Capitu de Arlete Sendra retorna ao palco do Teatro de Bolso

 

Liana Velasco como a Capitu de Machado de Assis reinterpretada por Arle Sendra (Foto: Patrícia Bueno/Divulgação)

 

Sérgio Arruda de Moura, Professor de Letras da Uenf, escritor e membro da Academia Campista de Letrasn(ACL)

Capitu e Arlete Sendra retornam aos palcos

Por Sérgio Arruda de Moura

 

A mais famosa personagem da ficção brasileira está de volta aos palcos. E mais uma vez pelas mãos e imaginação da escritora e dramaturga Arlete Sendra, da Academia Campista de Letras, no palco do Teatro de Bolso Procópio Ferreira, até domingo, sempre às 20h.

Em tom confessional e memorialístico, Capitu em exílio na Suíça com o filho Ezequiel, mergulha no universo das cartas que escreve para Bentinho e se despe por inteiro no conflito abafado e suposto, subentendido nas entrelinhas de Dom Casmurro, este que é o mais famoso romance da literatura brasileira, escrito por um homem, Machado de Assis, e protagonizado por outro, o Bentinho, que também é o narrador.

É da voz calada desta personagem chamada de enigmática que o texto de Arlete Sendra sai em busca. O artifício do texto é engenhoso. A autora Arlete Sendra, cuja presença no palco é sugerida na cena inicial da peça, é também a pesquisadora que encontrou uma caixa repleta de cartas de uma certa Capitolina Santiago, sugerindo mesmo que o próprio romance Dom Casmurro teria nascido a partir delas…

A encenação busca elementos cênicos estruturantes, pensados criteriosamente pelo seu encenador, o incansável Fernando Rossi. Esses elementos são uma caixa, onde Capitu guardou sua correspondência, e três focos de luz distribuídos no palco, representando os três personagens que, de tão fundamentais, se presentificam por ausência: Bentinho, Escobar e Ezequiel. Outro ponto de alta relevância nesta composição são as cartas, espalhadas por toda parte, intensificadas por uma chuva delas em momento apoteótico da cena — a carta este elemento tão dinamizador da ficção do século XIX. Lembremos que o tom do texto é confessional e memorialístico, e esses elementos cênicos se juntam num quadro a partir do magnetismo da persona Capitu, que existiu no seu drama de personagem sintetizada em praticamente apenas dois adjetivos: oblíqua e dissimulada. Parece que Arlete Sendra não precisou mais do que isso para (re)compor sua Capitu, mais uma vez.

Esta revanche que o texto proporciona, por assim dizer, é uma oportunidade para a sempre necessária retomada da discussão sobre o feminino, na vida e na literatura. Não esperemos que Capitu se explique, por estar sozinha em seu exílio na Suíça, mas faz uma revisão crítica de si em tons de memória, distanciada que se encontra dos fatos já vividos.

Bentinho e Escobar, além de sua casa, o Rio de Janeiro e o seu país, mas principalmente esses dois homens a constroem como personagem dividida — como se autoavalia — entre a devoção e o desejo, entre o corpo (centrada em um) e a alma (centrada no outro), entre suas convicções e a responsabilidade que divide com o marido na ruptura de seu casamento. Amar um e desejar outro parece estar no centro de uma luta que a cobriu de enigmas.

A enigmática Capitu, pois, vivida intensamente em cores melancólicas pela atriz Liana Velasco, finalmente tem a sua chance de defesa, mas não só: tem a chance de escrever a sua própria história, como Bentinho fez. Como assim, defesa? Sim, Capitu ao longo do tempo, desde a publicação de Dom Casmurro em 1900 tornou-se o pivô de um enigma não literário, mas moral, que a todo custo incita imaginações um tanto fora da caixa das regras da ficção.

Liana Velasco interpreta então a sua Capitu entregue a uma vida já vivida, de forma comovente, ainda que não piedosa, o que não seria o caso para uma personagem forte. Entrega-se à cena sozinha, contracenando com papeis, livros, focos de luz, num bailado que nos faz, espectadores, nos reencontrarmos com a nossa Capitu.

Fernando Rossi, por sua vez, toma decisões com resultados muito sutis, que dependerão da equipe técnica, enfim, dos recursos de luz e som. Enfim, um espetáculo que engrandece a cena teatral da cidade, neste quase sagrado solo que é o Procópio Ferreira.

 

Capa da Folha Dois de hoje

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário