Poética da natureza
Por Paula Vigneron
A natureza está para a poesia de Aluysio Abreu Barbosa assim como está para a música de Tom Jobim e para os versos de Manoel de Barros. Apresenta-se, muitas vezes, como ponto de partida e de chegada de sua arte, sendo ela também arte por si mesma. Nascido em Niterói, criado em Campos e consagrado a Atafona, o poeta faz desta a grande Musa de seus versos, coroados pelo vento Nordeste, pelas casuarinas e por todas as formações geográficas — passadas, presentes e futuras — que moldam o cenário do balneário sanjoanense.
Fugindo aos debates conceituais relacionados a ambas, é inevitável associar música e poesia. Assim, é igualmente inevitável a associação entre compositores e poetas, sobretudo aqueles que trazem semelhanças em seu cantar e em seu viver. Um dos mais importantes músicos brasileiros de todos os tempos, o compositor e cantor Tom Jobim reflete, em suas letras, sua íntima relação com a natureza, na qual encontrava a serenidade que tanto buscava. Os pássaros, as matas, as paisagens e também as conhecidas Águas de Março, com suas “promessas de vida”, compõem não apenas o homem Tom, mas também a obra do Maestro Soberano.
Quando jovem, era um belo e exímio nadador, como conta a sua irmã, Helena Jobim, no livro Antônio Carlos Jobim, um homem iluminado: “Dunas. Águas verdes, azuis, transparentes. Cardumes de minúsculos peixes passavam rente às pernas. Tom subia nas ondas, radiante e livre de toda a dor. Caminhava por aquelas areias até o Arpoador, subia nas pedras e mergulhava do alto. Via passar a sombra do cação.”.
Tal como Tom, Aluysio também se renova em sua relação com a natureza, poesia em estado primeiro; renasce nas ondas, nas areias, nas pedras e nos mergulhos. E é dela que, muitas vezes, extrai elementos para a sua escrita. Prova disso é o poema estiagem, que data do ano 2000 e foi concebido em Atafona, resultante do olhar do poeta sobre um dia de chuva. Do texto, depreendemos os cheiros, os sons, as sensações e o ciclo da vida, em uma experiência sensorial que nos transporta para nossas próprias lembranças desde os primeiros versos: “depois da chuva são moscas/ mosquitos obstinados à caça de sangue/ depois da chuva são poças/ cheiro de terra, ciclo de rastros (…)”.
O exercício afetivo se faz presente ao longo da leitura e invoca memórias no leitor, de modo semelhante ao que ocorre também na leitura dos versos de Infância, de Manoel de Barros, apaixonado pelo Pantanal mato-grossense e para quem a natureza figura igualmente como um dos elementos basilares: “Coração preto gravado no muro amarelo./A chuva fina pingando… pingando das árvores…/ Um regador de bruços no canteiro./ Barquinhos de papel na água suja das sarjetas…/ Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir./ Réstias de luz no capote preto do pai./ Maçã verde no prato (…)”.
Estiagem representa a natureza em sua expressão plena: o verde, a chuva, os insetos e tudo que compõe o meio em que vive o homem. Parte dos textos que originou o espetáculo Pontal, o poema ecoou ao público na voz do saudoso ator Yve Carvalho, em montagens realizadas entre os anos de 2010 e 2017. Para além dos aspectos artísticos e afetivos, tanto a peça quanto o poema nos levam a outro lugar de reflexão: a relação do homem com a natureza.
Encenado inicialmente em um Pontal agora submerso pelas águas do Atlântico, estiagem fala da esperança que se renova no depois, no verde pós-chuva. Entre 2000 e 2024, quase duas décadas e meia se passaram. Com elas, casas, ruas e comércios atafonenses foram engolidos pelo mar. Além de Atafona, também o verde desaparece, dia a dia, em atos humanos que encaminham para um desgaste definitivo a fauna e a flora, em um desequilíbrio cada vez mais nítido e alarmante.
A arte não existe para determinada função. Ela não é necessariamente utilitária. Tendo isso em mente, não se pode desconsiderar que ela interfere na vida e a vida, nela. A comunhão e a troca entre ambas, muitas vezes, é um pontapé para que o homem reflita acerca dos mais diversos aspectos do mundo interior e exterior. Estiagem nos permite vivenciar, pela plenitude dos sentidos, a partir do jogo de imagens e palavras do autor, o que a natureza é capaz de proporcionar quando em ordem, em seus ciclos; quando há a chuva e o depois. Os poetas cantam-na em suas diversas formas, mantendo-a viva. Assim, talvez, em um futuro em que o verde não estará tão presente, ainda resista a poesia, como resiste Atafona. Assim, talvez, os poetas possam continuar a cantá-lo como Aluysio canta, em versos, as memórias de uma Atafona que, hoje, erode entre histórias e ruínas.
Poema de Aluysio Abreu Barbosa(*):
estiagem
depois da chuva são moscas
mosquitos obstinados à caça de sangue
depois da chuva são poças
cheiro de terra, ciclo de rastros
depois da chuva são sapos
corte a amantes dentro do mato
depois da chuva são cantos
folhas mais leves prenhes de pássaros
depois da chuva são vidas
formas moldadas no meio da lama
depois da chuva são gotas
pendendo em extinção da borda da telha
depois da chuva são cores
reflexos de luz na umidade do ar
depois da chuva?
a gratidão é verde depois da chuva
atafona, 05/12/2000
(*)Poeta, jornalista e membro da Academia Campista de Letras (ACL)
Atafona torna-se mais mítica- perfeitamente grega- na poesia de Aluysio. O texto de Paula Vigneron confirma as odisseias e ilíadas atafônicas no sangue do poeta.
Boa tarde, caro Nino.
Sim, Atafona é minha Ítaca. Confirmada em Penélope e Telêmaco.
Abraço fraterno e grato pelo retorno generoso!
Aluysio