seu jeito claro e preciso de escrever, Aluysio!
Tempos preocupantes , amigo!!