Na noite de ontem (6), o poeta, dramaturgo e professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFF Adriano Moura foi empossado como membro da Academia Campista de Letras (ACL), na sua sede no Jardim São Benedito. Escrito um pouco antes, só ouvindo, mas sem poder ver o Portugal 6 a 1 Suíça, no último jogo das oitavas de final da Copa do Mundo do Qatar, transcrevo a pedidos o discurso de recepção do novo imortal goitacá, longo para atender à demanda de tempo exigida pelo protocolo. Ao qual, em se tratando de Adriano, busquei subverter em algumas palavras:
Lavra
Dores
Mas colhe gozos
Lava
Dores
E suja as mãos
Canta
Dores
Mas ouve gritos
Maquia
Dores
E diz que não
Ora
Dores
Mas diz que é Cristo
Saca
Dores
E não sai do chão
Chora
Dores
Mas tem lenços secos.
Pensa
Dores
E livros vãos
Moe
Dores
Mas bebe scotch
Salva dores
E não os são(s)
Os perde
Dores
O nome do poema é “Os donos do poder”. O ouvi pela primeira vez da boca do seu autor, atrás de óculos a compor a carranca de quem não estava aberto a maiores aproximações. Foi numa das edições do FestCampos de Poesia no início dos anos 2000, em que ambos participávamos, no Palácio da Cultura. Lembro de ter sido profundamente impactado por aqueles versos. E, numa época em que eu ainda bebia destilado, fiquei a pensar se o “Moe/ Dores/ Mas bebe scotch” não havia sido escrito sobre ou para mim.
O impacto não se deu só pelas belas imagens da poesia de Adriano. Mas porque percebi que era alguém mais ou menos da minha idade, quando éramos jovens como Belchior foi um dia, que estava fazendo uma ourivesaria com as palavras que eu percebia ser diferente, com aliterações e assonâncias, mas ainda não sabia como fazer.
Pensando só agora, enquanto escrevo este discurso a mim pedido para receber Adriano na ACL pelo seu proativo presidente, o advogado, prosador e poeta Christiano Freitas, me ocorre que foi mais ou menos a mesma coisa que senti quando ouvi “Faroeste caboclo” pela primeira vez. Eu tinha 15 anos e estava numa festa adolescente e noturna em uma casa no entorno do Jardim São Benedito, ainda de pé e vizinha daqui.
Para mim, a obra maior de Renato Russo, poeta que tanto marcou a geração de Adriano e minha, a saga de João de Santo Cristo bateu no ouvido, na mente e na alma. E ficou remoendo na boca do estômago logo à sua primeira audição, onde e como ficou os “Os donos do poder”. Em relação à música da Legião Urbana, só parou de remoer quando li pela primeira vez “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, testemunha ocular da Guerra de Canudos. E descobri o que é ser sertanejo, periférico e reprimido à bala neste país. Como ter lido depois a obra-prima homônima do jurista, sociólogo, historiador e cientista político Raymundo Faoro aumentou minha compreensão daquele meu primeiro poema de Adriano.
Ser contemporâneo e conterrâneo de Adriano, que fez da literatura a sua profissão, muito além de atividade diletante, me obrigou a ter que trabalhar mais. Não para alcançar a mesma qualidade dos versos, mesmo porque isso sempre será subjetivo. Mas o esforço de estudo de poesia e teoria literária a que ele involuntariamente me forçou, para dominar os mesmos instrumentos, me fez ser um poeta melhor. Como costumo dizer a ele, brincando: “Cada aldeia tem o Fernando Pessoa e o Mário de Sá-Carneiro que merece”.
Ou, como dizia uma ex-namorada: “Ave Maria, quem dera!”
Com o passar dos anos, venci essa carranca de “caboclo querendo ser inglês” de Adriano, como cantou Cazuza, outro poeta marcante da nossa geração. E me tornei, além de admirador e leitor, seu amigo. Amigo de Adriano; de Cazuza não deu. Somos “camaradas em armas”, como digo também brincando, mas ao mesmo tempo de maneira muito mais séria do que supõe a vã filosofia armamentista do bolsonarismo.
Já deve ter uns 15 anos, estávamos num samba na quadra da Mocidade Louca, quando ele, num momento raro de carinho fraternal, com a carranca já desfeita pela bebida, me abraçou e disse de maneira tão carinhosa, quanto sincera: “Somos dois dândis numa cidade hipócrita”. Na verdade, no lugar do adjetivo “hipócrita”, ele usou o substantivo iniciado com a letra “M”. Mas pensei e talvez não fosse de bom tom reproduzir aqui.
Em conversa virtual recente com a literata e poeta Analice Martins, Cruzeiro do Sul nas letras goitacazes da nossa geração, reforçava o convite para ela analisar um meu poema para publicação futura na página da ACL na Folha Letras. Analice falou generosamente que seria uma “responsabilidade”. Ao que comentei: “Me deram a incumbência de fazer o discurso de recepção do nosso enfant terrible na ACL. Isso, sim, é uma baita responsabilidade”. E ela complementou na tréplica: “Ah, que maravilha!!! Les enfants terribles incendiando a Academia!!!!”
Nas memórias de menino do cineasta Louis Malle durante a França ocupada pela Alemanha nazista durante a II Guerra Mundial: “Au revoir, les enfants”. Desde que eles nos acenem de volta, dentro de nós, agora como “mortalmente imortais”, como bem frisou Gilberto Gil após ser empossado na Academia Brasileira de Letras. Em paralelo tão óbvio quanto verdadeiro, e ao diabo com as proporções devidas: não creio que a posse de Adriano na Academia Campista de Letras represente menos.
Se não me falha a memória, foi mais ou menos na época daquele samba fraterno e confessional na Mocidade Louca, que quis tentar incluir outro poema de Adriano, “Com quantas conchas se faz um verso”, no espetáculo “Pontal”, concebido pelo genial teatrólogo e poeta Antonio Roberto de Gois Cavalcanti, o eterno Kapi. Mas Kapi já tinha morrido e o grande ator Yve Carvalho, hoje também saudoso, tinha assumido a direção da peça. Que é arquitetada em poemas meus, de Kapi, de Artur Gomes e de Adriana Medeiros, sobre Atafona ou nela ambientados, como se fossem causos contados entre pescadores.
Mesmo depois de ter encenado e protagonizado “Meu querido diário”, monólogo de Adriano, em montagem dirigida por Kapi no Teatro de Bolso, Yve sempre implicou com o acréscimo do trabalho do poeta em “Pontal”. Nunca perguntei a ele, mas sempre desconfiei que por motivos mais pessoais do que literários ou teatrais. Como reza o vero dito popular: “Dois bicudos não se beijam”.
Gostaria de dizer também os versos de Adriano em “Com quantas conchas se faz um verso”, que também sempre me impactaram em seu lirismo marinho. E foram publicados em seu primeiro livro de poemas, “Liquidifica(dor) — Poesia para vita mina”, pela Imprimatur, em 2007, cujo orelha tive a honra de escrever, com prefácio da grande Analice.
Com as bênçãos e o perdão de Yve, como o de vocês por não ter um milésimo do talento dele para interpretar:
Com quantas conchas se faz um verso
Apanhar palavras no vento
É como ouvir os segredos do mar
Nas conchas dos caramujos,
São notas perdidas no tempo
À espera de composição.
Palavras cato no vento
Que não me lança contra rochedos em dias de fúria
Mas segredos….
Não há como os do mar!
Então eu ouço os segredos de um,
Colho palavras do outro
E conto para o mundo:
Eis minha infidelidade.
Queria aventurar-me a maiores turbulências
Mas sou poeta de horas vagas e concursos literários,
Subtraído pelos livros de ponto
E prestações de conta.
Deito à tranquilidade das brisas
E guio o leme dos meus versos.
Vez em quando cato uma concha das grandes
E fico sentindo saudade do Ulisses que não fui.
O vento sabe da minha preferência pelo mar,
Por isso em dia de fúria
Varre todos os caramujos de minha margem.
Com o passar dos anos e o aprofundamento da amizade, muitos caramujos ficaram em nossas margens, nessa afluência entre dois rios diferentes que correm para desvendar os segredos do mesmo mar. Como o Capibaribe de João Cabral de Melo Neto, meu capitão, e o nosso Paraíba do Sul. Que emblematicamente separa as origens de Adriano, criado em Travessão, e as de muita gente aqui, criada como eu na margem socialmente mais generosa do rio que corta e muitas vezes segrega a nossa aldeia. Entre cães com e sem plumas. Como ocorre em todo esse Brasil entre Euclides e Conselheiros de volta ao mapa da fome. E novamente governado, com a devida licença poética a Renato Russo, por “generais de 10 estrelas/ Que ficam atrás da mesa com o cu na mão”. Como “Os cus de Judas” do escritor e psiquiatra português António Lobo Antunes, na lusofonia tão cara ao literato, professor e pesquisador Adriano.
Pude acompanhar o crescimento de Adriano como literato e autor. No auge da pandemia da Covid, que tirou no Brasil 680 mil vidas humanas, 400 mil delas de forma absolutamente desnecessária, lembro que estava em Atafona, minha “musa libérrima, audaz”, como a dos versos de Castro Alves em “O Navio Negreiro”. E de ter ficado orgulhoso como num jogo do Brasil na Copa do Mundo do Qatar, ao acompanhar pela live da internet a defesa de Adriano da sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Juiz de Fora: “Romance nação e devires identitários em literaturas de língua portuguesa: Angola e Portugal”.
Era o verão de 2021. E quando acabou, após os elogios rasgados da bancada, como depois de uma goleada conquistada em exibição de gala do seu time de futebol, abri uma cerveja para comemorar com o vento nordeste de Atafona.
Adriano conheceu a poesia quando aluno do IFF, então ainda Escola Técnica Federal de Campos, com o vulcânico Artur Gomes. Como ele cursava à época Instrumentação Industrial, perdeu a indústria e ganhou a literatura. Adriano é um dos sete filhos de dona Juracy de Moura Guimarães, que cortou cana e criou muito bem a todos, colocando dois na faculdade. Adriano é o Brasil de verdade, da periferia, impresso com melanina na pele. Não teve, como eu e muitos aqui, a facilidade de quem se interessou por literatura e pôde puxar Machado de Assis ou Fernando Pessoa da estante de casa. Coube só a ele encurtar seu caminho mais longo. E, em muitos sentidos, nos ultrapassar.
No particular, o trato de Das Mouras. Além da brincadeira fonética com o sobrenome herdado da mãe, é uma maneira também de lembrar de “Otelo, o Mouro de Veneza”. Maior personagem preta da dramaturgia ocidental, é uma maneira de reconhecer que, Desdemonas e Iagos à parte, a tal meritocracia continua condenando a um fim trágico quem nasce com pele negra e na periferia, em um mundo ainda dominado por brancos. Com sua vida e seus versos, Adriano de uma certa maneira reescreveu Shakespeare.
Nessa tarefa nada fácil, termino com um poema de Adriano ainda não publicado em livro. E que, quero crer, tenha sido influenciado pela leitura dele de “Gertrudes e Cláudio”, do escritor estadunidense John Updike, com o qual o presenteei em um seu aniversário. E que ousa revisar o bardo, transformando Hamlet em menino mimado, contrariado com o amor verdadeiro entre sua mãe e seu tio paterno. Sentados nos tronos da Dinamarca como as órbitas vazias do crânio do bobo Yorick:
Infância de Hamlet
Ser ou não ser
não é a questão.
Tem de ser.
Entre nascer e morrer,
o intervalo:
onde estão tuas brincadeiras agora, Yorick?
quando recordo que devo morrer,
brinco pra não ser o crânio
com saudade.
Adriano nasceu em 1972, o mesmo que eu, completando meio século neste ano da Graça de 2022. Brinco com ele que, como foi o mesmo ano de nascimento do ex-craque francês de origem argelina Zinédide Zidane, nossa safra não foi das piores. Em tempo de Copa do Mundo, tão comum quanto lembrar dos seus vencedores do passado, como foi Zidane, é lembrar também dos grandes craques que não a conquistaram. Do húngaro Ferenc Puskás, ao holandês Johan Cruijff, ao brasileiro Zico, a lista não é pequena. Como não são poucos os seus fãs no mundo a sentenciar que, sem tê-los como campeões, perderam a Copa e o futebol.
Quando entrei nesta Casa, em 22 de outubro de 2018, disse em meu discurso de posse que entendia o estar fazendo em nome também da minha geração. Quando citei Adriano e Analice como expoentes meus contemporâneos nas letras de Campos que entendia e entendo que também deveriam integrá-la. Agora com Adriano, na pavimentação do caminho à Luluzinha desse clube de Bolinhas cinquentões e fugazmente imortalizados, a Academia Campista de Letras faz justiça ao seu nome. Quem ganha hoje não é Adriano. Com o seu reforço, quem bate um bolão é a ACL.