Entre jornal, futebol, prosa e música, histórias de Seu Léo

 

José Leonardo Moreira
José Leonardo Moreira

 

Histórias de Seu Léo

 

Coube a mim contratar Leonardo Moreira, Seu Léo, no início dos anos 1990, como motorista da Folha da Manhã. Da qual vestiu a camisa como poucos por mais de três décadas, até o início da pandemia da Covid. E foi na data do meu aniversário de 50 anos, no último 24 de junho, dia de João Batista, que ele fez a passagem após 71 anos de vida, no Oncobeda. Não resistiu à cirurgia para extrair um câncer de garganta.

Soube no início da noite por meu afilhado, Aquiles, que viu a notícia no celular. E a redação da Folha, por conta da data, evitou de me passar. Estava junto também da minha mãe, Diva, que chorou muito ao saber. Tomado de sentimentos contraditórios entre minha própria vida em interseção com a morte de um amigo muito querido, pensei em cancelar o churrasco de aniversário que tinha marcado, também com amigos, no dia seguinte. Mas Diva, refeita, me disse a verdade: “Seu Leonardo seria o primeiro a te dizer para não fazer isso”.

Léo foi bem mais do que um motorista de jornal. Como o saudoso Valdelan Paes antes dele, foi um condutor de volante convertido em jornalista. Repórter e pauteiro inato, não chegou, como Paes, a se aventurar como escriba. Mas qualquer jornalista que já tenha convivido com ele numa redação ou cobertura de rua, mente se disser que não achou um novo fato, personagem, ou ângulo para texto ou foto, a partir dos seus olhos e ouvidos atentos. E da sua boca verborrágica, que quase sempre pontuava as frases com “meu camarada!”.

Passada uma semana da sua morte, faço o que não consegui anestesiado pelo impacto dela. Conto algumas das suas muitas histórias, meu camarada!

Flamenguista típico, a justificar a fama de ufanista chato, responsável pelo prazer que vascaínos, tricolores e botafoguenses têm ao ver o Flamengo perder, superior ao que sentem quando seus próprios times vencem, Léo assistiu ao meu lado às conquistas rubro-negras do Penta e do Hexa no Brasileirão, em 1992 e 2009. Ambas testemunhadas por nós, espremidos nas arquibancadas de quando o Maracanã era o Maracanã.

Na conquista do Brasileiro de 1992, após a vitória de 3 a 0 contra o Botafogo na primeira partida da final, fomos de Campos ao Rio para a segunda. Junto também do amigo Hervezinho Lyzandro, em meio a mais de 122 mil outras pessoas, assistimos ao empate de 2 a 2 que deu o título ao Flamengo do Maestro Júnior, autor do primeiro gol. O jogo ficou tragicamente marcado pela queda do alambrado, pelo qual centenas despencaram da arquibancada ao anel inferior do maior estádio do mundo, matando três pessoas a poucos metros de nós.

 

 

Na conquista do Brasileiro de 2009, no meio da torcida Raça Rubro-Negra, estávamos Léo, eu e meu filho Ícaro, então com apenas 10 anos. E assustado com o gigantismo de um Macara apinhado de mais de 84 mil torcedores. Com o gol de cabeça do zagueiro Ronaldo Angelim, o Flamengo do sérvio Petkovic e de Adriano Imperador suou, mas deu números finais à vitória de virada por 2 a 1, após o Grêmio abrir o placar.

 

 

Entre os Brasileiros de 1992 e 2009, foi em outro Flamengo e Grêmio a passagem para mim mais marcante, por hilária, com Léo. E foi não na conquista, mas na perda de um título nacional. Após o empate de 0 a 0 em Porto Alegre, o Rubro-Negro e o Tricolor Gaúcho decidiram a Copa do Brasil de 1997 no Maracanã.

Com Romário no comando do ataque em dupla com o driblador ponta esquerda Sávio, o Flamengo era favorito. E levava o caneco por 2 a 1 até os 39 minutos do segundo tempo, quando o meia gremista Carlos Miguel igualou o placar. Com o critério de desempate a partir do saldo de gols marcados fora de casa, o clima na saída dos mais de 95 mil torcedores, em sua imensa maioria flamenguistas, era de velório. Descemos as rampas do Maracanã até o metrô, todos calados e de cabeça baixa. Dava para ouvir um alfinete caindo no chão.

 

 

Entramos no vagão do metrô, com a multidão rubro-negra ainda mais espremida do que no Maraca. Leonardo, que nunca conseguia ficar calado muito tempo, quebrou o silêncio sepulcral com uma de suas típicas bravatas. E disse em voz alta:

— É, camarada, o Flamengo tem que pegar é Mirandinha! — bradou em meio à mudez até então só quebrada pelo solavanco de aço conta aço, das rodas nos trilhos, sobre o ponta direita veloz que fazia relativo sucesso à época no Paysandu do Pará, antes de ser comprado para não dar em nada no Corinthians.

Do canto do mesmo vagão, um negão de uns 2 metros de altura por uns 3 de largura, com camiseta do Flamengo das quais saíam braços musculosos mais grossos que as minhas pernas, gritou em voz grave. E resumiu a reação geral à provocação de Léo:

— Cala a boca, gordo burro!

Leonardo ficou vermelho, se contendo para não mandar a tréplica ao colosso de ébano. Ao que asseverei, com voz firme, ao ouvido dele, ambos em pé e agarrados como podíamos pelas mãos às barras superiores do metrô:

— Cale a porra da boca, Léo. Olhe o tamanho do sujeito! E estamos trancados aqui com ele até a próxima estação. Se você der uma resposta e ele partir pra cima, no lugar de apanhar junto, eu vou ajudar a te bater — disse, entre risos e o nervosismo contidos.

Novamente no Rio, mas por motivo diverso, era 2002 quando fui comprar a edição de luxo que a Ediouro havia acabado de lançar da obra prima do prosador francês Marcel Proust. “Em Busca do Tempo Perdido” vinha em três tomos. Na tradução primorosa do hoje falecido poeta carioca Marcelo Py, o primeiro volume reunia “No Caminho de Swann” e “À Sombra das Moças em Flor”; o segundo, “O Caminho de Guermantes” e “Sodoma e Gomorra”; com “A Prisioneira”, “A Fugitiva” e “O Tempo Recuperado” no terceiro.

 

 

 

Sempre curioso e entrão, Léo veio ao quarto do apartamento do Rio, onde estávamos com minha família. E viu como eu estava feliz, como criança de brinquedo novo, com aqueles livros. Expliquei um pouco a ele sobre Proust e sua obra. E percebi que, na saída do quarto, o velho Aluysio Barbosa estava sentado sozinho no sofá da sala, fumando um cigarro que mataria ele e seu inseparável companheiro de compras no Mercado Municipal de Campos.

Como dizia a Léo e algumas pessoas mais próximas, embora bem diferentes de corpo, ele se parecia muito só de face com o grande ator Robert DeNiro, inclusive pela pinta na bochecha. E, o roteiro que lhe dei de improviso, antevendo a reação de Aluysio, seguiu como o veterano astro de Hollywood. Dei-lhe o primeiro tomo de “Em Busca do Tempo Perdido”. E passei com ele o rápido ensaio, cumprido à risca:

— Léo, você vai sair do quarto à sala, com o livro aberto às mãos, fingindo estar concentrado na leitura, indiferente a todo o resto. E, certo como dois e dois são quatro, Aluysio vai perguntar: “O que você está fazendo, Leonardo?”. Ao que, sem tirar os olhos do livro, você vai responder, sem dar confiança: “Agora, não, Seu Aluysio. Por favor, eu estou lendo Proust”.

Roteiro executado à perfeição, meu pai vociferou avermelhado de raiva ao ser esnobado:

— Leonardo, vão você e Proust para a casa do…! — praguejou, enquanto eu me segurava para não urinar de tanto rir, assim como Léo.

Não lembro o ano, mas numa das nossas incontáveis viagens entre Campos e Rio, nas curvas entre o Atlântico e a Serra do Mar, que Leonardo conhecia de cor como nenhum outro condutor, eu e Aluysio estávamos querendo ouvir a gravação do trompetista e cantor Chet Baker de “My Funny Valentine” no CD player do carro. Que meu pai me ensinou a amar como aquela estrada. E Léo, para variar, não parava de falar, atrapalhando a audição.

 

 

Era exatamente a mesma gravação que eu estava ouvindo, na casa da minha mãe, junto com meu afilhado, no último 24 de junho do meu aniversário e da morte de Leonardo, quando dela soube. Crente de sinais, não coincidências: vá em paz, meu irmão!

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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Este post tem um comentário

  1. Cesar Peixoto

    Eu sei como é difícil a perda de ente querido e um amigo, eu também passei por essa experiência com a perda do meu irmão no dia do meu aniversário. Fica aqui os meus sentimentos a todos os familiares do saudoso Léo brincalhão motorista e grande amigo da família Aluysio Barbosa

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