Já disse e escrevi mais de uma vez que considero Elio Gaspari, nascido na Itália, o maior jornalista brasileiro entre os vivos. É impressão que se reforça a cada nova leitura ansiosa dos seus artigos, às quartas e aos domingos, que faço sempre questão de conferir pelo impresso, no jornal O Globo.
No artigo do Gaspari de hoje, não sem orgulho, constato que a análise dele das semelhanças comportamentais que Lula 3 tem apresentado com Bolsonaro é muito próxima à do artigo “A semana Bolsonaro de Lula antes da China”, que escrevi e publiquei sobre o mesmo assunto na edição de sábado da Folha da Manhã e no blog Opiniões, quatro dias antes. Montadas em fatos, deveriam alertar aos petistas e aos “não sou petista, mas…”, tão passadores de pano no seu próprio “mito” quanto os bolsonaristas e os “não sou bolsnarista, mas…”.
Quem finge não ver, de um lado e do outro também, com seu consensual uso dos antolhos de muar “ideológico”, ajuda a afundar o Brasil ainda mais na polarização política acéfala em que chafurda desde 2014. Que, a seguir nessa briga de cegos, pode guardar fim ainda mais vergonhoso do que a tentativa fracassada de golpe de estado de 8 de janeiro.
Aqui e na sua transcrição abaixo, aguda como adaga, a análise do Gaspari:
Lula com Bolsonaro na cena
Por Elio Gaspari
Confirmadas as expectativas, a partir de amanhã Jair Bolsonaro estará no Brasil, procurando espaço para fazer contraponto a Lula. Será uma situação inédita, com um ex-presidente, derrotado nas urnas por pequena margem (1,8 ponto percentual dos votos), opondo-se ao titular. Até agora, os ex-presidentes recolheram-se em elegante silêncio. Além disso, Bolsonaro e Lula 3.0 têm a marca comum de uma agressividade tóxica para a paz política.
O ex-capitão mostrou-se um criador de casos em toda a sua carreira política. Nos quatro anos de governo, brigou com as vacinas, com a China e com as urnas eletrônicas, para citar apenas três exemplos. Lula, que se define como uma “metamorfose ambulante”, fez sua campanha prometendo uma pacificação política e entrou no Planalto brigando com o presidente do Banco Central e vendo uma “armação” do senador Sergio Moro numa investigação da Polícia Federal.
Lula foi eleito por um arco de forças que defendiam a democracia. Quem acha que esse é um simples palavrório deve se lembrar da tarde de 8 de janeiro em Brasília. O arco democrático é algo diferente da frente de partidos que apoiou Lula. No primeiro estão pessoas como o ex-ministro Pedro Malan. Na segunda está a força do Partido dos Trabalhadores. Bolsonaro e os golpistas juntaram esses dois blocos, mas, desde que chegou ao governo, Lula pouco fez para manter o arco. Pelo andar da carruagem, pouco fará.
Bolsonaro foi alimentado pelo sentimento antipetista e batido por sua agressividade irracional e errática. Regressando, ele quer liderar a direita que tirou do armário, mobilizou e acabou por avacalhar. Pode ser que sonhe em ser um novo Carlos Lacerda, que o francês Charles de Gaulle chamou de “demolidor” de presidentes. Lacerda foi um grande governador da cidade do Rio de Janeiro. Falta ao ex-capitão um legado semelhante.
Bolsonaro volta menor, até porque o conservadorismo nacional já dispõe de dois quadros racionais: os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e de Minas Gerais, Romeu Zema. O ex-presidente, contudo, precisa voltar a se alimentar com o antipetismo. Já se abasteceu dele, com sucesso. Precisa da colaboração do PT, e daquilo que se supõe ser a esquerda, para voltar a crescer.
Num cenário em que Lula 3.0 e Bolsonaro compartilhem a cena, abundam os maus presságios. São trazidos pelas características de dois personagens atraídos pela onipotência. A do ex-capitão está no DNA. A de Lula é recente e, de certa forma, pontual. Por mais que se entendam as razões da malquerença de Lula por Sergio Moro, sua elevação à categoria de ideia fixa é inútil e derrogatória para um presidente. As caneladas de Lula em Michel Temer mostram sua disposição de estreitar o arco de forças que se comprometeram com a democracia. O ex-presidente manteve-se neutro na disputa, defendendo seu governo, a democracia e a Constituição. Atacá-lo foi no mínimo uma inutilidade.
Os maus presságios cristalizam-se no risco de um debate de polarizações irracionais. O Brasil já foi governado por um presidente que hostilizava a vacinação durante uma pandemia. Depois da derrota, Bolsonaro disse que teria feito melhor se deixasse a Covid-19 por conta do ministro da Saúde. Pedir desculpas a Luiz Henrique Mandetta e a Nelson Teich? Nem pensar.