POR UMA POÉTICA DO ESSENCIAL (OU DA SECURA)
Por Sérgio Arruda de Moura
Não é de hoje que a literatura (poesia e ficção) se alimenta de suas próprias arquiteturas, isto é, de seus espaços no mundo, construídos pela arte com a palavra. Pois, se o lugar no mundo da literatura é o espaço que ela própria criou — ainda que procuremos desesperadamente aquilo de que ela fala — a primeira armadilha já está feita e falta só um passo para caírem dentro dela o poeta e o leitor, dentre eles, o leitor-crítico. Falo isso em função das dificuldades de leitura que um poema apresenta, e das saídas fáceis para escrevê-los “legíveis” e, pior ainda, floreados. Mas é bom viver iludido, levantando castelos e taperas no ar, colocando gente dentro deles, fazendo-os falar, se estarrecer, refletir sobre a tarefa de viver, encarar o outro e a si, enfim, buscar na palavra algum recanto de onde possa lançar a inumerável pergunta: que é a poesia e o que o poeta faz para fazer poesia? Não vale escrever dissertando, defendendo teses e quebrando as frases no meio da linha para criar a ilusão de que está fazendo um poema…
O poema — eu sei, é desconfortável — tem que trazer algum hermetismo. Tem que fisgar desde o título: Pois bem, lá vai: o que são oito secos, por exemplo?
O que se sucede é um desfile de personagens — da voz, dos músicos instrumentistas, da própria poesia, do romance, do cinema e até do futebol. Mas principalmente da própria poesia — de ontem e de hoje.
A poesia se faz a partir do seu próprio interior. O poeta não vive sem se enfurnar dentro dos versos alheios e das vivências de poetas, de onde vai buscar a seiva de seus próprios versos.
Se encararmos a tradição milenar da literatura — a arte de narrar, cantar em versos —, vamos perceber que ela é a única atividade humana a se manter tal como sempre foi: encantamento, mergulho em si, beleza gratuita, cavada de dentro, sem utilidade finalista, elevação, beleza… Tiro tudo isso da belíssima evocação que o poeta mexicano Octávio Paz (1914-1998) faz da poesia, em O arco e a lira. Sim, parece que só um poeta tem a chave da definição exata do que seja a poesia — e que nem é tão exata assim. Pois vejam só:
“A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono […]. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente”.
Essas linhas iniciais me recordam do grave exercício da crítica ou do ensaio num terreno tão incerto e, a uma só vez, sombrio e revelador — que é a poesia. Se a linguagem revela e esconde no mais comum dos pronunciamentos humanos, o que esperar dela quando seu exercício é no interior de uma proposição poética? Trago o arco e a lira comigo desde sempre, a me lembrar do alto elogio que a linguagem faz de si mesma quando envereda pela poesia. E se tornou uma bíblia onde tudo está dito e onde checo a pertinência da poesia que me assalta.
Como disse desde lá em cima, o exercício da literatura é interno à palavra. Não procuremos seus sentidos lá fora, sem antes ver a arquitetura cá dentro. Eventualmente ela é manifesto, mas aí ela é bandeira para os exercícios de novas safras e novas visadas.
N’os oito secos, poema de Aluysio Abreu, o painel talvez seja o de uma vida inteira do poeta, um recorte da memória de quem com a voz, com os instrumentos, com a destreza com a bola, com os versos secos e descarnados, com a frase exaurida até o extremo de floreios linguísticos inspirou a poesia no poema. Sim, tem o poema e tem a poesia, e nem sempre os dois estão juntos.
Neste painel em marca d’água ao lado ao qual se sobrepõe o poema os oito secos figuram os oito secos, oito figuras ilustres da poesia, do romance, da música, do canto, da interpretação. Mas o poema traz mais. Lembro do extremo exercício de aridez essencial e necessária que há em Graciliano e Hemingway e os recomendo aos meus alunos iniciantes na escrita — tão propensos aos excessos despontuados típicos.
Desses oito secos, eu fico com todos. Procurei a secura de De Niro e — sim — não tem ninguém mais low profile quando encarna um papel no cinema. Do Cabral neoparnasiano — não, não é ofensiva a alcunha — nem se fala: da secura de subjetividades de sua poesia salte talvez o que de mais seco haja na poesia brasileira, com o sacrifício público do eu-poético em favor do exercício da palavra.
Pois bem. Com esse painel, o poeta Aluysio Abreu bem que podia lançar o Manifesto em favor da secura na poesia, bastante útil para iniciar os poeta novos ou reiniciar os velhos acometidos de comichões adolescentes e revolucionárias incabíveis em versos intensamente molhados.
Os oito secos enfim é um poema com poesia e metapoética, pois disseca a poesia que há em cada canto do mundo, mesmo quando o instrumento não é a palavra. Billie Holiday, por exemplo, é a dona da navalha afiada na produção da dicção da sílaba e do afiamento da lâmina cortando fora o que não é essencial à nota. Tão cabralino o rastreio que o poeta Aluysio Abreu faz! De quebra, a vida triste da cantora, breve, quase como convém ao artista…
O painel de ensinamentos sobre a secura prossegue com Chet Baker ladeado por João Gilberto: lacônicos, secos, essenciais, sem pirotecnias. Tem Eric Clapton, descendo o tom, trocando instrumentos, passeando em poéticas, cortando o excesso. O mais problemático pra mim, segue com Zidane: como tirar poesia de um jogador de futebol? Já fizeram isso com inúmeros garrinchas e pelés, mas com esse francês, é a primeira vez, eu que o conhecia só da testada que deu em outro e daí foi expulso do gramado de onde tirava versos, certamente com seu bailado com a bola. Difícil pra mim, mas aceitei no poema, tal a confiança que já tenho no poeta Aluysio Abreu.
O cortejo se recupera na secura de Graciliano que nas suas vidas secas só poupou da secura a cachorrinha Baleia, que me botou um dia a chorar…
Por fim, tem Cabral de Melo Neto, o João, que todos sabem ser o seu deus no manejo da secura: “degolou a confissão/ na poética sem sombra ao meio-dia”.
Os oito secos é um poema de maturidade, escondendo o que podia ser óbvio, no mistério do verso contido, seco, explodindo em uma poética… Magistral sacação do conceito poético com uso do que há de mais (i)maculado na palavra, sem afetação do senso comum e do floreio, de truques para captar os bons sentimentos cansados. É o contido. É o seco e cerebral. O leitor, se assim o quiser, que o umedeça nas suas lágrimas, ou nas águas do Capibaribe ou de Atafona.
POEMA DE ALUYSIO ABREU BARBOSA(*):
os oito secos
(1)
billie holiday tinha a dicção
das sílabas em postas
com sangue de escansão
gume da navalha a cada nota
com ella fitzgerald ao cutelo
o “meu homem foi embora”
saiu pra comprar cigarro
billie só cantava o que não volta
pelo pescoço pendurado à árvore
fruto estranho o corpo preto
vida e arte, poro, pele
de gardênia branca no cabelo
de prostituta a sofisticada dama
entre meninos e meninas
alforriou depois do antes
para morrer algemada a uma cama
(2)
chet baker também era do jazz
anglo-saxão, da costa oeste
norte a joão gilberto
lacônico na voz e no trompete
na vilania da heroína mastigado
após surra de traficante
reagiu novo caminho
reaprendeu a tocar sem os dentes
improviso em saliva à ponta da língua
avesso a partituras
pedia só o tom
chegava aonde não desce a pirotecnia
atafona, diálogo a dois do lamento:
“stay little valentine, stay!”
— você nunca pediria isso!
— só o mar e chet sabem que tentei!
(3)
eric clapton, elevado deus da guitarra
do rock, por ser do blues
alcunha na mão lenta
foi a jimi hendrix o que odisseu foi a aquiles
largou o yarbirds, rebatizado led zeppelin
mergulhou na música negra
robert jonhson em ínterim
ao creme da maior banda da terra
inglês branco, custou se assumir bluseiro
trocou guitarra por viola
sentou três cães ao berço
cagado pelo homem negacionista
frases melódicas em notas longas
voz no timbre de ray charles
é como um português
se divino no samba da mangueira
(4)
cabral de melo neto, o joão
afiou faca só lâmina
degolou a confissão
na poética sem sombra ao meio-dia
derramamento ao espelho de medusa
do recife à sevilha
música só das siguiriyas
em estudos a uma bailadora andaluza
é cante que não canta ou se enfeita
pedra do sono desperta
para estranhar a alma
dos homens ossudos, do cão sem plumas
capibaribe ao paraíba do sul
canavial de vidas
severinas sob céu azul
dois rios a caminho do mesmo mar
(5)
zinédine zidane, o futuro atleta
que joão cabral boleiro
passou pra ser poeta
e o francês tirar da grama versos
pé negro africano, filho de argelinos
pensava só na vertical
arquiteto ambidestro
duas pernas longas à bacia do cérebro
nunca tinha feito gol de cabeça?
meteu dois no brasil
na final do mundial
noutra, mesmo ao se perder, usou a testa
lento, infiltrava seu tempo ao jogo
no lençol nos ronaldos
fez do barroco concreto
colocar dobradiça na espinha do outro
(6)
graciliano ramos não era da relva
detestava futebol
pregou outro uso de pernas
a rasteira como esporte nacional
da caatinga, em oposição ao verde
oposta também sua prosa
à suculência dos sertões
na cunha de euclides, veredas em rosa
vidas secas emergiram antes
na baleia sem plumas
dois meninos sem nome
de fabiano e sinhá vitória
em rasteira dada por recebida
um papagaio mudo
comido por gente muda
e devorada crua atrás do sonho
(7)
robert deniro, de corpo inteiro
argila de escultura
contraído só no rosto
todo sujeito que passa pela rua
alter ego a martin scorsese
mifune de kurosawa
fúria taxista sem bandeira
à do touro indomável do boxe
às mãos de palma erigiu al capone
rachou crânio com taco
com coppola e corleone
oscar da paridade a marlon brando
missão de mercenário a jesuíta
à espada do curumim
olha a arma, ao menino fita
em silêncio, grita humanidade ali
(8)
ernest hemingway fez-se personagem
no limite, pela essência
porre, pesca, caça, guerra
prosa do jornalismo no romance
quando seu protagonista foi o outro
velho chamado santiago
os tubarões do mar de cuba
comeram aos ossos a literatura
loucos anos de paris como uma festa
ao câmbio de erza pound
pugilato por poesia
viu quem tinha maior com fitzgerald
resgatou john donne ao modernismo
nos sinos que dobram por ti
trocou tiro com o fascismo
personagem, deu ponto final a si
campos, 09/04/22
(*)Jornalista, poeta e membro da Academia Campista de Letras (ACL)
Inebriante