Pepenha — Das histórias de uma grande mulher por seu neto

 

Maria da Penha dos Santos Abreu (Foto: Dib’s)

 

Pepenha e seu neto mais velho, 11 de maio de 2015 (Foto: Arquivo pessoal)

Era uma manhã de sábado da primeira metade dos anos 1980. A avó materna chamou seu neto mais velho, ainda pré-adolescente, para acompanhá-la na vistoria das suas terras ocupadas de cana de açúcar, que herdara do pai. Ficavam no Carvão, seguindo da zona urbana à ainda rural às margens do Valão, o canal Campos/Macaé.

Do asfalto à estrada ainda de terra, ela guiava o seu Fusca. O neto observava pelo para brisas e a janela lateral a paisagem se alterar, com a pobreza humana se revelando mais dura nos homens, construções e meninos como ele, de pele mais retinta, enquanto avançavam. Como as nuvens escuras e baixas de chuva espraiadas pelo horizonte até o Imbé.

Chegaram à antiga fazenda do bisavô, à direita. Na qual um dos lotes repartidos entre os filhos pertencia à avó. Como esta já havia lhe ensinado, o neto desceu do carro e abriu a cancela de madeira, esperou ela passar com o Fusca, fechou a cancela e subiu de novo ao carro. No qual seguiam pelo latifúndio convertido por herança em um labirinto de minifúndios.

Quando, enfim, chegaram à terra paterna da avó materna, esperava um trabalhador preto, magro, rijo, de meia idade, com o qual ela já havia previamente marcado. Os dois desceram do carro e foram ao seu encontro. Cumprimentos trocados, passaram os três a caminhar entre as fileiras altas da cana que crescia e os baixios curtos que as separavam.

Enquanto caminhavam, a avó tratou com ele das coisas da terra e da cana, a maioria insondáveis ao neto. Quando ela acabou de passar suas instruções, o homem se despediu e seguiu seu caminho. Ainda em meio à cana, pré-adolescente como o neto, roncou a primeira trovoada, forte. Que fez com que ambos fossem buscar abrigo no Fusca.

À espera da chuva, dentro do carro parado, o neto lembrou à avó como esta ensinara a ele e ao irmão mais novo, crianças, a correr pelas calçadas das ruas em meio às tempestades. E do prazer que aquilo conferia. Mais que qualquer terra de cana, pela qual o neto nunca se interessou, aquele legado da avó de natureza e liberdade lhe seria sempre o mais caro.

Pela expressão da face e do corpo, a avó não precisou de palavras para externar orgulho. E a chuva começou a descer forte. Enquanto caía, em meio ao barulho dos pingos e aos vidros do Fusca que embaçavam, limpos com as costas das mãos por neto e avó, esta lhe indagou: “Está vendo como as canas e todas as outras plantas agradecem aos céus e a Deus pela chuva?”

O neto também dispensou palavras, balançando a cabeça verticalmente, para assentir. Aquela imagem traduzida à sua sensibilidade pela da avó não lhe abandonaria. Guardada dentro de si em um estojo, só foi de lá tirada década e meia depois, para compor os dois versos finais do poema “estiagem”: “depois da chuva?/a gratidão é verde depois da chuva”.

Sem combinar, na interpretação do grande e saudoso ator Yve Carvalho, aqueles dois versos, entremeados pelo balde cheio d’água derramado com as duas mãos sobre si, acabaram se tornando o ponto alto da peça “Pontal”. Que, dirigida pelo também saudoso Antonio Roberto Kapi, em um Pontal de Atafona depois levado pelo mar, marcaria o mágico verão de 2010.

Foi bem perto do Hotel Cassino. Que, nos anos 1940, teria como frequentadora uma bela jovem, miss de escola, muito antes de se tornar avó. Moradora da Baixada Campista, tinha um admirador rico e idoso que sonhava se casar com ela. Como era um dos poucos naquele tempo e lugar a possuir automóvel, aceitava a corte só para ir com ele ao Cassino de Atafona. Onde deixava o velho babão sentado numa cadeira para dançar com os rapazes da sua idade.

Em entrecorte de uma narrativa não linear, como acontece na tempestade de memórias quando uma avó tão marcante nos deixa após 102 anos sempre à frente do seu tempo, ela foi operar o coração em São Paulo. Era julho de 2001. O período foi marcante porque seu neto mais velho, que fez questão de acompanhá-la, estava em um bar na Avenida Paulista quando se deu o apagão nacional de energia no final do governo Fernando Henrique.

Após o êxito da cirurgia, quando o neto foi estar com a avó no quarto de hospital, católica apostólica romana fervorosa, ela disse que se entregara ao seu amado Jesus. E que, antes e depois de apagar com a anestesia, as únicas imagens que passavam em sua cabeça eram as da Paixão do Cristo. Vinte e três anos depois, o neto não viu coincidência quando foi informado pela tia que a avó fez a passagem na Sexta-Feira da Paixão.

Como uma avó lecionou em sua vida centenária e plena, sim, a gratidão é verde depois da chuva!

 

Pepenha no seu exercício inquebrantável de fé católica romana (Foto: Dib’s)

 

a avó e a montanha

(a pepenha e márcia)

 

na ligação com a tia

a avó gritava ao fundo

evocava mãe, pai e irmã

mortos de sangue vivo

 

“era uma mulher tão forte!”

desfiou a filha o rosário

“batia bola comigo!”

tabelou o neto de chofre

 

matriarca em regresso

raiz ao fruto em pirraça

menina e moleque comia

banana verde de cacho

 

na fazenda do colégio

nasceu onde campos nascera

sombra do solar jesuíta

mulher da baixada da égua

 

adolescente, foi miss

plantava o pretendente

velho sentado no cassino

para dançar com rapazes

 

casou com joão abreu

que hoje é nome de rua

meia dezena pariu

carregava 50 quilos de açúcar

 

nas torrentes urbanas

foi das avós o contrário

soltava crianças na rua

para correr, ser o raio

 

herdou terra cajuca

semeou no neto, viúva

que não brota verde igual

à gratidão pela chuva

 

ao mesmo neto, doente

contrabandeou ao hospital

seus rissoles de carne

sacio da fome de cura

 

católica ainda em latim

operou coração em são paulo

e viu em vitrais no carmim

a paixão e as chagas do cristo

 

pensava nisso o neto

ao falar com a tia

sem justiça, errado ou certo

só esta pedra fria

 

olhou à serra do imbé

suas digitais africanas

tempo descarna montanha

espirra vida humana

 

atafona, 28/03/22

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Este post tem um comentário

  1. César Peixoto

    Meus sentimentos, que Deus conforte todos os seus familiares.

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