No dia em que o Brasil luta por sua democracia nas urnas, morreu na madrugada de hoje o maior lutador da história do boxe profissional no país. Aos 86 anos, numa clínica em Embu das Artes, na Grande São Paulo, o “Galinho de Ouro”, lendário campeão mundial peso-galo entre 1960 e 1965, e campeão mundial também na categoria acima do peso pena, em 1973, o paulistano Éder Jofre foi finalmente nocauteado por uma pneumonia. A doença fez o que nenhum outro pugilista conseguiu. Com o cartel profissional de 81 lutas, 75 vitórias (52 por nocaute), quatro empates e apenas duas derrotas, por pontos. Até morrer, Jofre nunca caiu.
Nascido em 1972, nunca vi Éder Jofre lutar ao vivo. Mas, desde que me entendo por gente, ouvia sobe suas façanhas no ringue por um seu fã, meu pai, o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa, morto em 2012. Frutos de uma brilhante geração marcada na infância pela II Guerra (1939/1945), ambos nasceram no mesmo ano de 1936, em que Adolf Hitler quis prostituir o esporte pela política. Foi ao tentar bancar a suposta supremacia branca nas Olimpíadas de Berlim, para ser desbancado diante do mundo pelas quatro medalhas de ouro do negro estadunidense Jesse Owens. Mas isso é uma outra história.
Antes de se tornar uma lenda do boxe profissional, Jofre também testou sua sorte como amador nas Olimpíadas de Melbourne, na Austrália, em 1956. Invicto, chegou como um dos favoritos ao pódio. Mas perdeu numa controvertida decisão por pontos logo na sua segunda luta, diante do chileno Claudio Barrientos. Na forra em 1960, já como profissionais, o chileno foi derrotado por nocaute técnico, determinado pelo árbitro, após amargar nada menos que oito knock downs (quedas) impostos pelo brasileiro.
Como profissional, estreou no ano seguinte, em 1957, na categoria peso galo. Derrotou por nocaute o argentino Raul Lopes, no estádio do Pacaembu. Em 1958, ano da conquista da primeira Copa do Mundo de futebol pelo Brasil, Jofre se sagrou campeão sul-americano, derrotando por pontos outro argentino, Ernesto Miranda, no ginásio do Ibirapuera. Em 1960, foi morar nos Estados Unidos, onde se sagrou campeão mundial pela Associação Mundial de Boxe (WBA), batendo por nocaute o mexicano Eloy Sanchez, em Los Angeles. Em 1962, unificou os títulos da categoria peso galo diante do seu público no Ibirapuera. Onde venceu por nocaute técnico o irlandês Johnny Caldwell, campeão da versão europeia.
Entre 1962 e 1964, Jofre defendeu seu cinturão de campeão mundial peso galo cinco vezes, vencendo todas as lutas por nocaute, em ringues dos EUA, Brasil, Japão, Filipinas e Colômbia. Até que, em 1965, veio a grande controvérsia da carreira profissional do campeão brasileiro. Em uma controvertida decisão por pontos dos jurados, após 15 assaltos, ele perdeu o título para o japonês Fighting Harada, na casa deste, em Nagoya. Após um empate por pontos contra o estadunidense Manny Elias, no Ibirapuera, ainda em 1965, ele fez a revanche contra Harada em 1966. Novamente no quintal do adversário, desta vez em Tóquio, após outros 15 assaltos, veio a mesma questionada decisão por pontos a favor do lutador da casa.
A decepção foi tanta que Jofre anunciou sua primeira aposentadoria, passando a fazer apenas lutas de exibição. Voltaria aos ringues profissionais só em 1969, na categoria acima do peso pena, para derrotar por nocaute o mexicano Rudy Corona. Mas, “vacinado” pelas duas controvertidas derrotas por pontos para o japonês Harada no Japão, só lutaria na segunda fase da sua carreira no Brasil. Após mais 13 lutas, com 13 vitórias e sete nocautes, conquistou o título mundial dos penas em 1973, contra o cubano naturalizado espanhol José Legra, em luta interrompida por decisão médica. Defendeu o novo título três vezes, com três novas vitórias e mais dois nocautes, inclusive o que impôs em Salvador, no 4º assalto, ao mexicano Vicente Saldivar, considerado um dos grandes do seu país.
Em 1974, com a morte do seu pai e até então único treinador, o também lendário Kid Jofre, Éder anunciou sua segunda aposentadoria. Da qual voltaria para fazer mais sete lutas profissionais como peso pena, entre 1975 e 1976, todas no Brasil. E nelas mais sete vitórias e três nocautes ao cartel brilhante. Que só encontraria paralelo dentro do boxe profissional brasileiro em outro grande campeão, o baiano Acelino Freitas, mais conhecido como Popó, que conquistou quatro cinturões mundiais, nas categorias peso super-pena e leve, entre 1999 e 2006.
Jofre também teria uma carreira política. Em 1982, foi eleito vereador de São Paulo a primeira vez, pelo antigo PDS (atual União). Em 1989, filiou-se ao PSDB, no qual foi ativo até 2000. Como edil da cidade mais populosa das Américas, foi autor de 25 leis, a maioria relacionada à saúde e à educação. E é um dos signatários da Lei Orgânica do Município de São Paulo, que entrou em vigor em 1990.
Só a partir de 2007, quando o YouTube foi lançado no Brasil e eu tinha 35 anos, pude ver suas lutas. Por seu estilo técnico e franco, sempre caminhando para cima, baseado na confiança em seu queixo, na sua grande variedade de golpes, incluídos os inclementes ganchos de canhota no fígado do adversário, sua temida pegada com as duas mãos, como de um homem 10 kg mais forte, Éder Jofre me lembrava outro grande campeão do meu tempo, o mexicano Julio César Chávez. Que brilhou nos anos 1980 e 1990, quando conquistou seis títulos nas categorias pena, leve e meio-médios.
Pelo que Jofre fez dentro do boxe, o que mais trago vivo dele na memória foi uma entrevista do então fulgurante e invencível campeão peso pesado profissional Myke Tyson, em seu auge, no final dos anos 1980. Perguntado por uma rede de TV brasileira o que era o Brasil para ele, o mito citou outro: “Éder Jofra!” (sic). Viciado em vídeos do boxe antes do seu tempo, Tyson complementou: “Great fighter, great fighter; one of the best of all time” (“Grande lutador, grande lutador; um dos melhores de todos os tempos”).
Éder Jofre está em cinco Halls da Fama do boxe nos EUA. Incluído o olímpico Hall da Fama Internacional de Nova York, onde é o único brasileiro. Hoje centenária, a revista estadunidense The Ring é também conhecida como a “Bíblia do Boxe”. E, na sua concorrida edição de 90 anos, ela elegeu Jofre como o melhor pugilista do mundo, peso a peso, nos anos 1960. Abaixo do “Galinho de Ouro”, em segundo lugar, ficou um tal de Muhammad Ali.
A vida do campeão brasileiro não foi só de glórias. Nos últimos anos, ela foi marcada pela encefalopatia traumática crônica (ETC), vulgarmente conhecida como “demência pugilística”. Que se marca pelos tremores, perda de coordenação motora, de fala e memória, causada pelos muitos golpes na cabeça. A sua relação com o pai e treinador rendeu um bom filme brasileiro, “10 Segundos para Vencer” (2018), de José Alvarenga Júnior. O campeão foi interpretado pelo ator Daniel Oliveira, enquanto Osmar Padro levou o Kikito de melhor ator, no Festival de Gramado, por sua interpretação de Kid Jofre.
Mas a cena de outro filme, considerado o melhor já feito sobre boxe, ou qualquer temática nos anos 1980, talvez defina melhor a virtude real do campeão brasileiro. Na interpretação que lhe valeu o Oscar como protagonista, em “Touro Indomável” (1981), do mestre Martin Scorsese, Robert De Niro vive o campeão peso médio Jake La Motta. Que teve como grande rival o lendário campeão Sugar Ray Robinson, com quem fez seis lutas memoráveis entre os anos 1940 e 1950, entre as maiores rixas na história da nobre arte.
Após o juiz interromper o último combate entre eles, o La Motta de De Niro caminha no ringue e grita ao seu maior oponente o que só Jofre poderia dizer, em seus 86 anos de vida, a qualquer outro homem da Terra: “Você nunca conseguiu me derrubar!”