Quatro meses sem Ícaro — Gota por gota brilhante vermelha

 

Aluysio e Ícaro Abreu Barbosa, Iquipari, 2004 (Foto: Rosana Vinhosa)

 

Álvares de Azevedo

Era chamado de 1º grau naquela primeira metade dos anos 1980. Todo cursado no Liceu de Humanidades de Campos, quando o ensino público era referência. Hoje, acrescidos ao antigo primário como últimos quatro anos do ensino fundamental. Lá tomou conhecimento do Romantismo no Brasil. Entre outros, ouviu falar pela primeira vez no poeta Fagundes Varela. E varou madrugadas assombrado pelo retrato em branco e preto do poeta Álvares de Azevedo.

Castro Alves

Naquela época, aos 14 anos, seria capturado pela poesia. Não em nenhuma didática escolar. Mas, por indicação paterna, da primeira leitura de “O navio negreiro”, de Castro Alves. Ainda sem saber como, ali destinou-se: queria despertar nas pessoas, antes de ler Pessoa, a “turba de infantes inquieta”. Em empatia às “Legiões de homens negros como a noite,/ Horrendos a dançar” no canto daquele baiano libérrimo, audaz. Que, aos 21 anos, a brisa do Brasil beijou e balançou. Na visão do albatroz alçada em 1868, quando o homem ainda não voava.

Na passagem dos séculos seguintes, o adolescente já era homem e pai do filho único, nascido em 1999. Um pouco mais tarde, em 2007, o poeta e ensaísta Alexei Bueno lançou “Uma história da poesia brasileira”. Que, no Romantismo, pinça a resposta de Castro Alves sobre o poeta que mais admirava: “Entre os mortos, Álvares de Azevedo; entre os vivos, Fagundes Varela”.

Fagundes Varela

No livro de Bueno, o pai deu com o poema “O cântico do calvário”, considerado a obra-prima de Varela, e suas circunstâncias. Que o poeta romântico, então aos 21 anos, dedica “à memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863”. E no qual sentencia antes de beber até morrer 12 anos depois: “Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,/ O porvir de teu pai!”.

Impactado, como quando adolescente e leu a primeira vez “O navio negreiro”, o pai tremeu com aquela nova perspectiva. Não mais do albatroz sobrevoando “um sonho dantesco”. Mas de dentro deste, em sua visão mais profunda. Em empatia próxima à que teve pelos africanos escravizados e acorrentados no “porão negro, fundo,/ Infecto, apertado, imundo” de um navio, anotou à caneta no branco lateral da página do livro. Como não poderia sentir um homem que nunca teve filho: “Sei de Fagundes Varela. Sei da sua dor. E o amo por isso”.

Manuel Bandeira

Modernista após o início parnasiano, o poeta e crítico Manuel Bandeira foi outro impactado pela leitura de “O cântico do calvário”. Que classificou como “uma das mais belas e sentidas nênias da poesia em língua portuguesa. Nela, pela força do sentimento sincero, o Poeta atingiu aos 21 anos uma altura que, não igualada depois, permaneceu como um cimo isolado em toda a sua poesia”.

Pensava em tudo isso enquanto caminhava no Boulevard de Campos, no final da manhã da última quarta-feira, dia 13, em direção à Catedral. Onde a mãe havia colocado na missa do meio-dia o nome do filho de ambos. Cuja morte precoce, aos 23 anos, completava quatro meses naquele dia contrastante de setembro, em vento e sol igualmente fortes.

Paula Meehan

O pai encontrou a mãe. Chorava sob a sombra de uma das colunas da entrada da igreja matriz. Veio-lhe a lembrança imediata de um poema que havia enviado a ela dois dias antes. Considerada entre os maiores nomes da poesia contemporânea da Irlanda, terra dos poetas por excelência, a pós-moderna Paula Meehan desvelou em versos a face materna da dor do romântico Varela. Indizível a qualquer mãe ou pai, “gota por gota brilhante vermelha”:

 

O enterro da criança

(Tradução de André Caramuru Aubert)

 

Seu caixão parecia irreal,

bonito como um bolo de casamento.

 

Escolhi suas roupas com cuidado

sua camisa listrada favorita,

 

suas calças azuis de algodão.

Cheirando a lenha queimada, a outubro,

 

seu próprio aroma ali também.

Escolhi uma malha de lã tricotada à mão,

 

quente e felpuda para você. É tão

frio lá embaixo, no escuro.

 

Nenhuma luz te alcançará para poder mostrar

os voos dos pássaros selvagens,

 

os nomes das flores,

dos peixes, das criaturas.

 

Você nada saberá

do sol e do que ele faz,

 

meu cordeiro, meu bezerro, minha aguiazinha

meu filho, meu filhote, minha cria,

 

meu bebê, meu potrinho. Eu voltaria

no tempo, trazendo-o de volta

 

para o meu útero, sua toca amniótica,

e o levaria ainda mais para trás

 

através de nove acalentados meses

para o momento da compartilhada semeadura

 

em que você decidiu se fazer carne,

promessa dentro de mim.

 

Eu cancelaria a celebração do amor

a noite quente de sua criação.

 

Eu viajaria sozinha

para um lugar tranquilo coberto de musgo,

 

e você transbordaria de mim para a terra

gota por gota brilhante vermelha.

 

Página 4 da edição de hoje da Folha da Manhã

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Ana Helena Nogueira Ribeiro Gomes

    Começo o dia transbordando de versos e emoção. Só ela, a poesia, para traduzir ( se é possivel) essa dor que grita nas funduras. Avante, expressando seus sentimentos, Aloysio, trazendo luz às entranhas da sua alma. Agradeço vc compartilhar comigo.

  2. Odisseia Carvalho

    Quanto amor envolvido e transmitido nesta foto.Força e fé.

  3. César Peixoto

    Boa tarde Aluysio,só quem passou pôr essa situação sabe a dor de um pai, fica aqui mais uma vez os meus sentimentos e que Deus de luz a você para continuar a caminhada.

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