Uma pertubadora, atual e necessária experiência sensorial em “Zona de Interesse”
Por Edmundo Siqueira
Antes da família Höss entrar em cena, o diretor Jonathan Glazer tira o espectador da zona de conforto: a tela permanece escura por alguns minutos, e apenas sons aparentemente aleatórios fazem companhia ao título do filme que vai desaparecendo das extremidades para o centro.
Após o corte, um plano aberto mostra os Höss à beira do rio Sola, ao sul da Polônia. Os meninos brincam na água e a bebê é acalentada. Depois de um tempo, a família segue para casa em uma trilha na mata, e o patriarca Rudolf Höss (Christian Friedel) carrega a caçula nos braços, protegida pelo enxoval.
Baseado no romance homônimo (diferencia-se pelo artigo “a”, suprimido no título do filme) de Martin Amis, “Zona de Interesse” nos apresenta um ponto de vista do campo de extermínio de Auschwitz diferente de outras abordagens cinematográficas, mas não menos perturbador.
O longa é ambientado no interior da casa em que a família Höss vive, e principalmente em seu entorno. Embora a casa não pertença efetivamente à família, o que vemos é que todos estão completamente ambientados, em especial Hedwig Höss (Sandra Hüller), que administra a casa e o cotidiano dos filhos.
Rudolf e Hedwig moram na grande e confortável casa pela função exercida por ele. Rudolf é o comandante do campo de concentração de Auschwitz, e como tal, tinha direito de uso da residência.
Um idílico jardim, orgulhosamente mantido por Hedwig, divide o muro com as estruturas do campo de Auschwitz — inclusive as câmaras de gás e os crematórios. Durante uma visita, enquanto mostrava a piscina e as flores do jardim à sua mãe, Linna (Imogen Kogge), Hedwig comenta sobre a necessidade de esconder o muro com vegetação, tentando ignorar ainda mais o horror que estava do outro lado. “É um jardim paradisíaco”, comenta a mãe de Hedwig.
A casa dos Höss foi construída num local próximo à vila original pela equipe do designer de produção Chris Oddy. Enquanto o livro não trouxe o nome real dos personagens retratados, o diretor Glazer decidiu trazer os verdadeiros, trazendo ainda mais a sensação de que estamos assistindo a um documentário encenado. A decisão de filmar, em boa parte do filme, com múltiplas câmeras ocultas, sem a presença de equipe e equipamentos junto aos atores, conseguiu dar ainda mais essa atmosfera.
Além do núcleo familiar dos Höss, outras pessoas habitam a casa, com uniformes cinzas, em trabalhos visivelmente forçados, mas atuando na mais completa invisibilidade. É como se realmente não existissem para os familiares e visitantes de Rudolf e Hedwig.
Auschwitz I, como ficou conhecido o campo principal (existiram mais dois campos de concentração em Auschwitz ), foi construído no início da década de 1940, próximo a cidade polonesa de Oswiecim, em um antigo quartel da artilharia do exército polonês. Tinha três funções principais: (i) prender os considerados inimigos do regime nazista, (ii) ter à disposição uma grande oferta mão de obra escrava, e (iii) servir como local de extermínio em massa de judeus e outros grupos minorizados na Alemanha nazista.
O horror nazista não aparece diretamente em “Zona de Interesse”, mas fica escancarado em sutilezas. Como quando podemos ver a fumaça que saía dos crematórios enquanto alguma cena prosaica se desenrolava. Ou percebemos a chegada de um novo trem em Auschwitz, como pessoas que seriam executadas, enquanto a família se divertia na piscina e uma festa acontecia no jardim.
Nós sabemos o que estava além dos muros altos da casa, assim como os moradores sabiam na realidade e na ficção. Homens, mulheres e crianças estavam sendo cruelmente assassinados enquanto a normalidade era emulada na vida dos Höss. A normalidade impossível e criminosa que o filme nos provoca, em náuseas, ser cúmplice.
“Zona de Interesse” é um filme tão bom quanto perturbador. Um mosaico de sons de tiros distantes, gritos desesperados, máquinas de moer sendo ligadas aparecem durante toda a película. E expondo ainda mais a experiência sensorial pelo inferno, uma garota que trabalha na casa dos Höss fugia da vila em algumas noites para esconder frutas para os prisioneiros de Auschwitz. As cenas são filmadas com câmera térmica, que registra o calor, exibindo esses pontos no escuro, traz a jovem com uma luminescência branca leitosa, como uma figura quase sobrenatural.
É um filme atual e necessário. “Zona de Interesse” não nos mostra apenas a banalidade do mal — conceito da filósofa judia alemã Hannah Arendt trazido na obra “Eichmann em Jerusalém” —, nos apresenta a noção de que o inferno e a barbárie muitas vezes moram ao lado.
Confira o trailer do filme:
Caro Edmundo Siqueira, boa tarde. Excelente análise do filme, que deve conquistar o Oscar de melhor filme estrangeiro, a pesar do brilhante filme espanhol “A sociedade da neve”. Sou admirador de Hannah Arendt. O conceito de “banalidade do mal” é tão duro e incômodo que fez com que a brilhante filósofa morresse apátrida. Trouxe desconforto tanto a alemães quanto a judeus quando desenvolveu seu pensamento, tão corajoso e desafiador. E, tristemente, real e transparente. Há no mundo uma terrível onda de preconceito e ódio. O rancor manipulado com interesses políticos, coloca o conceito de Humanidade em uma encruzilhada. Mas não se pode abaixar a cabeça diante da barbárie e da crueldade. Elas devem ser denunciadas e expostas sempre. Parabéns pelo texto. Saudações fraternas.