Você é expulso da casa na qual se criou e que herdou dos seus antepassados. Primos com linha de sangue com seus avós, mas de outra religião e língua, ocupam a casa durante sua longa ausência. Após passar por grandes sofrimentos numa vida errante pelo mundo, este define que você pode reocupar sua antiga casa. Mas tem que dividi-la com seus primos, que não o querem de volta. Grosso modo, esse é o dilema desde a criação dos estados de Israel e da Palestina, dividindo a mesma Terra Santa para judeus, cristãos e islâmicos, após a II Guerra Mundial (1939/1945). Depois de várias outras guerras pela posse dessa mesma “casa”, o conflito volta a chamar a atenção do mundo desde os ataques terroristas do grupo palestino Hamas contra Israel, por terra, mar e ar, no último sábado (7).
ATAQUE, CONTRA-ATAQUE E MORTOS — A partir da sua base na Faixa de Gaza, o Hamas usou soldados armados e alguns milhares de foguetes e mísseis para matar 900 pessoas em Israel, a grande maioria civis. Incluídos os brasileiros Bruna Valeanu e Ranani Glazer, respectivamente, de 24 e 23 anos, que estavam numa festa rave; e cerca de 40 bebês israelenses que teriam sido decapitados num kibutz. Surpreendido e com cerca de 100 de seus cidadãos também levados como reféns, Israel respondeu com a declaração de guerra consumada com bombardeios desde o domingo (8) sobre Gaza. Que, até a noite de ontem, tinham matado 900 palestinos, também civis na maioria, cerca de 100 deles crianças.
GAZA E O HAMAS — A Faixa de Gaza fica entre o centro-oeste e o sudoeste da Terra Santa. Nela, 2,3 milhões de palestinos são empilhados por Israel num campo de concentração a céu aberto de 365 km2. Onze vezes menor que o município de Campos, o território é controlado pelo Hamas. Que lá chegou ao poder pelo voto nas eleições legislativas palestinas de 2006. Mas o mantém de lá para cá com mão de ferro, como o tráfico de drogas ou as milícias fazem com as comunidades carentes das grandes áreas urbanas brasileiras.
CRIMES DE GUERRA — Além dos bombardeios, a Faixa de Gaza teve a entrada de energia elétrica, água e comida fechada por Israel. Assim como a saída de qualquer cidadão palestino, tenha ou não ligação com o Hamas. No que foi denunciado como crime de guerra, assim como os ataques terroristas do Hamas, pela Human Rights Watch, uma das mais importantes organizações de direitos humanos do mundo. A ONU também já iniciou investigação de crimes cometidos pelos dois lados do conflito, para posterior responsabilização. Que também pode acontecer pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda.
CISJORDÂNIA E ANP — A outra área da Palestina é a Cisjordânia, que até agora não se envolveu no conflito. Com 5.860 km2, não tem ligação terrestre com a Faixa de Gaza e é bem maior que esta. No centro-leste da Terra Santa, a Cisjordânia é, em tese, administrada pela Autoridade Nacional Palestina (ANP), opositora política do Hamas. Mas é controlada de fato por Israel, cuja extrema-direita no poder com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu insiste em instalar colonos judeus na região. De origem laica, a ANP reconhece a existência do estado de Israel. Fundamentalista islâmico, o Hamas, não.
PODERIO BÉLICO — Com cerca de 126 mil homens mobilizados em suas Forças Armadas, consideradas entre as melhores do mundo após várias vitórias militares sobre seus vizinhos árabes, Israel já convocou 360 mil reservistas, incluindo brasileiros de dupla cidadania. E prepara uma invasão por terra à Faixa de Gaza. Onde pode esbarrar numa guerra de guerrilha, na qual o mais fraco sempre aumenta suas chances contra o mais forte. Operando como milícia paramilitar, o Hamas teria entre 20 mil e 40 mil homens armados. Desde que se retirou da Faixa de Gaza em 2005, Israel não teve sucesso em tentativas posteriores de voltar militarmente à região.
HEZBOLLAH E IRÃ — Muito mais poderoso que o Hamas é o Hezbollah. Outro grupo paramilitar extremista que atua no Líbano, vizinho de Israel ao norte, conta com cerca de 100 mil homens armados, 100 mil mísseis e artilharia. Analistas do mundo se dividem se o grupo libanês se envolveria no conflito, abrindo outra frente de batalha contra Israel, caso este invada a Faixa de Gaza. Mas como o Hezbollah é financiado diretamente pelo Irã, isso poderia envolver também este país numa eventual escalada do conflito.
PARCEIROS DE OCASIÃO — Na divisão do mundo islâmico desde a Idade Média, o Hamas é sunita, enquanto o Hezbollah e seu patrocinador Irã são xiitas. Opositores no plano religioso, são parceiros geopolíticos de ocasião, unidos no não reconhecimento à existência de Israel. Que, se estender sua guerra ao Irã, dificilmente o faria sem o apoio dos EUA. Por enquanto, foram registrados alguns outros pequenos ataques e contra-ataques envolvendo Israel, partindo do Líbano e da Síria. Esta, aliada da Rússia de Vladimir Putin, já envolvido em sua própria guerra com a vizinha Ucrânia.
BRASILEIROS CHEGAM DE TEL AVIV — Enquanto isso, é esperada às 4h da madrugada de hoje a chegada do primeiro voo da Força Aérea Brasileira (FAB) trazendo brasileiros que estavam na zona do conflito. A aeronave KC-30, com 211 passageiros, partiu às 20h12 no horário de Israel (14h12 de Brasília), do aeroporto Ben Gurion, na capital, Tel Aviv. Segundo o Itamaraty, estão previstos mais cinco voos até o próximo domingo (15).
LULA, BOLSONARO E MORO — Embora tenham condenado os ataques terroristas, as notas do Governo Federal, do presidente Lula (PT) e do Itamaraty não citaram o nome do Hamas. Porque, se o fizessem, teriam que classificá-lo, ou não, como grupo terrorista. Adversários do petista, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o senador Sergio Moro (União/PR) lembraram que o Hamas parabenizou Lula por sua eleição em outubro passado.
MST VÊ “REAÇÃO LEGÍTIMA” DO HAMAS — Aliado de Lula, o MST soltou ontem uma nota, em que afirmou: “Resistência Palestina, desde Gaza, reagiu, de maneira legítima, às agressões e à política de extermínio que Israel implementa na região há mais de 75 anos (…) À brava Resistência Palestina em Gaza: seguiremos apoiando e defendendo o direito legítimo dos povos a reagir contra a opressão”.
JOE BIDEN — No hemisfério oposto das Américas, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou ontem: “Nós estamos com Israel, apoiamos Israel, e garantiremos que tenham tudo o que precisarem para cuidar dos seus cidadãos, defender-se e responder a esse ataque”. Atrás do ex-presidente Donald Trump nas pesquisas da eleição à Casa Branca em 5 de novembro de 2024, Biden pode ser tentado a mudar essa situação na pretensão dos EUA à condição de “polícia do mundo”. Mesmo que ela não tenha vingado recentemente em outros países islâmicos, como o Iraque e o Afeganistão.