Na falta que faz a Campos, Makhoul hoje faria 77 anos

 

Médico neurologista de brilho, responsável pela consolidação da Unimed em Campos e do Hospital Escola Álvaro Alvim, Makhoul Mossallem foi também o candidato a prefeito do município mais votado na história do PT, partido ao qual nunca se furtou a críticas. Estimado amigo, ele hoje completaria 77 anos. Em meu nome e, creio, de todos que o conheceram, é saudosa a memória desse libanês goitacá. Cuja falta é ainda mais sentida nestes tristes dias atuais de indigência de espírito público na política da cidade que ele tanto amou.

Makhoul morreu em 1º de julho de 2020, por complicações da Covid-19. No dia seguinte, publiquei um artigo sobre um pouco da sua história, que se entrelaça com a de Campos e a minha própria. Assim como outro, publicado à época por meu filho, o jornalista Ícaro Barbosa, que também foi um ex-paciente do grande médico humanista.

Reproduzo os dois textos abaixo, em homenagem a Makhoul. Assim como um seu vídeo, onde ele estabelece, do árabe materno ao português da sua adoção brasileira, uma ponte entre as duas culturas da qual foi fruto. E que faz parte do documentário “Memórias da Imigração”, do Arquivo Público Municipal de Campos em parceria com a TV Câmara, dirigido por Fred Parente.

 

“Desde que chegaste ao mundo do ser,

uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.

Primeiro, foste mineral;

depois, te tornaste planta,

e mais tarde, animal.

Como pode isto ser segredo para ti?

 

Finalmente, foste feito homem,

com conhecimento, razão e fé.

Contempla teu corpo — um punhado de pó —

vê quão perfeito se tornou!

 

Quando tiveres cumprido tua jornada,

decerto hás de regressar como anjo;

depois disso, terás terminado de vez com a terra,

e tua estação há de ser o céu.”

 

(Jalal al-Din Rumi, século XIII)

 

Makhoul foi três vezes candidato a prefeito de Campos pelo PT, mas nunca deixou de ser crítico ao partido e lideranças nacionais como os ex-presidentes Lula e Dilma (Foto: Folha da Manhã)

 

 

Histórias de Makhoul

 

Era uma tarde quente campista, na Santa Casa de Misericórdia, no verão de 1992. E o neurocirurgião Makhoul Moussallem bateu o martelo: “Eu te dou meia hora para decidir se vai levar ele ao Rio, para operar com Paulo Niemayer. Não discuto competência, mas a técnica é a mesma. Com a hemorragia comprimindo o cérebro, o problema dele é tempo. Se você não decidir, eu abro a cabeça dele e opero sem a sua autorização. E a responsabilidade deixa de ser sua e passa a ser minha”.

Assertivo, sincero e corajoso, características que sempre o distinguiram entre os homens, foi o que Makhoul disse ao jornalista Aluysio Barbosa sobre o filho homônimo deste, então com 19 anos, inconsciente e moribundo sobre uma maca. Horas antes, subira em um telhado de Grussaí para pegar uma bola de frescobol, escorregara a caíra de uma altura de três metros. Sem um galo por fora, a fronte do seu crânio arrebentara por dentro. Se morresse, o faria conhecendo pouco o calor de uma mulher, sem ter um filho ou plantar uma árvore.

Entre lapsos rápidos de semiconsciência, a última coisa que se lembrava, antes de entrar na sala de cirurgia, foi virar a cabeça ao lado, agonizando, para ver seu pai sentado em uma cadeira, chorando em prantos e amparado pela mãe, mulher de têmpera mais forte, de pé ao seu lado. Após as horas de cirurgia, quando os pais foram levados para ver o resultado, diante da incerteza da mãe em saber se aquele corpo inerte ainda era seu filho, Makhoul deu uns tapas no rosto do paciente. Que foram se tornando mais fortes em busca de reação.

Mesmo de olhos fechados e ainda sob efeito da anestesia, o recém-operado finalmente reagiu. Ergueu lentamente o punho direito cerrado, ameaçando o murro contra quem acabara de salvar a sua vida. E, naquele hiato entre dois mundos, vociferou na direção de quem não conseguia enxergar, nem distinguir entre salvador ou agressor: “Para, seu filho da puta!”. Foi a senha para que, em meio ao riso aliviado do médico do pai, a mãe finalmente caísse em prantos por reconhecer quem sobrevivera: “É o meu filho!”.

Na manhã seguinte, o médico foi ter com o paciente, já desperto, na UTI da Santa Casa. A quem perguntou: “Você sabe quem sou eu?”. E teve como resposta estranhamente consciente: “Sei. Você é Makhoul. E me operou”. Dali, durante o processo de recuperação e nos anos seguintes, nasceu daquela beira de morte uma amizade sólida para a vida inteira. Na qual o libanês adotado por Campos, ciente e cioso da história milenar do seu povo, abriu a cabeça do jovem curioso também à cultura do Oriente Médio, berço da civilização. Que faria dela um dos seus pilares na formação como homem.

Foi Makhoul quem introduziu o ex-paciente na história dos cananeus, ou fenícios, como os gregos antigos chamaram os libaneses de hoje. Vizinhos e primos semitas dos hebreus, foram os arquitetos do Templo de Salomão. Na Idade do Bronze, legaram ao mundo as navegações marítimas, do Mediterrâneo até o Atlântico, o comércio e um tal de alfabeto. Foram dominados por assírios, babilônios, persas e pelos gregos de Alexandre. Ainda assim, fundaram Cartago no Norte da África, rival de Roma como a grande potência da Idade do Ferro. Com o Islã, seriam dominados pelos árabes, luz do mundo na Idade Média, cuja língua passaram a adotar. Mas nunca deixaram de praticar também o cristianismo, legado romano cuja versão maronita era a religião do médico de Campos, como de grande parte dos libaneses.

Uma coisa é ler sobre isso nos livros. Outra é ouvir da boca de um personagem vivo desse caldeirão da história humana, cônscio da visão, tato, cheiro e sabor de cada ingrediente. Como uma coisa é assistir nos telejornais sobre a questão da Palestina. E outra era ouvir de Makhoul o testemunho adulto da criança que acompanhava o avô, quando este ia correr os campos da sua propriedade rural nas colinas do Líbano, durante a primavera. E topavam com os corpos de crianças palestinas abraçadas às suas mães, degelando com a neve.

Foram essas raízes profundas de cedro do Líbano, árvore símbolo daquele país, que Makhoul fincou no barro massapê de Campos, ainda criança, acompanhado da família, para crescer entre ipês amarelos. E deixar frutos. Além dos seus filhos Luana, Felipe, Camila e Diego, dos seus netos Jonas, Maria Luiza, Eva e Makhoul Neto, da sua enteada Isadora, as tantas vidas que salvou em sua brilhante carreira na medicina. Talvez não tenha sido a todas que ele tenha podido ensinar a saborear tomates cortados com azeite e sal como isca para cerveja, whisky ou vinho. Ou os versos do persa Jalal al-Din Rumi, poeta medieval que nada fica a dever ao seu contemporâneo italiano Dante Alighieri. O que é uma pena, pois conhecer Rumi é como ter a vida salva de novo: “Você não é só uma gota no oceano,/ Você é o próprio oceano dentro de uma gota”.

Era uma tarde quente asiática em Konya, no verão de 2009, no coração espiritual da Turquia, pulsante no peito do planalto da Anatólia. Bem diferente do que quem só conhece o país por suas capitais antiga e atual, Istambul e Ancara, ou a grande cidade portuária de Ismir — a Esmirna bíblica, onde nasceu o grego Homero, pai de todos os poetas — e supõe que o antigo Império Otomano sobrevive apenas nos seus maiores centros urbanos ocidentalizados de hoje.

Dois ex-pacientes de Makhoul, o homem de 37 anos e seu filho de apenas 9 tinham a vantagem de se parecerem fisicamente com turcos, a despeito das suas roupas ocidentais modernas, em meio a mulheres cobertas com burcas. Visitavam o Museu Mevlâna, instalado em um antigo monastério dervixe, da corrente sufista. Mais mística que o islamismo tradicional, foi fundada com base nos ensinamentos teológicos de Rumi, na pregação do amor, da tolerância e da misericórdia. E se caracteriza por homens que entram em estado de adoração, enquanto dançam rodopiando com saias longas e chapéus cônicos. É um local sagrado de peregrinação aos muçulmanos.

Embora não exista a figura dos santos no islamismo, na analogia com o cristianismo, é como se Rumi fosse. O acesso ao interior do seu Mausoléu de mármore, onde fotos são proibidas, se dá por um túnel em forma de “U”, com o túmulo do poeta na base da “letra”. Embora largo e alto, o caminho se estreita pela presença de devotos, como a entrada do Maracanã em jogo de final de campeonato. O único percurso permitido é da direita para a esquerda, como escrevem árabes e judeus, herdeiros do alfabeto consonantal fenício. “Nós ciscamos para dentro e vocês (ocidentais) para fora”, como ironizava Makhoul.

A sensação claustrofóbica no interior do Mausoléu era reforçada não só pelos corpos humanos apertados uns contra os outros. Mas também pelas mulheres, em êxtase religioso, ecoando aqueles sons agudos no movimento intermitente da língua entre os lábios e o palato. Alguns homens batiam as mãos espalmadas às próprias faces. O homem ocidental estava assustado, mas tentava manter a calma. Seja porque não havia retorno possível, seja porque seu filho, criança que segurava firme pela mão e havia metido naquela celebração de fé no meio da Ásia, estava ainda mais.

Até que finalmente tiveram acesso à base mais larga do “U”, no coração do Mausoléu. Nele, o túmulo de Rumi e o epitáfio que o poeta deixou para si: “Quando estivermos mortos,/ Não procure nosso túmulo na terra,/ Mas o encontre no coração dos homens”. Em busca do que Makhoul ensinou sobre sua cultura, dois seus ex-pacientes foram curados de qualquer medo. E, irmanados a mulheres e homens antes diferentes, pai e filho saíram à luz do sol.

Makhoul nunca fez concessões em seus 75 anos de vida. Após vencer dois infartos e um câncer, nem à Covid que o matou na manhã de quarta (01). Mas quis levá-lo na segunda (29), quando lhe causou uma parada cardíaca e a família foi chamada para se despedir. Só para o libanês provar que, como todo campeão, ainda tinha mais um round guardado para lutar.

Makhoul não chegou a governar a cidade que o adotou, como tentou três vezes. Fez e foi muito mais que isso.

Vá em paz, meu irmão fenício e goitacá!

 

Ícaro Barbosa, jornalista

Por Ícaro Barbosa

Makhoul, vou tentar escrever um pouco sobre o senhor. Não posso deixar a única pessoa que viu dentro da minha cabeça, literalmente, partir sem deixar registradas algumas palavras. Na ocasião que o senhor me operou, eu não sabia nem falar, andar ou coisa do gênero, mas acho que não vem ao caso. Tua partida me deixa muito triste. Uma pessoa que eu sempre respeitei e soube que era honesto e íntegro. Tirei meu título aos 16 anos, especificamente para votar no senhor; primeira e última vez que votei no PT (repito, tirei para votar no senhor).

Da última vez que te vi, em Grussaí, em uma festa de aniversário, sentamos juntos na mesa. Brincamos e o senhor zoou da costeleta que eu usava na época. Eu ri. Apesar de não termos tido conversas muito longas ou coisa do tipo, sempre tive e nutri muita simpatia pelo senhor, falando sempre que nos víamos. Não poderia deixar o dia acabar sem registrar em palavras minha admiração e agradecimento ao senhor.

Meus pêsames aos filhos, netos e doutora Vera. Abraços, Makhoul! Vá em paz!

 

 

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Este post tem um comentário

  1. César Peixoto

    São pessoas como ele e o saldoso jornalista Aluysio Barbosa e o promotor Marcello Lessa que nos deixou mas que escreveram a sua história.

Deixe um comentário