Amsterdã, a anti-Atafona
Era o domingo de 1º dia de janeiro de 2023 quando pai e filho embarcaram no Galeão. E, quase 12 horas depois, a segunda-feira do segundo dia do ano, quando desceram em Amsterdã. Após o sol correr a Terra no sentido contrário ao avião, era o início da manhã quando foram de uber ao hotel, fizeram o check in e deixaram as bagagens no locker. Enquanto o quarto não ficava pronto, foram bater pernas na Damrak, avenida principal do centro da capital da Holanda.
O frio fez com que entrassem na primeira loja de souvenirs. O filho comprou logo um par de luvas de lã. O pai também, além de um gorro cinza, com o nome Amsterdã e o peculiar XXX da cidade. Muito antes do triplo da letra ser usado para classificar filmes pornográficos nos EUA, ou da Rua da Luz Vermelha ficar conhecida no mundo pelas prostitutas se exibindo em vidraças, aquário do ensino fundamental a quem havia se formado na Atlântica da Copacabana dos anos 1990, o X medieval tem simbologia oposta. É a cruz em que Santo André, apóstolo de Jesus e irmão de Pedro, foi crucificado.
Enquanto vestia o gorro na cabeça, o pai pensou que o nome Amsterdã, na própria cidade, denunciava a condição sempre cafona de turista. Como um europeu usando camisa do Cristo Redentor no Rio. Mas que teria efeito inverso, descolado, assim que saíssem da Holanda. O filho quis sacaneá-lo, dizendo que parecia gorro de pescador. Quem o usava lembrou de Atafona, do outro lado do Atlântico. E, por isso, teve orgulho da peça com que se protegeria do frio em boa parte dos 47 dias seguintes, no inverno rigoroso do Hemisfério Norte, entre Europa, África e Ásia.
Antes de voltarem ao hotel no final da tarde, para descansarem da viagem de avião, do dia de caminhada e do frio, foram tomar a benção à Oude Kerk. Esvaziada de fiéis, como a maioria dos templos cristãos na Europa setentrional, é primeira construção pública em Amsterdã, de 1213. E, com a Reforma, seria convertida ao calvinismo em 1578. Desta época, não da Rua da Luz Vermelha, veio o XXX. No entanto, a simulação do Santo Sepulcro em uma câmara da igreja medieval era montada no efeito da luz vermelha filtrada pelos vitrais. A predestinação do Cristo de Calvino levou à reflexão da condição feminina entre Madalenas e Genis.
Na terça de 3 de janeiro, dedicaram o dia, com ingressos comprados pela internet desde o Brasil, à visitação ligeira ao Palácio Real de Amsterdã e, lenta, ao Museu Van Gogh. Eram distantes um do outro, mas pai e filho foram andando para conhecer melhor a cidade e esquentar do frio. Diante do maior acervo mundial de Van Gogh, com seus vários autorretratos e obras primas como “Os comedores de batata”, “Piada”, “O quarto”, “A Ponte Langlois”, “Paisagem marinha perto de Santa Maria do Mar”, “Pietá” e, sobretudo, “Campos de trigo com corvos”, a sensação era de passear entre as pinceladas de vigor agônico. Como no episódio de “Sonhos” (1990) em que o alter ego de Akira Kurosawa encontra o Van Gogh, após este cortar a própria orelha, interpretado por Martin Scorsese.
Na quarta de 4 de janeiro, foram e voltaram de trem a Haia. É a sede, de fato, do governo da Holanda. Lá, o rei Guilherme Alexandre cumpre os deveres de chefe de Estado, no Palácio Noordeinde. E se assentam as duas Câmaras no complexo gótico Binnenhof, Parlamento em atividade mais antigo do mundo, às margens do Lago Hofvijver. Como o Museu Mauritshuis, cujo nome indica o proprietário original do prédio, Maurício de Nassau. Entusiasta das artes e ciências, governou a colônia holandesa no Pernambuco do século 17, atrás da riqueza do açúcar. E passou a ser chamado na Europa de “o Brasileiro”, como o pai e o filho brasileiros descobriram lá.
Sem sombra de dúvida, a grande garota propaganda do Mauritshuis é “Moça com brinco de pérola”, de Johannes Vermeer. O quadro gerou um filme homônimo, de 2003, dirigido por Peter Webber, que lançou a musa Scarlett Johansson ao estrelato. Mas quem quiser buscar o Brasil do Nordeste de quse 400 anos atrás, também vai achar no museu. Em pinturas como “Paisagem brasileira com uma casa em construção” e “Vista da Ilha de Itamaracá”, ambos de Frans Post; e “Estudo sobre duas tartarugas do Brasil”, de Albert Eckhout.
Outros grandes mestres, como Rembrandt, também estão lá. Não só com um dos seus autorretratos que tanto devem ter influenciado Van Gogh, vistante assíduo do Mauritshuis, quanto uma das suas obras primas: o revolucionário “A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”. Ao pai, no entanto, nenhuma pintura do museu marcou tanto quanto “Velha e menino com velas”, do barroco Peter Paul Rubens. Desde que fôra ao Museu do Prado, na Madri de 2006, em busca do “Saturno” de Francisco de Goya, e tropeçou ao acaso com o “Saturno” de Rubens, anterior e com o qual o espanhol dialogou, a vertigem da queda nunca mais se desfez.
Em “Velha e menino com velas”, Rubens confessamente se inspirou no italiano Caravaggio, precursor do mesmo barroco que, no Brasil, produziria Aleijadinho. Nunca quis vender o quadro que pintou para si, da velha a proteger os olhos com a mão esquerda da luz da vela acesa que ilumina a cena, segura com a direita e buscada pelo menino com a vela apagada, enquanto olha a idosa. Outra luz busca acender naquela já consumida pela chama. No grupo de WhatsApp criado como diário de viagem, o pai confessou, ainda profundamente impactado: “À minha sensibilidade, e apenas a ela, sem nenhuma pretensão de convencer a mais ninguém, Rubens é o maior artista que já existiu”.
A quinta do dia 5 era o último dia inteiro em Amsterdã. No início da tarde de sexta, embarcariam no avião ao Cairo, capital do Egito. Ainda na da Holanda, programaram visitar o Rijkismuseum, ao lado do Museu Van Gogh. Mas, diferente deste, não compraram ingressos previamente. E, ao chegar lá, descobriram que a bilheteria já estava esgotada para o dia. O filho foi comprar lembranças aos seus, enquanto o pai sentou em uma jardineira da Museumplein (“Praça dos Museus”). Dedicou-se a observar os pombos, corvos e gaivotas que disputavam o espaço, entre arrulhos e grasnados, em busca dos restos humanos.
O filho voltou. Com o hiato no último dia holandês, resolveram caminhar até o canal e fazer um passeio de barco. Do que viu e ouviu no audioguia, o pai teve um insight com a sua terra, agora tão distante. Como um bem-te-vi estaria na disputa ornitológica que testemunhara. Na véspera de embarcar ao Egito, registrou no diário de viagem em grupo de WhatsApp:
— No passeio de hoje entre os canais concêntricos que formam a cidade, como obra gradual do homem em adaptação à natureza, a partir do represamento do rio Amstel, no século 13, veio forte a imagem: Amsterdã é em muitos sentidos uma anti-Atafona. É o que Campos e São João da Barra poderiam ter sido, com suas mesmas redes de canais e origem em planície de aluvião dada ao mar: nós, ao Atlântico; eles, ao Mar do Norte. A imagem se reforça quando lembrado como nós, campistas e holandeses, disputamos o domínio do mesmo rico ciclo do açúcar brasileiro no século 17. A diferença básica, de lá para cá, é que eles não pararam ali. Adaptaram-se ao meio e aos novos tempos.
Publicado hoje na Folha da Manhã.
Bom dia!
Senti falta da assinatura desse texto. É seu, Diva?
Muito bom ler porque complementa a viagem que o Aluísio e filho (qual o nome dele?) fizeram e tanto me enriqueceu. Vai ter continuidade? Tomara!
Cara Helena,
Boa noite. Se fosse de Diva, honraria o texto. O nome do neto dela, meu filho, é Ícaro. E, sim, há demanda de continuidade.
Obrigado pela leitura e retorno generoso.
Aluysio
Eu faço um apelo aos meios de comunicação que cobre das autoridades todo empenho para elucidação desse crime ocorrido no parque Aurora,e que outras tragédias como essa não se repita na minha e nem de outras pessoas
Caro Cesar Peixoto,
O apelo é do jornalismo.
Grato pelo comentário.
Aluysio