Os sertões e os filhos
(A Ícaro e Christiano Barbosa, Rafael Abreu e Paullo de Régis)
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Vencido palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 (de outubro de 1897), ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. Testemunha ocular da Guerra de Canudos (1896/1897), assim Euclides da Cunha narra seu último combate, no livro “Os Sertões”.
Maior guerra civil da História do Brasil, Canudos é o nome da planta de caule oco usada para fazer cachimbo que dava nome à fazenda de gado semiabandonada no norte do sertão da Bahia, às margens do rio Vaza Barris. Como é um dos poucos daquela região que corre o ano inteiro, o profeta cearense Antônio Conselheiro lá bateu o cajado, após 25 anos de peregrinações pelo Nordeste, para fundar seu Arraial do Belo Monte em 1893.
Quatro anos depois, quando a quarta expedição do Exército Brasileiro levou a cabo sua guerra de extermínio contra o povo brasileiro, Belo Monte somava 25 mil habitantes. O que fazia dele a segunda maior cidade da Bahia, atrás apenas da capital, Salvador. Cerca de 20 mil sertanejos foram dizimados a tiros de fuzil, metralhadoras e artilharia, dinamitações e degola a fio de faca dos prisioneiros, sem pudor a mulheres e crianças, pelos militares. Que, graças à resistência impressionante dos sertanejos, também perderam cerca de 5 mil soldados.
Fato é que, em um Brasil de economia eminentemente agropecuária, o modo de posse e produção coletiva da terra por parte de Conselheiro e seus seguidores, com base nos evangelhos, produziu inegável sucesso socioeconômico. Que, à parte a fé, serviu de alternativa real e atraente a ex-escravos negros, libertos e entregues à própria sorte poucos anos antes, em 1888. Como aos caboclos oprimidos pelo regime latifundiário e feudal do Nordeste. Que pouco ou nada mudou com o golpe militar que passou o país de Império à República, em 1889.
Economicamente exitoso e extremamente popular, esse modelo alternativo de sociedade, sem proprietário, padre ou delegado, passou a preocupar os coronéis — como eram chamados, desde o Império, os latifundiários aliados ao governo central — e o clero católico do Nordeste. Como Conselheiro havia queimado placas de cobrança de impostos da recente República, por considerá-la escorchante e por não enxergar legitimidade no novo regime, ainda fiel ao princípio religioso do “direito divino” monarquista, isso foi usado pelos seus detratores.
Com base numa notícia falsa de que os conselheiristas iriam invadir a cidade de Juazeiro, para tomarem à força um carregamento de madeira destinado à construção do telhado da Igreja Nova do Belo Monte, que tinha sido pago adiantado, montou-se a primeira expedição militar contra o arraial. Tinha 113 homens e era comandada pelo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira. Em novembro de 1896, foi enfrentada pelos sertanejos na cidade de Uauá, vizinha a Canudos. E, embora com poucas baixas, posta a correr.
A primeira derrota passou a ser retratada como a vitória de um Brasil medievo, interiorano e monarquista sobre o Brasil às portas do século 20, litorâneo e republicano. E vai se reafirmar nas vitórias conselheiristas sobre as duas expedições militares seguintes. Que passaram a ser falsamente justificadas por uma suposta ajuda internacional de regimes imperiais, como do Reino Unido, à comunidade autônoma, autossuficiente e independente do sertão do Nordeste.
Comandada pelo major Febrônio Ferreira de Brito, a segunda expedição tinha 619 homens. E foi posta a correr em janeiro de 1897, nos arredores de Canudos. A terceira foi comandada pelo coronel Antônio Moreira César, conhecido como “Corta Cabeças” por sua atuação violenta contra a Revolução Federalista (1893/1895), no Sul do Brasil. Tinha 1.300 soldados, artilharia e foi a primeira a chegar ao Belo Monte. Após a primeira carga de infantaria contra o arraial e a morte de Moreira César, ferido em combate, também foi posta a correr em março de 1897. E deixou para trás grande parte das suas armas e munições, com as quais armou os conselheiristas.
Comandada pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães, a quarta e última expedição foi composta inicialmente de 5 mil soldados. Chegou no final de maio de 1897 sobre Canudos, no alto do Morro da Favela, batizado pelo arbusto da caatinga chamado favela. De volta à cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, a semelhança física entre o Belo Monte e as comunidades dos escravos recém-libertos nos morros cariocas faria com estas passassem a ser também chamadas de favela pelos soldados vindos do sertão.
Apesar da conquista da posição estratégica sobre o Belo Monte, seus tenazes defensores cobraram preço alto ao Exército. Armados pela expedição Moreira César e comandados por lideranças conselheiristas de brilho militar, como o negro Pajeú e João Abade, os sertanejos usaram táticas de guerrilha e conhecimento do meio agressivo da caatinga para matarem rapidamente mil soldados, ou 1/5 da nova força invasora.
Sem ter como avançar e sob risco de o Exército ser posto mais uma vez a correr pelo sertão, Artur Oscar pediu e recebeu, em agosto, reforços de todas as partes do Brasil, totalizando 10 mil homens. Os problemas crônicos de abastecimento das suas linhas, no entanto, só seriam resolvidos em 6 de setembro. Foi quando o marechal Carlos Machado de Bittencourt, ministro da Guerra do governo Prudente de Moraes, primeiro presidente civil do Brasil, chegou à região do conflito. E nela comprou todos os burros disponíveis.
Em 16 de setembro, enviado como correspondente do jornal A Província de São Paulo (depois, O Estado de S. Paulo), Euclides da Cunha chegou ao Belo Monte, já completamente cercado pelo Exército. No dia 22 daquele mês, morreu Antônio Conselheiro, por ferimentos de estilhaços de granada e disenteria. Além de 31 reportagens e 62 telegramas, Euclides fez entrevistas, estudos e anotações que, enquanto trabalhava como engenheiro de obras públicas na reconstrução de uma ponte no município paulista de São José do Rio Pardo, gerariam “Os Sertões”, publicado em dezembro de 1902.
Jovem saído da adolescência e ainda sem filhos, foi num verão de rede e vento nordeste, na Atafona de 1992, que leu pela primeira vez “Os Sertões”. Naqueles mesmos dias, após descobrir sua brasilidade no duplo de Conselheiro e Euclides, teria sua primeira experiência de morte. Da qual sobreviveria para ser pai em 1999. Em 2002, no centenário de “Os Sertões”, quando seu filho tinha 3 anos, fez sua primeira expedição a Canudos. Que gerou um caderno especial de 10 páginas, patrocinado pelas universidades de Campos e publicado em jornal.
O filho montou sua própria mitologia entre as histórias daquela outra expedição jornalística, na busca de um país. Que encontraria na sua própria leitura de “Os Sertões”, também no início da juventude. Numa viagem com o pai pelas mesmas Israel e Palestina poucos meses depois em guerra, planejaram ir também a Canudos. Após a morte precoce do filho aos 23 anos, em sua memória, o mesmo roteiro de 21 anos antes foi cumprido. E amigos revisitados.
No Vale da Degola de batismo autoexplicativo, diante do Açude do Cocorobó, onde as águas do rio Vaza Barris foram represadas, em meio a balas de fuzil e ossos humanos do século 19 que ainda brotam do solo pedregoso da caatinga do século 21, após as orações do pai, o primeiro dente de leite do filho foi depositado. Agora, resto mortal do seu menino. E mais um homem feito na última trincheira do sertão.
Publicado hoje na Folha da Manhã.
Excelente texto e reflexão, Aluísio. Parabéns!!!