Massacre LGBT, Quintana, Homero e Maiakóvski em tercetos

 

Entre Homero e Vladimir Maiakóvski, os 49 mortos no massacre de 2016 numa boate LGBTQIA+ de Orlando (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Arthur Soffiati, professor, historiador, escritor e membro da Academia Campista de Letras

Um poeta universal num recanto do mundo

Por Arthur Soffiati

 

Ainda hoje, vigora a concepção de que existem lugares mais centrais do que outros nos países e no mundo, seja pelo prisma econômico, político e cultural. São Paulo seria mais central no Brasil por representar a locomotiva econômica e política do Brasil, além de ter atualizado a cultura nacional com a Semana de Arte Moderna. Paris já foi o centro cultural do mundo ocidental. Hoje, entende-se que é Nova Iorque. Mas a globalização está criando um mundo acêntrico. Esse é o lado bom dos meios de comunicação e das redes sociais. Quem partir em linha reta de Atafona, em direção a leste ou a oeste, chegará a Atafona. Partindo de qualquer outro lugar — Katmandu, por exemplo — retornará a Katmandu.

Assim, a pessoa é local e global ao mesmo tempo, podendo produzir cultura de qualidade como um grande artista que vive nos grandes centros. O famoso eixo Rio/São Paulo está se enfraquecendo, enquanto emergem novos centros de produção cultural, como Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, João Pessoa, Recife, Belém e Manaus, sem esquecer de outros lugares do Brasil e do mundo.

Aluysio Abreu Barbosa nasceu em Niterói, mas vive em Campos há 51 anos. Ele já andou pelo mundo completamente identificado com o passado, o presente e o futuro. Em outras palavras, ele sabe onde está pisando. Ele sabe também que Campos e Atafona fazem parte do mundo. Sente-se bem no Monte Sinai, na rua Carlos de Lacerda e no delta do Paraíba do Sul. O mundo lhe chega por todos os lados e lhe impregna os poros até o coração e a mente. Dali, sai em forma de reportagens, artigos e poemas.

Sua sensibilidade poética aflorou no início da década de 1990. Desde o princípio, ele mostrou a que veio, como ilustrando o antigo ditado popular: “espinho que pinica de pequeno já traz ponta”. O amor erótico inspirou muitos de seus poemas. Embora um poema dedicado à amada (o/e) tenha alvo identificável, acima de tudo ele só se afirmará situando-se no reino da poesia. Camões e Shakespeare, grandes poetas e até hoje capazes de nos sensibilizar profundamente, escreveram lindos poemas às mulheres amadas e à pulsão erótica. Poderíamos dizer que os primeiros poemas de Aluysio se inspiraram em suas paixões, mas o estado de poesia está presente de forma inequívoca. O que vem a ser este estado? Vem a ser a sensibilidade com que se vê e se sente o mundo. É o estado de poesia que anima os grandes poetas.

Aluysio vai se abrindo ao longo dos anos ao sentimento do mundo. Ele frequenta, e muito, os grandes poetas. Escrever poesia não é empilhar versos. Não é traduzir uma topada em palavras. A arte da poesia não vem só do coração, mas também da mente. Sobretudo, vem da consciência que o poeta desenvolve em se compreender e em se posicionar. Leitor privilegiado dos poetas gregos e de Fernando Pessoa, Aluysio Abreu foi construindo sua posição como poeta ao encontrar progressivamente o seu lugar de fala poética. Hoje, ele está no centro de uma roda formada por Gregório de Matos, Castro Alves, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto, Dante Milano e Manoel de Barros. Ele tem consciência do espaço em que se move.

Erótico e épico, Aluysio afia sua sensibilidade poética dia a dia. Ao mesmo tempo, aprimora a forma. Não sabemos onde isso vai parar. Só prevemos um caminho cada vez mais promissor ao poeta atafonense-campista-brasileiro-mundial. Ele caminha como Gilgámesh, Ulisses e Severino. Gilgámesh viajava à procura da imortalidade. Não a atingiu, mas se tornou imortal na epopeia escrita pelas mãos de poetas anônimos. Ulisses viajou de volta ao lar e viveu muitas aventuras. Severino viajou do sertão ao litoral, registrando a miséria que encontrou na Caatinga, na Zona da Mata e nas cidades e manguezais. Aluysio viaja em Atafona e encontra a areia da praia, a água do Paraíba do Sul, rio que se estiola, as árvores litorâneas, uma capivara, pessoas e fantasmas. Uma grande caminhada pode permanecer ignorada ou se imortalizar em prosa e verso. Depende do caminhante, pois o caminho se faz ao caminhar, como escreveu Antonio Machado.

Mas o radar de Aluysio está também voltado para o mundo. Sua condição de jornalista capta imagens e sons que chegam de todos os lados. Vários deles chegam ao seu epicentro poético e se transformam em poemas. Distingo poesia de poema. Poesia é um estado de sensibilidade. Poema é a tradução dessa sensibilidade em forma de palavras e de figuras, pois o poema pode ser escrito com palavras ou figuras. As palavras podem formar figuras, como em Gilberto Mendonça Teles, ou as figuras podem ser lidas como palavras, como em Wlademir Dias-Pino. As palavras podem se transformar em pedra, água, peixe, ave, como em Manuel de Barros. As palavras podem se transformar em lâminas, como em João Cabral.

No poema “o horror”, tomando apenas um exemplo dentre muitos, Aluysio está em sintonia como o mundo: “o frio mudo entre as meias/finas do dia/dos namorados/grita lá fora no coito dos gatos//meus pés já não tocam o calor/das vidas calçadas por garras/a sangrar a noite de orlando//à caça do coito dos gatos/mulheres e homens gelados/e cento de pés sem função”. A centopeia morta é a multidão de pés dos homossexuais e outras pessoas mortas no massacre numa boate LGBT de Orlando, nos Estados Unidos de junho de 2016.

Aluysio está também atento às formas. Imortalizado por Dante na “Divina Comédia”, o terceto é uma forma difícil. Rimar o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o primeiro do terceto seguinte, formando um quarteto partido. Movimentando-se no universo modernista, Aluysio não se vale necessariamente da rima, o que não desvaloriza a forma “terceto”.

Os poemas que ilustram este texto mostram o Aluysio valendo-se da dificílima forma haicai, que poetas japoneses mais pintavam que escreviam. Notemos a sutiliza no emprego da palavra tempo em sentidos diferentes, o contraste entre Homero e Maikóvski e a oposição entre ruído e silêncio. Aluysio é uma cartola da qual ainda sairão mil coelhos.

 

Marlon Brando, na pele do coronel Walter E. Kurtz de “Apocalypse Now” (1979), filme de Francis Ford Coppola inspirado no romance “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, exclama em sua morte: “O horror! O horror!”
Marlon Brando, na pele do coronel Walter E. Kurtz de “Apocalypse Now” (1979), filme de Francis Ford Coppola inspirado no romance “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, exclama em sua morte: “O horror! O horror!”

 

TRÊS POEMAS DE ALUYSIO ABREU BARBOSA(*):

 

o horror

 

o frio mudo entre as meias

finas do dia dos namorados

grita lá fora no coito dos gatos

 

meus pés já não tocam o calor

das vidas calçadas por garras

a sangrar a noite de orlando

 

à caça do coito dos gatos

mulheres e homens gelados

e cento de pés sem função

 

campos, 13/06/16

 

 

haicai para quintana

 

a leve brisa do tempo

com o tempo

verga o tronco da árvore

 

 

zênite

 

a aurora de homero

malhou meio dia

em maiakóvski

 

atafona, 04/02/07

 

(*)Poeta, jornalista e membro da Academia Campista de Letras

 

Folha Letras da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Ana Helena Nogueira Ribeiro Gomes

    Amanhecer luminoso com os versos de Aluysio.

  2. Sérgio Arruda

    Maravilha! Dá gosto ler uma resenha crítica argumentada, com estilo. Ficamos sem dúvida nenhuma da grandeza dos versos resenhados.

  3. Ana Helena Nogueira Ribeiro Gomes

    Primoroso Soffiati ao distinguir poesia e poema ; vc traz nos versos o trágico da morte coletiva. É muito profundo o seu poder metafórico, Aluysio, vc fica me devendo ( a mim e a seus leitores) o íntimo dos seus sentimentos, sobretudo no tempo em que vivemos. Prefácio vc já tem!

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