“Meu voto não é um cheque em branco”. Ressalvei isso ao declarar publicamente, em 28 de outubro de 2022, o meu voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e contra Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno presidencial. Que consumei dois dias depois, na urna eletrônica de uma cidade que confirmaria sua ampla maioria bolsonarista: 63,14% dos votos contra 36,86% do petista, 26,28 pontos atrás. Como a eleição não era a prefeito de Campos, Lula foi eleito presidente do Brasil. Mas por apenas 1,8 ponto de vantagem: 50,9% a 49,1%.
Não estava no Brasil em 8 de janeiro. Mas, do Egito, pude testemunhar a vergonha faraônica que o bolsonarismo fez o Brasil passar mais uma vez aos olhos do mundo. Com a invasão das sedes dos três Poderes em Brasília por muares zebrados de verde e amarelo. Isso, mais a subsequente revelação de que o ex-presidente, antes de fugir do país com o rabo entre as pernas, usou seus últimos dias no poder para tentar consumar sua ação criminosa como traficante internacional de joias, facilitou os primeiros meses do governo Lula.
Nenhuma facilidade circunstancial nubla a tarefa hercúlea do novo governo: reunificar um país politicamente rachado, superar o rombo de mais de R$ 200 bilhões legado pelo “liberalismo” de Paulo Guedes e aprovar qualquer coisa em um Congresso de maioria conservadora. Controlado por um Artur Lira (PP/AL) empoderado pelo Orçamento Secreto do capitão e seus generais de pijama. Se não são dificuldades pequenas, Lula tem contribuído para agigantá-las com o festival de besteiras que anda dizendo. No lugar do ex-sindicalista com ambição a estadista dos seus dois primeiros governos, entre 2003 e 2010, tem lembrado mais o macaco em loja de louças que, do cercadinho do Alvorada, brincou de governar o Brasil de 2019 a 2022.
No seu cercadinho mal travestido de “entrevista” ao site 247 (2 + 4 + 7 = 13), Lula marcou dois gols contra na última terça (21): acusou o Departamento de Justiça dos EUA de estar “mancomunado” com o Ministério Público e a Polícia Federal do Brasil na operação Lava Jato. Não apresentou uma única evidência, como nos delírios bolsonaristas contra a urna eletrônica. E gerou, com sua fake news, embaraço diplomático irresponsável com o governo Joe Biden, fiador da democracia brasileira e seu resultado. Não bastasse, na mesma “entrevista” ao 2 + 4 + 7 = 13, Lula usou verbo de baixo calão para assumir seu maior fetiche nos 580 dias de prisão em Curitiba: “f(…) o Moro”.
A confissão foi ainda mais desastrosa porque, no dia seguinte (24), o ministro da Justiça Flávio Dino revelou que o hoje senador Sergio Moro (União/PR) e outras autoridades eram alvos de um plano de vingança da maior facção criminosa do país. Que foi descoberto em investigação da Polícia Federal. Ex-juiz federal como Dino, Moro foi alvo por decisões corretas no mesmo ministério da Justiça que lhe foi dado por Bolsonaro. Como paga pela interferência incorreta no pleito presidencial de 2018, com decisões judiciais tão parciais quanto o “jornalismo” 2 + 4 + 7 = 13. Pela infeliz coincidência de datas, a declaração infeliz de Lula foi usada e abusada em ilações pela máquina de fake news ainda ativa do bolsonarismo.
Lula marcaria outros dois gols contra na quinta (25), no Rio de Janeiro do Maracanã. O primeiro? Ao anúncio da manutenção da taxa de juros em 13,75% pelo Banco Central, disse que o presidente da instituição financeira autônoma, Roberto Campos Neto, “não foi eleito pelo povo”. Se o debate sobre juros é absolutamente válido em termos republicanos, o petista preferiu a mesma falácia antidemocrática do bolsonarismo contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao qual Lula pretende nomear seu advogado pessoal, Cristiano Zanin. Como já declarou que não respeitará a democracia dos pares na lista tríplice do Ministério Público para indicar o próximo procurador-geral da República. Exatamente como Bolsonaro fez com Augusto Aras.
O segundo gol contra de Lula na quinta, quatro em apenas dois dias, porém, foi o pior. Após afastar investimentos estrangeiros com seu novo ataque ao presidente do Banco Central, o da República creditou a uma “armação de Moro” a investigação republicana da Polícia Federal. Que, sob o seu governo, usou a inteligência para impedir o plano de assassinar e sequestrar autoridades e seus familiares, arquitetado pela principal organização criminosa do país.
Lula tem todo o direito de se ressentir pessoalmente pela conduta comprovadamente parcial do então magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba, por mancomunada com representantes do Ministério Público Federal de Curitiba — não do Departamento de Justiça dos EUA. Que gerou sua condenação, prisão e o impediu de concorrer no voto contra Bolsonaro em 2018. Mas, após jurar não guardar ressentimento na campanha vitoriosa de 2022, Lula não tem o direito de mentir descaradamente por conta desse ressentimento.
O presidente da República não só se reduziu a um revanchista destrambelhado. Colocou sob suspeita a atuação do seu ministro da Justiça, Flávio Dino; do seu diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues; da própria instituição Polícia Federal; e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Ou todos estão mentindo, ou a única armação no caso foi de Lula. Que só serviu para colocar Moro de volta ao palco. E contra o próprio Lula. Com o mesmo desapreço à verdade que tanto era criticado em Bolsonaro.
A maior virtude de Lula, até aqui, foi tirar Bolsonaro do poder. E era o único candidato com voto para isso. Presidente do Brasil pela terceira vez, o maior erro de Lula, até aqui, tem sido reeditar Bolsonaro. Na diarreia verbal, na destilação de ressentimentos mesquinhos e no emprego de fake news. Que o conhecido pragmatismo da China lhe renove os ares. Inclusive para curá-lo da pneumonia. Ou perderá seu fôlego e a paciência de quem, mesmo com críticas ao lulopetismo, definiu em 2022 uma eleição muito, muito dura.
Publicado hoje na Folha da Manhã.