A Ucrânia, a Rússia e o Ocidente
Por Igor Franco
Em 24 de fevereiro, sob o pretexto de “desnazificar a Ucrânia”, Vladimir Putin lançava as tropas russas contra o território do país vizinho. Vinte dias depois, a OMS reporta 43 ataques a hospitais. Dez civis na fila do pão em Chernihiv, uma cidade já tomada pelos russos, também foram “desnazificados”, alvejados por soldados russos à queima-roupa. Cidades inteiras, como Mariupol, vêm sendo “desnazificadas” pelas tropas russas que bombardeiam a esmo áreas residenciais, fatos amplamente documentados pela imprensa independente e livre que cobre a guerra em território ucraniano. Nesse momento, mais de cem crianças ucranianas foram assassinadas pelo exército russo.
O ataque a alvos civis não é um efeito colateral da guerra. A prática é característica marcante nas ações do exército russo e foi exercitada com maestria em intervenções militares anteriores na Síria e na Chechênia. Na Ucrânia, porém, a covardia russa ganha contornos ainda mais dramáticos: acossados por uma campanha militar até agora desastrosa em termos dos objetivos traçados, Putin e suas tropas tentam esticar a corda em busca de abalar a moral civil ucraniana, forçando a rendição do governo Zelensky, que seria pressionado a poupar vidas da sua população.
O diagnóstico mais factível dá conta da arrogância de Putin ao decidir pela guerra: embebido pelo sucesso da rápida tomada da Criméia em 2014 e por relatos de seus generais — que jamais ousariam contestar um líder acostumado a varrer opositores —, o presidente russo acreditou que poderia encerrar a questão em poucos dias. No plano original, exército russo rapidamente esmagaria qualquer reação militar de um exército fraco, pouco treinado e pouco numeroso, impondo temor às tropas remanescentes. Como consequência, o inexperiente governo ucraniano capitularia diante de uma pressão popular simpática aos invasores.
Na prática, as tropas russas foram surpreendidas por forças ucranianas muito mais treinadas desde que perderam o território da Criméia, mais bem equipadas com armas da Otan e um sentimento de defesa da pátria que sobrepõe em muito a moral dos soldados russos enviados ao campo de batalha sem uma boa justificativa de seus comandantes. Como consequência, as baixas de tropas militares, segundo relatórios de inteligência dos EUA, estão na casa dos milhares, além de centenas de equipamentos destruídos, como tanques, helicópteros e aviões militares.
Diante do atoleiro em que afundou suas tropas e na impossibilidade de apresentar aos seus cidadãos efeitos concretos da guerra — chamada pela propaganda russa de “operação militar especial” —, Putin dobra a aposta no autoritarismo e nas ameaças crescentes. Cada vez mais parecido com uma ditadura, o regime russo aprovou leis duras contra veículos de imprensa e civis que noticiem a guerra por qualquer outra ótica que não seja a narrativa oficial do Kremlin. Forjados na escola de desinformação soviética, que levou à perfeição a disseminação de mentiras como verdades oficiais, os burocratas russos responsáveis pela propaganda do governo já elencaram a Otan, supostas armas biológicas e nucleares e nazistas como culpados pelo conflito.
Hoje, é dado como certo que grande parte da população russa não tem ideia do que ocorre além das suas fronteiras, já que a parca liberdade de expressão e independência jornalística que resistia ao autoritarismo russo foram liquidadas desde o início da guerra. Em pronunciamento recente, o presidente russo ameaçou realizar expurgos de dissidentes e colaboradores que se aproveitassem das benesses de viver numa democracia livre, enquanto mantém seus negócios na Rússia.
Outro erro crasso do autocrata russo, aparentemente, se deu fora da estratégia de guerra. Amparado na experiência histórica do pouco engajamento ocidental após as ações militares na Geórgia em 2008 e a anexação da Criméia, Putin desenhou o cenário com um fraco e impopular Biden nos EUA e o recém-empossado Scholz na Alemanha incapazes de liderar uma ação mais enérgica contra a Rússia.
A aposta de Putin na fraqueza do Ocidente tinha sua razão de ser. A conhecida ordem liberal passa por uma grande contestação além das suas fronteiras. A emergência de potências autoritárias, notadamente a China, mas da qual faz parte a própria Rússia empoderada pelo farto fluxo de recursos financeiros de uma Europa carente de gás e petróleo, faz sombra à hegemonia americana – bastião das democracias liberais. O possível surgimento de uma alternativa ao modelo que foi disseminado entre os países desde o fim da 2ª Guerra e, posteriormente, após a Queda do Muro de Berlim, é entendido pelo Ocidente como uma ameaça à estabilidade mundial. No lugar do trinômio “democracia, liberdade civil e economia de mercado”, China e Rússia propõem autoritarismo e uma espécie de simbiose entre os interesses políticos e econômicos, mas que encontra amplo espaço de crescimento entre uma população numerosa, bem escolarizada e ávida por mais conforto – ainda que isso signifique menos liberdades civis.
Para dentro de suas fronteiras, temas como xenofobia, desigualdade e identitarismo assombram os líderes políticos e abalam as estruturas tradicionais da democracia, que parecem incapazes de responder às angústias e insatisfações de cidadãos já acostumados à liberdade e à bonança material como parte da paisagem. Nesse cenário, líderes populistas e anti-estabilishment encontram terreno fértil para prosperar. Sob a justificativa de retomarem os valores tradicionais desse sistema, apenas contribuem para torná-lo ainda mais frágil e fragmentado. Para Putin, provavelmente a invasão do Capitólio no ano passado era um sinal forte de quão fraco o Ocidente estava.
A resposta das nações, entretanto, foi a maior da história em muitos aspectos, desde o fim da Guerra Fria. Rapidamente, as mais graves sanções econômicas já impostas foram aplicadas à Rússia, tornando, na prática, o país um pária internacional, desconectado das principais cadeias produtivas e financeiras do mundo. Além disso, bilhões de dólares em armas foram doados à Ucrânia e vem sendo determinante para a contenção dos agressores. Porém, o aspecto mais relevante da reação ocidental foi a condenação quase unânime da agressão russa e a reafirmação de postulados básicos de respeito à soberania, democracia e direitos humanos barbaramente e injustificadamente atacados.
Diante do maior desafio da ordem estabelecida no Pós-Guerra, entre o “otimismo temerário e a ruína final”, nas palavras de Hannah Arendt, cujas reflexões sobre a ameaça do totalitarismo tornam-se novamente atuais após quase 80 anos, que o Ocidente possa reencontrar o equilíbrio nos valores que permitiram ao mundo gozar do maior período de paz e desenvolvimento jamais vistos na história humana.
A essa altura dos acontecimentos, o horror imposto pelas tropas russas à população ucraniana só encontra apoio e simpatia nos degenerados e descerebrados que subordinam todo e qualquer valor aos objetivos políticos de sua simpatia. Que importa a vida de milhares de pessoas quando está em jogo a derrocada dos valores liberais que tanto odiamos? Desses, nada se espera ou surpreende. Pessoas com o mínimo senso moral ou de compaixão já entenderam que, nessa guerra, o papel de agressor e vítima está perfeitamente definido. O lado certo e o errado poucas vezes foram tão explícitos.
Publicado hoje na Folha da Manhã.