Lucas Barbosa — “Assassinos da Lua das Flores”

 

Lily Gladstone, Leonardo DiCaprio e Robert De Niro estrelam “Assassinos da Lua das Flores”, novo filme de Martin Scorsese segue em cartaz em Campos

 

Lucas Barbosa, estudante de Letras do IFF e crítico de cinema

Por Lucas Barbosa

 

Em “Assassinos da Lua das Flores”, apesar da duração de épico e das caraterísticas grandiosas do cinema de Scorsese, temos o contato com o drama humano interior. A relação dos personagens é a coisa mais importante, com a direção de Scorsese indo nesse caminho mais clássico em uma história focada do ponto de vista desumano do homem branco e sua natureza gananciosa. Impedir alguém de se matar para lucrar com isso, casamentos envolvidos em fetiche desumanizado e planos para tomar bens, o retrato aqui é bem preciso e violento por si só.

A cena que mostra um marido matando sua esposa, colocando a arma em sua mão e entrando em casa como se nada tivesse acontecido, é, para mim, a coisa mais pesada do cinema dos últimos anos. Um retrato da desumanização de forma bastante crua. Esse acontecimento ainda é tratado como um “suicídio”… Pesado e real em medidas igualmente assustadoras.

Já vi a problemática de se é certo o Scorsese fazer esse filme, no lugar de alguém com “lugar de fala”. Sem entrar no mérito se isso é certo ou não, acho importante frisar que o bom artista consegue se conectar com visões de mundo que não são a sua própria. Por isso, querer bancar o progressista de Twitter não cola nesses casos.

Scorsese tem plena consciência dessa possível problemática, então assume — inclusive com o final tornando isso muito evidente — seu papel que tenta se conectar, mas que se reconhece como distanciado. O que ele faz na maior parte do tempo é trabalhar os personagens de DiCaprio e De Niro como seres humanos desprezíveis, mas ainda assim seres humanos. Ele não precisa jogar na nossa cara e verbalizar como as ações desses personagens são imorais, as violências simbólicas e físicas já fazem isso.

Ademais, não é como se o Scorsese não tivesse feito antes filmes de protagonistas moralmente questionáveis — para dizer o mínimo. Toda sequência final com a cena do DiCaprio no tribunal, com a câmera sem sair de sua cara, mostra como, mesmo depois de humaniza-lo, Scorsese não o inocenta de seus crimes.

Ele tem tanta noção do peso disso, que as cenas de violência são muito mais impactantes do que de costume. Mesmo que não seja a mesma violência de um “Taxi Driver” (1976), dá para dizer que se trata do mais violento de Scorsese. As cenas são viscerais, brutas, vindas até com certo caráter abrupto. Não é a mesma violência estilizada e de valor de entretenimento como em “Os Bons Companheiros” (1990), mesmo na parte final que lembra mais os filmes de máfia do diretor.

Por falar nisso, em determinado momento fica evidente essa mudança de abordagem do meio para o final. A partir do momento em que o FBI é introduzido, com o personagem de Jesse Plemons sendo a encarnação disso, o filme assume uma cara bem mais próxima de outros trabalhos de Scorsese. Se assume como um longa de crime mais tradicional, sem fazer com que essa divisão destoe do resto. Mesmo que não seja o foco, a presença do FBI no final acaba por ser a punição finalmente chegando, mesmo que ela não dure, como fica explicito na última cena.

Outro elogio que me vem à mente é o caráter documental que em muito agrega a essa ideia de filme denuncia as atrocidades do opressor. Um tom que vem de estilizações que emulam o cinema dos anos 1920 como se fosse imagens de arquivo, memórias impressas. Sem falar que com isso ele contextualiza o período histórico de forma muito inteligente, mas mais ainda sintetiza o tema o filme. Um retrato de atrocidades, um filme denúncia que aponta o dedo para si próprio: algo muito maduro que falta muito em filmes e em pessoas hoje em dia. Ele torna as barreiras de realidade e ficção bem mais frágeis, e faz isso se aproveitando de algo puramente formal, além de acentuar seu distanciamento, sua consciência de que ele não é parte da história.

Mesmo que tenhamos De Niro, DiCaprio e Plemons — todos ótimos—, quem verdadeiramente brilha é Lily Gladstone, que já vinha de trabalhos fantásticos com a Kelly Reichardt e que aqui ganha contornos quase de protagonismo. Ela personifica o lado que sofreu, perdendo todos os membros possíveis de sua família, com a fotografia em determinados momentos, como na cena da igreja, a contornando como um ser de luz. Em certo sentido, o filme não deixa de ser o seu martírio, representando em uma única personagem todos os crimes cometidos contra os Osage, e sua última cena com DiCaprio é o momento que mais explicita o quanto ela sofreu de todas as formas possíveis. Uma personagem perdida entre duas culturas, duas línguas, que no fim presencia uma destruindo a outra.

O último plano do filme é um zoom out dos Osage dançando, que se revela como uma grande flor. Mesmo com todos os esforços do homem branco, a lua das flores se mantém viva. Existir é um ato de resistência, e Scorsese faz isso de forma verdadeiramente convincente. Não é piegas, mas sim honesto e genuíno. Não é panfletário, ou uma frase vazia, é imagem, uma imagem forte e que fica mesmo depois do fim dos créditos.

Obs: não consegui incluir no texto de forma orgânica então fica como observação: eu amei a trilha sonora do filme.

 

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