Debate presidencial entre “satanismo” e “maçonaria”

 

Canibalismo dos índios tupinambás no Brasil do séc. 16 retratado pelo belga Theodore de Dry

 

 

Entre “satanismo” e “maçonaria”, fome e carne humana com banana

 

Maior evento do século 20 e que ainda define estas primeiras décadas do século 21, a II Guerra Mundial (1939/1945) foi decidida na Europa em sua frente oriental, entre a Alemanha nazista de Adolf Hitler e a União Soviética comunista do Josef Stálin. Tão decantada pelos filmes de Hollywood, a invasão anfíbia dos Aliados ocidentais no Dia D, nas praias francesas da Normandia, foi evento coadjuvante das batalhas decisivas travadas em solo russo. Como as de Stalingrado e Kursk, maior enfrentamento de blindados da História. Até elas, os nazistas eram senhores invencíveis da Europa. Depois delas, o Exército Vermelho só parou em Berlim.

Se em todo o mundo, incluindo Ásia, África, Oceania e litoral das Américas, a II Guerra tirou cerca de 80 milhões de vidas humanas, a União Soviética perdeu, só ela, mais de 26 milhões. Que cobrou ao matar mais de 4,4 milhões de militares alemães, entre os cerca de 5,5 milhões que perderam a vida entre 1939 e 1945. O ateu Exército Vermelho encomendou a alma de 80% dos soldados mortos, em sua maioria cristãos luteranos e católicos romanos, sob o altar da suástica nazista. Todos os demais Aliados juntos deram cabo dos outros 20%. A contabilidade macabra não deixa dúvida quanto ao protagonismo da II Guerra. Ou ao caráter do conflito na frente oriental que a definiu: dos dois lados, foi uma guerra de extermínio.

O 2º turno da eleição presidencial do Brasil, em 30 de outubro, daqui a 22 dias, será disputado entre os dois vencedores do 1º turno do domingo: Lula e Bolsonaro. E por seus eleitores, não menos aguerridos que soldados alemães e soviéticos na II Guerra. Que, como nesta, tratam seus adversários pelos mesmos termos: “fascistas” e “comunistas”. No que parece ser também uma guerra de extermínio, com ódio visceral à simples existência do outro. Como provam os corpos dos petistas Marcelo Arruda, Rafael Silva Oliveira e Edmilson Freire da Silva, assim como dos bolsonaristas Hilder Henker e José Roberto Gomes, todos assassinados neste ano eleitoral por apoiarem o candidato a presidente oposto ao de quem os matou.

No mundo da razão, como o PL fez a maior bancada na Câmara Federal e o PT a segunda, respectivamente com 99 e 68 deputados, Bolsonaro e Lula seguirão protagonistas da vida política nacional, ganhem ou percam a eleição a presidente. Sobretudo o capitão, que elegeu no domingo nada menos que 20 aliados entre os 27 novos membros do Senado da República. Adicionados aos que lá já estão e continuarão por mais quatro anos, serão 41 senadores bolsonaristas, num total de 81, a partir de 2023. Que, não mais com bravatas na acefalia das redes sociais, mas como reza a Constituição, poderão passar pedidos de impeachment aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), emparedando-os.

Considerado o último dos três Poderes da República que ainda não foi cooptado pelo Executivo nos últimos quatro anos, após a compra do Legislativo com o “Orçamento Secreto”, o Judiciário em sua esfera máxima do STF terá os ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski se aposentando em 2023. Caberá ao próximo presidente indicar seus sucessores. Se for Bolsonaro, ele já anunciou que proporá ao Congresso um projeto para criar mais quatro cadeiras do STF, das atuais 11 para 15, com o qual indicaria mais quatro ministros.

Com seus ministros Nunes Marques e André Mendonça, mais os substitutos de Weber e Lewandowski, e outros quatro numa já prometida ampliação, um Bolsonaro reeleito formaria a maioria no STF de oito ministros em 15. E redesenharia as tais “quatro linhas da Constituição” como quisesse. O Brasil se tornaria uma grande Hungria de Viktor Órban, pária hoje na União Europeia, ou a Venezuela de um Hugo Chávez de extrema-direita. Com esta, nossas semelhanças não param por aí. Pois já há uma PEC no Congresso que visa ampliar para 15 as cadeiras do STF. Foi proposta desde 2013, quando Dilma Rousseff (PT) ainda era “presidenta”, pela sua então aliada e deputada federal reeleita em 2022, Luiz Erundina (Psol/SP).

A guerra de extermínio político em que o Brasil está mergulhado desde 2014, quando Lula chamou o PSDB de “nazistas” em comício no Recife, no segundo turno que reelegeria Dilma, foi sendo escalada até 2022. Para além da ruptura institucional de Aécio Neves (PSDB), que há oito anos pediu recontagem de votos da sua derrota presidencial, seria elevada com o discurso golpista do bolsonarismo, a partir de 2018. E chegou ao presente com o capitão creditando a surra que levou do petista no Nordeste, nas urnas do 1º turno, ao… analfabetismo.

Hoje, o fato é que ninguém simboliza melhor os exterminados eleitorais do domingo do que o próprio PSDB. Após capitanear a estabilização econômica do país com o Plano Real, para dali ser o único partido a eleger e reeleger um presidente do Brasil em turno único, com Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998, os tucanos agora choram a perda da sua última cidadela, o poderoso estado de São Paulo, que governavam há 28 anos.

Após não ir nem ao 2º turno, o governador morto-vivo Rodrigo Garcia, tucano só a partir de 2021, anunciou logo na terça (4) seu “apoio incondicional” à reeleição de Bolsonaro e ao ex-adversário Tarcísio de Freitas (Republicanos), mais votado no 1º turno e agora favorito ao Governo de São Paulo. E que disse não querer a presença do adversário convertido em apoiador em seu palanque contra o petista Fernando Haddad.

Humilhado incondicionalmente, Garcia foi também desautorizado pelo PSDB paulista, no racha do que restou do partido. Cujos velhos caciques nacionais, como FHC e o senador Tasso Jereissati, declararam apoio a Lula. Como os economistas Edmar Bacha, Persio Arida, Pedro Marlan e Armínio Fraga, pais do Real. Em contraponto, o apoio a Bolsonaro do governador reeleito de Minas, Romeu Zema (Novo), pode ter ainda mais peso no câmbio eleitoral.

Do que pode ser daqui a quatro domingos ao que já foi no último, o bolsonarismo exterminou em sua “guerra santa” neopentecostal o centro, a centro-direita e a direita democráticas do país. Cujos últimos remanescentes, como a senadora Simone Tebet (MDB), pularam para Lula também na certeza que só terão chance de sobrevivência sob um novo governo petista. Que, se acontecer, será muito mais ao centro do que delira a esquerda identitária, maior culpada pelo êxito da pauta de costumes do capitão. É a mesma patota festiva que, no estado do Rio, assistiu ao atropelamento previsível do seu dândi Marcelo Freixo (PSB), campeão de rejeição, pelo governador bolsonarista Cláudio Castro (PL), reeleito no 1º turno.

E, com o país de volta ao mapa da fome e o vídeo resgatado do capitão falando ao NYT de comer carne humana com banana, seguiremos os próximos 22 dias no diapasão do quinto dos infernos entre “satanismo” e “maçonaria”. Como, entre “comunistas” e “fascistas”, entraremos em 2023, independente do resultado das urnas de 30 de outubro de 2022. Enquanto o mundo teme outra guerra de extermínio de fato, desta vez com bombas nucleares, no mesmo palco decisório da II Guerra: contra a Ucrânia de Zelensky, pela Rússia de Putin. Para este, o 2º turno do Brasil tanto faz. Lula e Bolsonaro são seus aliados geopolíticos.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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