Final da Libertadores — O Fluminense também é o time da favela

 

Morro Azul, comunidade das Laranjeiras

 

O Fluminense também é o time da favela

(Aos tricolores Aluysio, Christiano e Vitória Barbosa)

 

— E no sábado, será que dá para o Fluminense contra o Boca Juniors, no Maracanã? — meteu de três dedos Jorge, antes de molhar a palavra com o gole de cerveja gelada na mesa do boteco.

— A julgar pela razão, o Boca é o favorito. Se vencer, se igualará ao também argentino Independiente, como maior vencedor da Libertadores — tocou de volta Aníbal e correu para receber pela garganta um gole farto de cerveja.

— Sim, se o Boca vencer, terá sete títulos, como o Independiente. Enquanto o Fluminense briga para levar a Libertadores pela primeira vez.

— Em 2008, o Fluminense bateu na trave contra a LDU de Quito. Foi no mesmo Maracanã. Perdeu na disputa de pênaltis, após ganhar o jogo de volta por 3 a 1 e igualar a derrota de 4 a 2 que sofreu no jogo de ida no Equador. Naquela época, a final do futebol de clubes da América do Sul ainda era disputada em dois jogos.

— Sim, deixou de ser em 2019, quando o seu Flamengo suou na final de um jogo só, mas ganhou sua segunda Libertadores em cima do River Plate.

— Pois é. E se o “filho” conseguiu contra o River, completaria o ciclo de tragédia grega se o “pai” também conseguisse contra o Boca.

— Sim, o Flamengo veio do Fluminense.

— Mais ou menos. Por mais que hoje pareça estranho a quem pensa que o mundo nasceu no século 21, naquela virada do 19 ao 20, as regatas competiam com o futebol como esporte mais popular. O Clube de Regatas do Flamengo foi fundado em 1895. É anterior ao Fluminense Football Club, fundado só em 1902. O futebol do Flamengo é que foi fundado por jogadores do Fluminense que brigaram e saíram do clube das Laranjeiras em 1911.

— Sim, daí o “pai” e o “filho”. Que, segundo a tragédia grega, está destinado a crescer, desafiar o pai e derrotá-lo para tomar o seu lugar.

— Na dramaturgia brasileira, ninguém dialogou mais com a tragédia grega do que o tricolor Nelson Rodrigues. Ele meio que juntou a Tebas de Édipo e Laio com a periferia carioca de Arandir e Aprígio. Gostava do épico no futebol. E dizia: “O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada!”

— Pois é. Nessa grande rivalidade local e na oposição do que os dois clubes representam, o River é também conhecido como Los Millonarios. Está para o popular Boca como o elitista Fluminense está para o Flamengo. Que é o “Time da Favela”.

— É a coisa que mais me orgulha em ser Flamengo, sabe? Ser o time da favela. E é por isso que eu vou torcer para o Fluminense no sábado.

— Você vai torcer para o Fluminense? Em primeiro lugar, duvido. Em segundo, não entendi o que a favela tem a ver com as Laranjeiras.

— Jorge, eu torço até para o seu Botafogo ser campeão brasileiro. Primeiro, porque será merecido a um clube que já deu Mané Garrincha, Heleno de Freitas e Nilton Santos ao futebol. Segundo, para vocês finalmente saírem da fila do Brasileirão. Falo, lógico, da série A. Que vocês não ganham desde 1995. Foi com Túlio Maravilha, Donizete Pantera e o xerifão Wilson Gottardo. Fazem 28 anos. Consegue ser mais tempo do que os 21 anos, 24 em 2026, que o Brasil não ganha de uma seleção europeia em jogo eliminatório de Copa do Mundo.

— Rá-rá-rá. Você está tentando me provocar para driblar o assunto: o que a favela tem a ver com o elitismo pretenso do Fluminense?

— Em primeiro lugar, você ignora que as Laranjeiras também têm a sua favela. Na verdade, têm duas, as comunidades Júlio Otoni e Morro Azul. Esta, aliás, se espalha justamente entre as Laranjeiras e os bairros do Flamengo e Botafogo. Onde o Botafogo tem o seu único mundial. É o Supermercado Mundial, que fica na Voluntários da Pátria — entrou de sola Aníbal, tabelando com uma gargalhada, com a qual quase engasgou a cerveja.

— Nós temos três Mundiais. Ganhamos a Pequena Taça do Mundo, em 1967, meia oito e 1970. Era disputada em Caracas, na Venezuela, e contava com grandes clubes da Europa e da América do Sul. E vocês consideram a Copa Toyotão de 1981, contra uns ingleses bêbados, como Mundial.

— Não somos nós. Quem considera é a Fifa. E ganhamos de 3 a 0 em ritmo de treino contra o mesmo time do Liverpool que tinha levantado três Champions da Europa. Como levaria outra. É a mesma Fifa que também considera esses torneios da Venezuela como a “democracia” que só os petistas enxergam existir na ditadura de Nicolás Maduro.

— Sei. E você ainda não disse o que o time da favela tem a ver com torcer pelo Fluminense na final da Libertadores contra o Boca. Clube que é batizado com o nome do bairro portuário e popular de Buenos Aires, onde fica sua mitológica sede, La Bombonera.

O menino da favela Alexsander e sua torcida tricolor

— Você leu o testemunho do menino Alexsander, primeiro volante do Fluminense, sobre a final contra o Boca?

— Rapaz, não vi não.

— Vou te mandar o link pelo WhatsApp. Leia! Sobretudo esse trecho, deixe eu ver aqui… — disse, enquanto buscava o texto no smartphone — …“ Irmão, tu sabe o que é abraço de alívio? Não? Então deixa eu te contar, porque eu conheço essa parada de trás pra frente e de cima pra baixo. Vamos dizer que abraço de alívio é como a bola, a chuteira, o Maracanã e a camisa do Fluminense. Faz parte da minha caminhada no futebol. Assim, eu sou da comunidade da Primavera, em Cavalcanti, zona norte do Rio. Nasci e fui criado no alto do morro, bem no alto mesmo. E comunidade não tem esse nome à toa. Ali todo mundo se conhece, se ajuda como dá, torce um pelo outro, ri junto nas conquistas e chora junto nos tombos”.

— Muito maneiro!

— E como ele termina? “E agora nós estamos na final da Libertadores. Eu sei bem o tamanho dessa parada. Mas aprendi a pensar jogo a jogo. Porque desde o começo foi o que o Diniz repetiu pra gente: no futebol, nós temos de viver, da melhor forma possível, o presente. Não interessa se fomos bem na última partida, não interessa se perdemos, se goleamos, não interessa se estamos desfalcados ou quem vai jogar no próximo fim de semana. Passou, esquece tudo isso. É o aqui e agora que conta”.

— É, rapá, até eu estou achando que vou torcer para o Fluminense.

— Poucas vezes vi uma história de vida tão “flamenguista”, tão “mulamba”, tão “da favela”, quanto a de Alexsander. O Flamengo conseguiu contra o River. Está na hora do “pai” fazer o mesmo contra o Boca. Contra o medo, coragem. Pra cima deles, Fluzão! — desejou Aníbal, enquanto tentava ler a sorte tricolor na espuma de cerveja do copo quase vazio.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Elda Moura

    Muita gente fala que eu não pareço tricolor, que o meu jeito de torcer parece de flamenguista, porque na verdade eu sou mulambo, muito mulambo. Mas eu sou tricolor e odeio o elitismo que cerca a história do time das Laranjeiras. Aliás, o Rio que eu gosto fica do outro lado do Rebouças. Tijuca, Vila Isabel, Madureira, Benfica … Além disso as histórias dos times mudam, ainda bem. Minha paixão pelo tricolor, eu herdei do meu pai. Eu e meus dois irmãos mais velhos. Minha irmã não acompanha futebol e o caçula é botafoguense. Porque toda família tem que ter um botafoguense. É lei. Eu não tenho mais meu pai, mas toda vez que o Fluminense entra em campo, ele está lá. “Fazei isto em memória de mim”. Parece profano. Mas como todo amor é sagrado, eu profano as palavras de Jesus com toda reverência que meu pai merece.

  2. Aluysio Abreu Barbosa

    Boa tarde, Elda.

    Creio que o espírito do seu pai e do meu estão desde ontem em regozijo pela conquista da América do Sul pelo Fluminense de ambos, seu, do meu irmão e minhas três sobrinhas. E, na toada do texto de torcida rubro-negra sincera ao tricolor, prevaleceu o time da favela. Gol do título marcado por John Kennedy, cria da Cidade de Deus, que saiu do banco para se tornar herói.

    Parabéns flamenguista, de coração, a todos os tricolores do RJ.

    Aluysio

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