Lucas Barbosa — “Taxi Driver” entre fantasia e a realidade

Assisti a “Taxi Driver” (1976) a primeira vez em maio de 1982. Em contexto de cinema catástrofe, a metalúrgica mineira Paraibuna Metais derramou material tóxico no rio Paraíba do Sul. A captação de água foi interrompida em Campos e parte das suas crianças foi evacuada para outras cidades.

Entre essas crianças, fui parar na praia de Itaipu, na minha Niterói natal. Onde, na casa do meu tio paterno Luiz Edmundo Barbosa, ele reservou um quarto e uma TV só para mim. Com esse luxo até então inédito ao menino de 9 anos, e sem aula no dia seguinte, assistir filmes no Corujão da Globo passou a ser o dever de casa.

Foi numa dessas madrugadas insones, diante da TV, que topei com o taxista Travis Bickle, em sua composição visceral por um jovem Robert De Niro. Em meio à decadência despida de qualquer elegância, pela visão de Martin Scorsese, da Nova York dos anos 1970. E o cinema ao menino de 9 anos, entre aquele ator e aquele diretor, ganhou outro significado a partir dali.

Não mais apenas entretenimento, só o contar histórias com luzes e som. A maneira como a história é contada passou a ser também muito importante. Como as referências em De Niro e Scorsese se reforçariam nas quatro décadas seguintes, em outros trabalhos conjuntos ou separados.

Daquele primeiro encontro numa madrugada de maio de 1982, o menino passaria por seu período formativo e chegaria à meia-idade com uma certeza, sobre si e seu semelhante, dentro e fora das telas. Que seria melhor definida neste 2023 por um jovem de 21 anos: “Na verdade, todo mundo tem um pouco, em maior ou menor escala, de Travis Bickle”.

Estudante de Letras do IFF, Lucas Barbosa assistiu a “Taxi Driver” pela primeira vez aos 15 anos. E, meia dúzia de anos depois, escreveu aquela que considero, sem favor, a melhor crítica que já li sobre esse clássico do cinema. Cuja atemporalidade ele soube identificar na alienação e no sentimento de impotência que continua a produzir tantos “Travis Bickle”.

Da retina de De Niro, o olhar fixo entre a fantasia e a realidade parece ter cruzado essa ponte. Com o “homem do subsolo” entre os invasores do Capitólio, na Washington de 6 de janeiro de 2021, ou da Praça dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Pela arte que imita a vida e às vezes a vaticina, vale muito a pena conferir a análise de Lucas:

 

 

Lucas Barbosa, estudante de Letras do IFF e crítico de cinema

Taxi Driver — Olhar entre a fantasia e a realidade

Por Lucas Barbosa

 

Demandas e revoltas de todos os tipos de pessoas devem ser ouvidas e ponderadas, mesmo que suas soluções nem tanto. Talvez seja o ponto político principal de “Taxi Driver”. Um olhar que busca uma aproximação direta com o sentimento causado pela desinformação e alienação político/social. Uma alienação geral, um sentimento de impotência política, tristemente relacionável, e digo mais, atemporal. O primeiro plano do filme, ainda nos créditos iniciais, é o carro se aproximando de forma que invade o plano em meio a fumaça.

Talvez não funcionasse bem em outro lugar se não Nova York. O “coração” do mundo é corrompido por problemas sociais, especialmente a violência. E temos em nosso protagonista um homem limitado, traumatizado e inadequado, um retrato de um EUA pós Vietnã. Travis Bickle é um pária, mas pior, ele é um avatar das demandas que exigem um imediatismo. Um observador dos problemas sociais, com dificuldade de apontá-los, imagine então resolvê-los. Como um pária, ele não tem valor político. Não se encaixa com a mulher por quem se apaixona. Betsy tem vasto capital cultural, além de ser politizada, mais do que isso, engajada. A falta de tato social de Travis o afasta de Betsy. A solidão misturada ao ressentimento, tudo o leva a mirar suas frustrações em problemas complexos demais a serem resolvidos. As pessoas politizadas não apresentam uma solução, a seu ver, funcional para a sujeira das ruas, mas a violência sim.

Eis aqui a grande sacada do filme, aproximar-nos desse sujeito doente. Ele nos faz simpatizar com Travis, visto o respeito de Scorsese a essa figura. A célebre cena em que ele fala com Betsy no telefone e a câmera simplesmente decide não filmá-lo nesse momento íntimo, ou mesmo o fato que nunca o deixamos de lado, Scorsese nos faz ouvir suas demandas e revoltas, mas nunca abrindo mão de condenar seus atos. No caso, o respeito não é especificamente a Travis, mas sim com o tipo de cidadão, ou melhor, revolta que ele representa. O que só conhece a sujeira que tanto odeia, e que por se camuflar nela (afinal é onde vive e trabalha, com o turno da noite sempre sendo pior), é afastado com repulsa, e com toques de superioridade, por aqueles que realmente poderiam o ajudar e efetivamente possibilitar uma solução aos seus problemas.

Travis é um reflexo da hipocrisia social e o desejo pelo imediatismo. Após a barbárie, antes condenada pela sociedade, Travis ganha o status de herói local. Os mesmos que te derrubam, são os que te levantam. Por isso o final aberto a interpretações ganha com a ideia de realidade. Acaba sendo essa hipocrisia cuspida e escarrada na nossa cara. Mas a ideia de ser um sonho também é adoçada pelo filme. Afinal, existe nele a todo o momento uma lógica onírica, que busca captar o ponto de encontro da fantasia (devaneios heroicos) com a realidade. Aquela sensação entre estar no linear do dormindo e o acordado. “Tenho insônia” esse é o homem solitário de deus. Aquele que não dorme oprimido pela solidão e pelas luzes vermelhas do perigo social. O sonho americano contemporâneo, isso é o que Travis acaba sendo. “Um homem de ação”, que é algo que todos já tentaram ser de uma forma ou de outra. Na verdade, todo mundo tem um pouco, em maior ou menor escala, de Travis Bickle.

Paul Schrader tem um mérito e tanto por conseguir captar esse espírito, e compactá-lo em um roteiro atemporal, mas esse filme não seria nada sem Scorsese. “É um filme muito pessoal, mesmo que eu não o tenha escrito”. Toda cena tem uma história sendo contada, tem algum traço de Travis, e consequentemente social, sendo exposto. Existe honestidade, uma preocupação genuína com a emoção, mas também, talvez de forma contraditória, com a realidade. Há um senso de paranoia nos movimentos de câmera, um lado opressor que é captado pela cidade. Michael Chapman dá ao filme uma luz vermelha, um perigo, um sinal de atenção pulsante em tudo, principalmente em quem é o próximo a entrar no carro. E na grande cena final, após a explosão catártica de violência, nos resta a câmera etérea passeando pelas mortes. Resta o julgamento, proporcionado pela visão de cima que Scorsese nos proporciona. Um olhar quase de Deus, que tenta ser imparcial. Finalmente um olhar que não é o de Travis.

Outro forte pilar é Robert De Niro e seus olhares fixos. De fato, tem uma corporalidade invejável para qualquer ator, mas principalmente um vazio distante que transparece na fala, na movimentação, e mais ainda no olhar. O olhar de Travis é a coisa mais importante aqui em todos os sentidos possíveis. Um olhar entre a fantasia e a realidade, como já dito. Não arrisco dizer ser o melhor trabalho de De Niro, afinal, é difícil dizer com um currículo como o dele, mas posso, sem nenhum peso, afirmar que se trata de minha performance favorita do mesmo. Uma representação quase perfeita do homem do subsolo.

A trilha de Bernard Herrmann é um show que em muito sintetiza essa sensação contraditória. Melódica, com traços que lembram um jazz, mas que em momentos encontra uma pulsão vibrante. Um lado de tormento e atenção, um tiroteio em notas musicais, e o tanto que isso agrega no filme é imensurável.

É impossível tentar sintetizar o quanto esse filme é importante, mas mais difícil é sintetizar todas as sutilezas de seu poderoso discurso social. Ao mesmo tempo um retrato do social e do individual, de uma época especifica e do atemporal. Talvez aqui se encaixe bem a música de Kris Kristofferson usada para descrever Travis. No fim, é a síntese perfeita para descrever o filme em si: “Ele é um profeta, ele é um traficante. Parte verdade e parte ficção, uma contradição ambulante.”

 

Confira o trailer do filme:

 

 

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