Cerveja irlandesa para brindar o Êxodo do Egito a Israel

 

Cercadas pelo Egito Édipo de hoje, as três grandes pirâmides de Gizé da janela do avião, em 26 de janeiro de 2023 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

Era o início da manhã de quinta, 26 de janeiro. O pai ainda tinha à flor da pele a emoção da subida ao cume do Monte Sinai, com o filho, na madrugada do dia anterior. Fizeram o check out no hotel e foram ao aeroporto de Sharm el-Sheikh, na Península do Sinai, Egito “europeu” na porção asiática do país de maior parte africana.

Para continuar a seguir os passos de Moisés, tinham comprado desde o Brasil as passagens a Tel Aviv, capital de Israel. Até que, no check in ao voo, foram encaminhados, por autoridades israelenses no Egito, a uma autoridade deste país. Que, bem mais deseducado, se limitou a informar que só poderiam sair pelo mesmo lugar que entraram: a capital Cairo, onde pai e filho tinham desembarcado, vindos da Holanda, há 20 dias.

O pai perguntou por que isso não havia sido informado na compra da passagem de Sharm el-Sheikh a Tel Aviv. E como seria ressarcido diante daquele impedimento que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Cujo objetivo é forçar sobre os visitantes estrangeiros uma reserva de mercado às companhias áreas do Egito. A autoridade do país deu de ombros, passando a atender um senhor que vivia o mesmo dilema.

Foram ao estande da única companhia aérea egípcia aberta, manhã cedo, no aeroporto de Sharm el-Sheikh. E compraram a passagem do primeiro voo ao Cairo. E, de lá, a Tel Aviv. O dia, assim que chegassem lá, estava praticamente perdido, mas era a única solução. Logo depois chegou o senhor também barrado no caminho mais curto e simples, pela mesma imposição da ditadura militar do Egito. Ele falava árabe em busca da mesma alternativa.

Pai, filho e o senhor árabe embarcaram de Sharm el-Sheikh ao Cairo no final da manhã. Lá, naturalmente se juntaram em direção ao portão do voo seguinte a Tel Aviv. Este identificado, foram os três a um café próximo, que permitia fumar. Como a França, o Egito também tinha espaço reservado ao consumo de tabaco nos aeroportos. Com uma peculiar diferença: entre os egípcios, os fumódromos funcionavam com as portas abertas. Na prática, só se fingia cumprir a lei e o respeito aos não fumantes.

Como esperado, o senhor árabe não falava português. Só que também falava inglês muito mal, o que dificultou a comunicação. Como pai e filho brasileiros, tampouco, falavam árabe, prevaleceu o esperanto do mesmo perrengue. Nele, a sentença do cronista Otto Lara Rezende extrapolou o horizonte montanhoso das Minas Gerais para se tornar universal: “o mineiro só é solidário no câncer”.

No café do aeroporto do Cairo, com a ajuda do tradutor do aplicativo celular, os companheiros involuntários de jornada trocaram nomes, origens e histórias em resumo. O senhor se chamava Bilal, era da Palestina, onde visitaria parentes e amigos a partir de Israel. Morava na cidade de Ismit, na Turquia, onde tinha uma serralheria de esquadrias de alumínio. Cujo movimento, exibiu orgulhoso no celular, acompanhava em tempo real pelas câmeras.

Comum entre os fumantes de cultura árabe, e o pai aprendera em 20 dias no Egito, trocou com o senhor palestino um cigarro, cada qual da sua marca, como gesto de cortesia e confiança. Entre tragos de nicotina e goles de café, Bilal se disse islâmico e perguntou da religião de pai e filho. Que responderam terem sido criados como católicos romanos. Indagou também o tamanho do Islã no Brasil e nas Américas. E ficou desapontado ao saber que seu credo é professado por parcela ínfima da população do país e continente, com as poucas mesquitas restritas aos seus maiores centros urbanos.

Após finalmente passarem pelo check in do voo a Tel Aviv, pai e filho não voltariam a se cruzar com o senhor palestino. Mas, país de contrastes ainda maiores que o Brasil, a saída do Egito reservava mais surpresas desagradáveis. Lotado de judeus, como era de se esperar em voo à capital de Israel, o ônibus que os levou do portão de embarque ao avião parou ao lado deste. E sem nenhuma explicação do motorista, separado dos passageiros pelo vidro, passou cerca de meia hora parado, sem refrigeração do ar condicionado, sob o sol forte do início da tarde.

No calor do veículo apinhado de gente, o pai se lembrou do filme “A Lista de Schlinder” (1993), de Steven Spielberg, sobre o Holocausto dos judeus pelos nazistas na II Guerra Mundial (1939/1945). Mais especificamente, da cena em que os judeus são amontoados em vagões de trem para transporte de gado, com destino aos abatedouros humanos dos campos de extermínio. Mas sem nenhum Schlinder a tentar atenuar o sofrimento alheio com água.

Personagem incrédula da cena, o pai ponderou se aquilo seria só mais um exemplo do caos do país do qual tentava sair desde o início da manhã. Ou se não teria se metido, com o filho, no meio de uma vendeta egípcia pelas derrotas, junto de outros países árabes, sofridas para Israel nas Guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973). Cujas existências são simplesmente sonegadas no Museu Militar Nacional do Cairo, na mesma pretensão de reescrever a História que o bolsonarismo ambicionava ao Brasil. Era a ebulição do pensamento enquanto os corpos sufocavam trancados sob a luz mais quente do dia, no principal aeroporto do Egito.

Se o brasileiro pensava em explicações, os judeus do ônibus, todos com parentes exterminados em meio às cenas reais de “A Lista de Schlinder” na II Guerra, passaram a agir. Além dos protestos gritados, alguns passaram a socar os vidros das janelas. Só aí abriram a porta, revelando o motivo do atraso: não sabiam se as malas despachadas, empilhadas ao lado do avião, seriam daquele voo. E pediram que os passageiros identificassem as suas, para que fossem colocadas no compartimento de carga. Não era vingança, só incompetência.

Se tinha usado o Êxodo como bússola da viagem com o filho, o pai não esperava tantas dificuldades para seguir do Egito a Israel, três milênios depois. Incompetente para abrir o Mar Vermelho e sem 40 anos para caminhar, sobrevoou o Deserto do Sinai duas vezes no mesmo dia, na ida e volta irracionais da reserva de mercado de uma ditadura militar corrupta.

Antes de ultrapassar as nuvens, o pai observou da janela do avião as três grandes pirâmides de Gizé. Talvez, pela última vez. Agradecido pela vivência delas do chão, de Saqqara, de Tel el-Amarna, de Alexandria, de Aswan, de Abu Simbel, de Luxor, do Vale dos Reis, do Saara, do curso do Nilo e da afluência consigo no cume do Sinai, agradeceu também por conseguir sair daquele país Édipo, filho impotente de um Laio imortal.

Após cerca de 1h30 de voo, pai e filho desembarcaram em Tel Aviv. Tiraram o visto, esperaram as malas, trocaram dólares por shekels israelenses, pegaram o carro alugado desde o Brasil e acharam o hotel perto da praia mediterrânea de Jerusalém. Era noite. Fizeram o check in, deixaram as bagagens no quarto e foram, a pé, tomar uma Guinness no bar de rock da esquina.

A cerveja preta irlandesa desceu pela garganta em Israel. Tinha gosto de veludo e alívio. Afinal, islâmico, cristão, judeu ou ateu, todo mundo é filho de Deus.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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