Cem dias de Lula na mesa do bar: flerte ao juízo do coito

 

 

— E os 100 dias do Lula 3? Pouco tempo, né? — indagou José Heitor, após tomar o primeiro gole do copo da Antarctica litrão que dividia com o amigo, entre as poucas opções de cerveja, compensadas pela vista do mar no boteco entre as ruínas de Atafona.

— Sim, é pouco tempo. E justamente porque tem mais 45 meses de governo à frente, Lula não deveria estar com tanta pressa — respondeu Aníbal, enquanto também erguia o copo à boca para molhar a palavra.

— Depois do descalabro dos quatro anos de Bolsonaro não era para ter pressa?

— Quem ainda defende Bolsonaro depois da fuga dele para os EUA, da tentativa de golpe de estado dos seus apoiadores em 8 de janeiro e do episódio das joias sauditas, propina escancarada por ter vendido abaixo do preço de mercado uma refinaria na Bahia aos xeques árabes, merece ser levado tão a sério quanto quem delira que a Lava Jato foi parida nos EUA, que o afastamento de Dilma foi golpe, ou finge poder ignorar o descalabro dela e de Mantega na maior recessão econômica da História do Brasil.

— Não tem como comparar. O motivo para o impeachment de Dilma foram as tais “pedaladas fiscais”. Que tiveram o inquérito arquivado pelo MPF. Foi golpe!

— Em primeiro lugar, “impeachment” é um anglicismo para deposição de rei na Inglaterra. Melhor faríamos se chamássemos o afastamento institucional de presidente pelo que de fato é. Que é como toda a América Espanhola o chama: “juicio político”, “julgamento político”. Dilma caiu em 2016 porque perdeu as ruas e o Congresso. Exatamente como foi em 1992, com Fernando Collor de Mello. Bolsonaro não caiu porque dominou as manifestações de rua e comprou o Congresso com o orçamento secreto.

— Depois de comparar Dilma com Bolsonaro, você agora a está comparando com Collor?

— Na incompetência dos três como presidentes, é briga de foice no escuro. Mas a comparação é outra. É sua!

— Minha?

— Sim! Sua! E é jurídica! Como Dilma no MPF, Collor foi inocentado pelo STF no caso do Fiat Elba, motivo oficial do afastamento dele. Se os dois não foram juridicamente culpados, por que foi “golpe” com Dilma e “impeachment” com Collor? Por que o PT foi protagonista do “fora Collor” em 1992, quando passou a dominar as ruas que perdeu em 2013, e foi posto para fora do poder em 2016 junto com Dilma? O critério, então, não é jurídico? É o que interessa ao PT?

— É… é… o assunto não era os 100 dias do Lula 3? Você está desviando o rumo da prosa! — acusou Zé Heitor, depois de engasgar com o gole de Antarctica, enquanto um surfista despencava da crista da onda, no mar castanho de rio diante deles.

— Olha, o PT é, talvez, o único partido do Brasil. Não é um algoritmo de ódio das redes sociais, navegando no ressentimento das tias e tios do WhatsApp. Que, no mundo real, hoje votam no PSL, amanhã no PL. O PT é orgânico, com base em sindicatos, servidores, magistério, universitários de humanas, bichos-grilos e LGBTQIA+. Só que todos teriam que amargar mais quatro anos de Bolsonaro sem os votos do centro. Que foram de Lula no segundo turno de 2022. Como definiram a vitória de Bolsonaro no segundo turno de 2018, votando nele ou nulo.

— Você está ignorando os votos dos pobres e do Nordeste, que deram a vitória a Lula!

— Não, não estou ignorando. Só que esses votos não são do PT; são de Lula. É o eleitor mais pragmático de todos. Não vai na onda da extrema direita e da esquerda identitária, que se digladiam por “ideologia” no conforto burguês da mesma classe média. O pobre vota com o carrinho de compras. Compara o que colocava nele com Lula, mas deixou de colocar com Dilma, com o que colocou nos quatro anos de Bolsonaro.

— Verdade! Nisso concordamos. O eleitor pobre ignorou até o Auxílio Brasil de R$ 600,00 de Bolsonaro para votar em Lula.

— Ignorou, sim. O Auxílio Brasil, mas não o empréstimo consignado. Desde agosto, Bolsonaro assumiu a liderança na classe média baixa, entre 2 a 5 salários mínimos, com a redução a fórceps do ICMS dos combustíveis. Quando também abriu muito nos evangélicos, com a ampliação da isenção fiscal aos pastores pentecostais. Mas só o consignado sangrou Lula no eleitor pobre, com renda até 2 salários mínimos. Começou a ser pago só em 10 de outubro, diminuiu e quase virou a pequena margem de 1,8 ponto que deu a vitória ao petista.

— Se o segundo turno fosse uma ou duas semanas depois, concordo de novo: é possível. Mas o fato é que não foi.

— A imensa maioria da população do Brasil está entre o pobre e a classe média baixa. O que vai definir se Lula mantem o primeiro e reconquista a segunda é a economia. Que depende do sucesso ou não do projeto do arcabouço fiscal de Haddad.

— E o que você achou?

— O texto final nem está pronto. E nasce xifópago de medula da reforma tributária. No mesmo Congresso controlado por Artur Lira. Totalmente alheio a essa discussão, o eleitor até 5 mínimos será o termômetro do resultado.

— E Lula na China, com líderes do MST e do agronegócio, falando contra o dólar e ao lado de Xi Jinping? E os 100 dias de governo?

— Estão como o flerte ao juízo do coito! — sentenciou Aníbal, ao som das ondas quebrando, enquanto buscava respostas na espuma da cerveja ao fundo do copo vazio.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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