A festa da democracia e o revés do feiticeiro
Por Hamilton Garcia de Lima
O Brasil acaba de realizar sua 9ª eleição presidencial direta desde a redemocratização. A “festa da democracia”, todavia, desde 2006, foi lentamente deixando de ser comemorada para ser experimentada como angústia em meio a um sistema político ensimesmado. O ponto mais crítico deste plano inclinado foi alcançado, até agora, com Bolsonaro, mas nada indica que este seja seu piso.
O caldo de cultura deste descenso está não só no encontro pouco virtuoso das forças democráticas com a realidade do poder (Mensalão, Petrolão, Orçamento Secreto, etc.), como também no desencontro da Constituição de 1988, e seu projeto de bem-estar social, com a realidade econômica de 42 anos de semi-estagnação. As expectativas de melhoria de vida, sobretudo das camadas médias, da qual as democracias se nutrem, foram revertidas e as classes médias caíram nos braços da direita radical.
Este é o contexto da apertada vitória de Lula sobre Bolsonaro neste primeiro turno, que demonstrou uma resiliência no poder só comparável a de Lula em 2006; não obstante a discrepância entre os desempenhos governamentais, o que faz a performance conservadora ainda mais significativa.
A razão imediata para a reação bolsonarista no atual pleito, contra a previsão de várias sondagens de opinião, pode ter sido a audaciosa tática lulopetista de tentar ganhar no primeiro turno atropelando o rito democrático dos dois turnos. A arrogância da esquerda e seus novos aliados do centro progressista, ao reeditar o “nós contra eles”, parece ter despertado no eleitorado conservador seus “piores instintos” antipetistas.
A tática lulopetista de fidelização popular, colocando o pobre no orçamento, na universidade e nos aeroportos, parece ter encontrado seu antípoda de direita na farta distribuição de recursos públicos, levada a cabo pelo Governo Bolsonaro, ao eleitorado pobre e remediado fragilizado pela pandemia. Isto para não falar do paradoxo da denúncia petista sobre o assistencialismo como “moeda de troca eleitoral”, fórmula também aplicada por eles, onde a política de amparo à pobreza não encontra porta de saída. Bolsonaro promete abri-la pela via da diminuição dos impostos e do gigantismo do Estado, apesar da aliança com o Centrão.
O projeto político-econômico do petismo, que o bolsonarismo critica, centrado no aumento do consumo das famílias e na ampliação dos direitos sociais – sem lastro na produtividade social e com manutenção de privilégios burocráticos e financeiros –, tendente a deprimir ainda mais o investimento público e privado, e, portanto, mantendo ou aprofundando a estagnação econômica, também foi bem explorado pelas redes de direita, que o acusam de aprofundar a desigualdade histórica ao contrário de combatê-la.
A frente de esquerda que sustenta o lulismo, embora consciente destas contradições, acredita que a crise do Estado de bem-estar social da Nova República pode vir a abrir caminho para “transformações mais profundas na ordem social brasileira”, a depender da “correlação de forças” pós-eleitoral. E da mobilização do povo nos “comitês populares” que Lula prometeu abrir depois de eleito.
A arrogância estratégica do petismo, agravada pelo fantasma do “exército do Stédile”, e a soberba tática do lulismo, resgatando os náufragos do campo democrático em sua “frente ampla” de esquerda – sem negociação ou acordos programáticos efetivos –, apostando no atropelamento de Bolsonaro no primeiro turno, não surtiu o efeito esperado; e a culpa, evidentemente, não é dos democratas que não aderiram à manobra.
Tal como em 2018, o maior combustível do bolsonarismo parece continuar sendo o programa lulopetista, que combina identitarismo e luta de classes na esperança de ampliar a participação social de negros e mulheres, sem aumentar a oferta geral de oportunidades, alimentando assim sua narrativa anticapitalista.
A estratégia petista, reiterada mesmo após a derrota de 2018, continua sendo de altíssimo risco. Pois, ao invés de buscar reverter o modelo de economia primarizada com exportação de grãos, minérios e carnes, pretende apenas explicitar seus limites – inclusive denunciando a ponderação do aumento do salário mínimo à produtividade social como “elitismo escravista” – mesmo que ao preço do ressentimento das camadas médias em dificuldade.
O segundo turno, sobre este aspecto, deve ser comemorado, pois nos oferece a possibilidade do petismo e do lulismo dialogar efetivamente em torno de um programa de reformas efetivo, que eles recusaram entregar ao eleitorado antes do pleito.
Quer seja o programa desenvolvimentista de Ciro, quer o liberal-social de Tebet, ou um mix de ambos, o fato é que ele vai ser necessário para solidificar uma verdadeira frente democrática no lugar do cheque em branco reivindicado pelo PT e recusado pelo eleitorado.
Parece ter ficado claro que, na era Bolsonaro, não há mais espaço para manipulações ideológicas da esquerda, que agora são neutralizadas pela direita – ao contrário do que ocorria com os tucanos.
A percepção do “mercado” de que o “Lula de sempre” está “precificado” e que seu vice está ao alcance das mãos numa eventualidade, para colocar as coisas no eixo, é pura ilusão e grave equívoco. É preciso pensar no país e abandonar o egoísmo de partido, que é a marca registrada do petismo, se se quer, realmente, o “bem geral da nação” e da democracia. Porque o bolsonarismo está vivo e forte.
Publicado hoje na Folha da Manhã