Arthur Soffiati e o cinema que inspirou a geração de Scorsese

 

 

Arthur Soffiati, historiador, escritor e crítico de cinema

Formigas no esgoto

Por Arthur Soffiati

 

Na década de 1960, os estúdios de Hollywood entraram em crise. Havia muita briga. Chefes de estúdios encomendavam roteiros originais ou adaptados a autores que não se davam com os diretores escolhidos. Havia também briga entre artistas que trabalhavam juntos. Um dirigente chegou a dizer que a atriz escolhida devia lhe provocar desejos sexuais. Foi então que entrou em cena um grupo de cineastas dispostos a renovar o cinema dos Estados Unidos. Eram chamados de “movie brats”. Quentin Tarantino escreve: “O que diferencia os ‘movie brats’ da geração de diretores que veio logo antes deles, mais do que a juventude e a formação em faculdades de cinema, é o fato de que eles eram (em sua ‘maioria’) fanáticos por cinema.”

Seus nomes são por demais conhecidos atualmente: Spielberg, Scorsese, Lucas, De Palma, Hal Ashby, Terrence Malick e Ralph Bakshi. Eles curtiam filmes que os cineastas politizados da geração precedente consideravam horríveis pelo prisma estético e político. Os “movie brats” gostavam de televisão, de “Viagem ao centro da Terra”, de “20.000 léguas submarinas”, de “A máquina do tempo”, de “A cidadela dos Robinsons”, de “Os canhões de Navarone” e consideravam Roger Corman um verdadeiro ídolo com seus filmes B.

Os “movie brats” não eram de produzir filmes “cabeça”. Eles sabiam muito bem que o cinema é uma arte voltada para o grande público. Isso não significa que eles produzissem filmes de qualidade inferior. Com bastante sensibilidade, eles combinavam a qualidade ao gosto popular. Eles foram a primeira geração de cineastas de ponta em Hollywood a assistir ao clássico de ficção de Gordon Douglas, “O mundo em perigo” (“Them”), de 1954. É difícil falar em primeira vez no cinema em se tratando dos Estados Unidos, mas este talvez seja o primeiro filme a declarar que a humanidade entrou em nova era (muito perigosa) com a detonação de duas bombas atômicas no Japão, em 1945.

Admiro este filme, contextualizando-o devidamente. Antes de lançar as bombas, houve experiências no estado norte-americano do Novo México. Essas experiências causaram, no filme, efeitos que poderiam acabar com a humanidade, não fossem a inteligência a ação de um velho cientista. Uma menina é encontrada vagando pelo deserto em estado de choque. Um trailer foi destruído e o dono de um boteco foi morto. A polícia descarta roubo e não encontra explicação para crimes em que uma força descomunal foi usada.

Além da polícia estadual, o FBI entra em cena e também não atina com a motivação do crime. Como o objetivo dos ataques parece ter sido a obtenção de açúcar, decide-se consultar o mais conceituado entomologista do país. Idoso, ele é especialista em formigas. Sua filha, (interpretada por Joan Weldon) é uma daquelas moças lindinhas do cinema norte-americano na década de 1950: alta, belo rosto, penteado da época, sorriso claro, vestido comprido com pregas, bem cintado para mostrar cintura, quadris e seios (tudo com recato). Ela também é iniciada nos mistérios das formigas. Aonde o pai não pode ir, ela vai.

Usando a dedução, o velho cientista não custa a concluir que a experiência nuclear efetuada em 1945, no Novo México, pouco antes do lançamento das duas bombas atômicas sobre o Japão, havia afetado as formigas. A Experiência Trinity, que oficialmente inaugura a era nuclear da humanidade, havia ocorrido apenas nove anos no tempo do filme e estava ainda muito viva na lembrança das pessoas.

Não apenas os japoneses foram vítimas da radiação nuclear. Os Estados Unidos estão ameaçados por formigas gigantes que podem exterminar os habitantes do país e a humanidade. É preciso detê-las. Dr. Medford, o velho cientista, convence policiais, forças armadas e governo federal a combater as formigas mutantes. Vitória da velhice e da ciência. Ele profere frases lapidares, como: “As formigas são as únicas criaturas, fora o Homem, que fazem guerra. Elas fazem campanha, são agressivas e escravizam as prisioneiras que não são mortas” Ou: “Podemos estar testemunhando uma profecia bíblica se realizando: a destruição e a escuridão descerão sobre o mundo e as feras reinarão sobre a Terra”.

Todos se curvam diante de sua sabedoria, iniciando-se uma guerra implacável contra as formigas gigantes. O comando geral está com o Dr. Medford. A batalha final é travada numa galeria de esgoto, onde o cientista faz uma proclamação frontal à era nuclear. Num mundo em que a energia nuclear foi liberada, tudo pode acontecer.

A fotografia em preto-e-branco é muito boa. Os enquadramentos e os planos-sequência estão nas mãos de um bom diretor. Gordon Douglas tinha um grande currículo. O filme se vale de efeitos especiais. Ele concorreu ao Oscar nesse quesito, mas perdeu para “20.000 léguas submarinas”. De fato, as formigas não são muito convincentes.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário