Conheço Luiz Carlos Pontes França, ou simplesmente França, desde que me entendo por gente. Ele foi diretor da Folha da Manhã, alguns anos depois da fundação do jornal em 1978, até sua saída no final dos anos 1990. Coube a mim, ao vivo no programa Folha no Ar, na Folha FM 98,3, na manhã de ontem (15), noticiar sua morte. Que se dera algumas horas antes do mesmo dia, no Hospital das Clínicas de Niterói, onde estava internado desde 29 de junho.
Antes de anunciar sua morte na sexta, sabia desde o dia anterior (14), por meio do jornalista e amigo comum José Cunha Filho, da irreversibilidade do quadro clínico de França. Que confirmei em sequência de ligações com Márcio Sidney, médico que se tornou amigo de França quando os dois trabalharam jutos, nos ultimos 25 anos, na Unimed-Campos e na Fundação Benedito Pereira Nunes, mantenedora do Hospital Escola Álvaro Alvim e da Faculdade de Medicina de Campos. Assim como confirmei com Paula, esposa de França, sua companheira há 53 anos e minha madrinha.
Por conta dessas coisas da vida, estávamos afastados desde a sua saída da Folha. Sempre que nos víamos, em encontros ocasionais de mesas de bar, nos cumprimentávamos com afeto. Mas não tínhamos mais o convívio intenso que tanto marcou minha infância, adolescência e juventude. Fases do período formativo, para mim, profundamente marcadas por um tio França carinhoso, amigo. E, comigo mais do que com meu irmão Christiano, disposto a ser também uma espécie de tutor por interesses comuns. Lacônico e profundo, sem a condescendência que costuma marcar as relações de homens já maduros com os ainda muito jovens.
Em 14 de janeiro deste ano, na morte do poeta amazonense Thiago de Mello, França e eu nos reaproximamos. Muito amigo de Thiago, foi França quem me havia apresentado a ele, ainda menino. Mais velho, após ler o poeta, lembro muito de comungar com França não só o apreço comum pelo todo da obra de Thiago, sobretudo a inicial, como por um dos seus pontos altos: “Narciso Cego”. Era o título de um poema e um livro de 1952, que França e eu julgávamos o grande oxímoro da língua portuguesa. Esta, tão rica, desde sua fundação pelo luso Luís de Camões, dessa figura de linguagem que reúne expressões antagônicas para reforçar uma ideia.
Depois da reaproximação pelas memórias afetivas comuns que emergiram na morte do poeta, França e eu marcamos para nos reencontrar fisicamente, sem acaso. Foi ainda no verão deste ano. Combinamos de tomar algo e botar o papo em dia no Botequim do Amin, no parque Nova Brasília. Era uma noite de dia de semana e mesas vazias na Campos que migra sazonalmente às praias. Mas preenchida até a preamar naquele reencontro. Entre um gole e outro, conversamos sobre Thiago, poesia, arte, política, economia, Campos e suas hipocrisias, Brasil, mundo, mídia, a Folha, a saída dele dela, meus pais, Paula, seu filho Pedro e sua neta Alice, de apenas 3 anos, pela qual brilhava os olhos miúdos, por cima dos óculos, de maneira diferente.
Depois do verão, o acaso voltou a nos reunir. Foi no Vovó Dizia, no Parque Tamandaré. Estava acompanhado, como ele, de outro amigo comum de Folha, o jornalista Celso Cordeiro Filho. A princípio separados, por iniciativa minha, nos sentamos à mesma mesa. Com fome, após o dia no trabalho, devorei o pote de torresmo já pedido por França e Celso. A vergonha após o sacio acabou sendo boa. Pois, com a desculpa de pedir outro pote de torresmo, para comê-lo dessa vez todos, alongamos um pouco mais o papo. Entre goles de cerveja comungados, disse que este ano, enfim, lançaria meu livro de poesia.
A última vez que falei com França foi por telefone. O convidei ao churrasco por conta do meu aniversário, no último 24 de junho, dia de João Batista. Ele disse que não poderia ir, pois estava com viagem marcada naquele dia ao Rio, com Paula, para verem o filho e a neta. Mas garantiu que não faltaria ao lançamento do meu primeiro livro. França foi ao Rio, para não voltar. A Campos em que era uma exceção. Por sua cultura vasta, gostos refinados, elegância de gestos e tiradas mordazes. Internado desde o dia 29 em Niterói, cidade onde nasci, ele lá morreu ontem e será cremado hoje. No mesmo lugar em que meu pai o foi também.
De todos muitos momentos que guardo com França, alguns dentro de um estojo, lembro de um com especial carinho. Que, ainda adolescente, me fez desde compreender melhor minha relação comigo mesmo, com meu semelhante e o mundo. Na varanda do apartamento dos meus pais, era uma festa. Ele já via o mesmo mundo duas doses de uísque abaixo. E, só nós dois, me disse diante das luzes da planície goitacá espraiadas em noite alta:
— Está vendo todas aquelas luzes lá embaixo? Uma daquelas luzes é a sua. E, para você e só para você, ela sempre vai brilhar mais do que todas as outras.
Publicado hoje na Folha da Manhã.