“Se eles são famosos, sou Napoleão”. É um conhecido verso da música “Balada do Louco”, composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee, na época dos Mutantes. Interessante registrar que a fama de Napoleão Bonaparte ainda seja tão forte e controversa, 208 anos após sua derrota militar definitiva na Batalha de Waterloo, em 1815. E que seu nome seja sempre mais lembrado como general do que como o cônsul da França, depois Imperador, que legou ao mundo os Códigos Napoleônicos, presentes ao cotidiano de todos como base do Direito Civil.
Ainda que a primeira exibição de cinema tenha se dado, pelos irmãos Louis e Auguste Lumiére, na França de 1895, só 74 anos após a morte de Napoleão exilado na ilha britânica de Santa Helena, a sétima arte também investiu desde sempre para ampliar a fama militar do vulto histórico. Foi assim desde o clássico do cinema mudo “Napoleón” (1927), dirigido pelo francês Abel Gance, com 5h21 de duração. E continua assim nas 2h38 do “Napoleão” dirigido pelo inglês Ridley Scott. Que estrou nas telas de Campos e do Brasil na última quinta (23).
Se, com 81 anos completos no último dia 17, o cineasta ítalo-estadunidense Martin Scorsese impressionou pela excelência técnica do seu filme mais recente, “Assassinos da Lua das Flores”, Ridley Scott também impressiona pelo domínio do fazer cinema que ainda exibe aos 85 anos — 86 daqui a cinco dias. Não é o ator estadunidense Joachin Phoenix, que interpreta um Napoleão inseguro e com quem Scott já havia trabalhado em “Gladiador” (2000), o grande protagonista do filme. É o seu diretor, estrategista tão meticuloso quanto a personagem.
As cenas de batalha, no cerco à cidade francesa de Toulon dominada pelos britânicos, nas campanhas napoleônicas do Egito e da Rússia, ou nas batalhas de Waterloo e de Austerlitz, são todas feitas para serem assistidas em tela grande. Mas, mesmo a quem é capaz de reduzir toda a artesania do cinema a uma tela de smartphone — onde trabalhos como a esmerada direção de fotografia do polonês Dariusz Wolski simplesmente desaparecem —, o efeito deve ser o mesmo: olhos vidrados à imagem enquanto o corpo cola à poltrona.
Sequência mais eletrizante do filme, as cenas finais da batalha de Austerlitz, com os soldados austríacos e russos conduzidos como ratos pela tática felina de Napoleão, até afundarem em meio ao fluxo de sangue na água de um lago congelado e liquefeito pelo canhoneio francês, não devem nada às cenas iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg. Que retrata o desembarque aliado na praia de Omaha, na Normandia do Dia D, dominada por nazistas nas casamatas de 1944 elevadas como a artilharia francesa de 1805.
Para tentar humanizar a personagem para além das cenas épicas em que Scott sempre foi mestre, o roteiro do estadunidense David Scarpa — que também trabalha com o diretor inglês em “Gladiador 2”, em fase adiantada de produção — investe na relação de Napoleão com a sua primeira esposa e imperatriz, Josephine. Que está muito bem, obrigada, na pele da atriz britânica Vanessa Kirby, mais conhecida no Brasil pelo papel da princesa Margareth jovem na popular série The Crown, da Netflix.
A relação infiel, abusiva, complexa e intensa de Napoleão e Josephine, de mão dupla entre os papéis de dominador e dominado, é uma marcha lenta engatada entre a vertigem das cenas de batalha. Mas também pode ser considerada um anticlímax à especialidade de Scott. É uma aposta. Como foi no passado a do diretor alemão radicado nos EUA Henry Coster em “Desirée, o Amor de Napoleão” (1954), com a atriz inglesa Jean Simmons no papel título, trocada pela frívola aristocrata Josephine (Merle Oberon) por um Napoleão vivido por Marlon Brando.
O Napoleão de Phoenix, sempre oscilando entre a grandeza e a insegurança, lembra mais a composição que outro grande ator estadunidense do passado, Rod Steiger, deu à mesma personagem no filme “Waterloo” (1970). Que, dirigido pelo soviético (hoje, seria ucraniano) Sergei Bondarchuk, é ainda o melhor filme para se conhecer a batalha final do Imperador da França de ascendência italiana, nascido na ilha mediterrânea da Córsega.
Quem julga filme dublado um aborto e cinema uma expressão de arte, irá encontrá-la no “Napoleão” de Ridley Scott. Mesmo aquele que, conhecendo o todo da sua obra, continue a considerar seu primeiro filme, “Os Duelistas” (1977), o melhor que ele já produziu sobre as guerras napoleônicas. Quem julga cinema só como entretenimento e prefere filme dublado, mesmo sem ser analfabeto, também pode gostar. Essa conexão com os dois tipos de espectador talvez seja a grande virtude do diretor.
Na França de hoje, 202 anos após a morte de Napoleão, o jornal Le Figaro disse que “Napoleão” poderia ser renomeado como “Barbie e Ken sob o Império”. Enquanto um biógrafo de Bonaparte, Patrice Gueniffey, disse à revista Le Point que o filme é uma versão “muito anti-francesa e muito pró-britânica” da história. O que não deixa de se acentuar pelo final do épico dirigido por um britânico, onde a cifra de 3 milhões de mortos das guerras napoleônicas é o “The End”. “Os franceses não gostam nem de si mesmos”, respondeu Scott às críticas.
Que venha “Gladiador 2”!
Confira o trailer do filme:
Só um grande cineasta traz novidade, novos pontos de reflexão, à temáticas e personagens já exploradas. Grande filme. Quem tem que gostar somos nós. Os franceses deviam estar satisfeitos, já que gostam de debater, argumentar.
Caro Sérgio Arruda,
Obrigado pela leitura e participação. Na crítica publicada hoje no blog, o videomaker Felipe Fernandes apresentou visão do filme contraditória à minha, o que sempre enriquece o debate. Como cinélifo, que por vezes faz do cinema matéria também do seu ofício de escritor, se quiser nos mandar um texto com a sua visão sobre “Napoleão”, sê nosso convidado.
Abç.
Aluysio