Candangos e arcanjos na Catedral de Brasília

 

Paula Vigneron entre os vitrais de Marianne Peretti na Catedral de Brasília, manhã quente de 7 de abril de 2024 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

“Ajude a ceguinha; opa! Ajude a ceguinha; opa! Se não tiver notinha, pode ser uma moedinha. Se não tiver moedinha, tem o PIX da ceguinha. Ajude a ceguinha; opa! Ajude a ceguinha; opa!” Era o que cantava, incessante, aquela senhora. Estava sentada ao lado direito do início da descida da rampa, à entrada da Catedral de Brasília. Em acordo mudo entre ouvidos e mãos, estendia com a direita o copo plástico, atenta aos barulhos dos passos que se aproximavam.

O acento da ladainha não deixava dúvida: era uma candanga, nordestina. Que, como tantos conterrâneos, construíram com as mãos a nova capital da República. Acompanhado da namorada, o visitante do Sul Maravilha encarou o vazio murcho das órbitas da pedinte e estremeceu. Cerrado nas pálpebras enrugadas de sol, ao seu vácuo anteviu os dois olhos arrancados com um broche por Édipo Rei.

Ícaro Barbosa na entrada da Edícula da Basílica do Santo Sepulcro, onde Jesus foi sepultado e, como Cristo, ressuscitou. Cidade Velha de Jerusalém, tarde fria e chuvosa de 1º de fevereiro de 2023 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

Como costumava fazer em cada templo religioso das cidades que visitou, entrou para orar dentro dos ritos ali adotados. Como fizera com o filho ainda criança, como muçulmanos, na Mesquita Azul de Istambul. Ou com ele já feito homem, só os dois, na sinagoga da Fortaleza de Massada, Canudos dos judeus. Como em meio à multidão na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, nos lugares em que Jesus foi crucificado e sepultado. E, como Cristo, ressuscitou.

Com essas lembranças de ecumenismo entre história e fé, desceram a rampa para adentrar à ampla estrutura modernista da Catedral de Brasília, gerada entre a arquitetura do carioca Oscar Niemeyer e a engenharia de Joaquim Cardozo. Também candango e poeta, este seria influência ao conterrâneo recifense João Cabral de Melo Neto. Que, sem favor ou nenhuma dúvida ao visitante do Sudeste, era o maior nome da poesia modernista do Brasil.

Dedicada à Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, a Catedral de Brasília não ganhou vida só na cruza masculina de Niemeyer e Cardozo. Com mais destaque na parte interna está o trabalho de outra candanga recifense, a artista plástica Marianne Peretti. Considerada maior vitralista do país, deu vida em tons de azul e verde no contraste ao branco dos 16 pilares curvos. Inaugurada em 1970, a Catedral só receberia o colorido feminino na reforma de 1987.

O homem se ajoelhou para rezar no genuflexório de um dos bancos da Catedral. E o fez em meio à dúvida: o modernismo da nova capital, embora belo, não servira de epílogo à arquitetura colonial? Presente nos solares de Campos e no Centro da antiga capital, na cidade do Rio? Ou na também fluminense Paraty e nas mineiras Ouro Preto, Tiradentes, São João Del Rey e Congonhas? Assim como na goiana Pirenópolis, distante apenas 150 km de Brasília?

Na dúvida se seria só evolução natural, dolo ou destino, como o de Édipo ao matar seu pai, outro pai não teve dúvida após, ajoelhado, fechar os olhos. Pediu a Deus e aos intercessores da sua devoção, Francesco di Assisi e Miguel Arcanjo, proteção à viagem e aos que o homem e a mulher haviam deixado em Campos. Sobre todas as coisas, pediu proteção ao filho único, companheiro de outras tantas viagens. E morto há pouco menos de um ano.

Sempre foi assim ao pai nos 9 meses anteriores e nos 23 anos, 9 meses e 13 dias depois que ganhou da vida do filho. Seria assim até seu último pensamento antes da própria morte. Sem questionamento. Apenas amor, gratidão e pedido de proteção.

Encerrou a oração, abriu os olhos, enxugou-os com os ombros da blusa, e se ergueu. Quando se lembrou da uma passagem de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago. É sobre o retorno, do Rio a Lisboa, do heterônimo mais apegado ao classicismo no poeta português Fernando Pessoa, já após a morte deste: “os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros”. E, nesse eco ao modernismo “Álvaro de Campos” de Brasília, olhou a mulher.

Naquela manhã quente de 7 de abril no Planalto Central, que Euclides da Cunha chamou de “maciço mais antigo do mundo”, ela usava um vestido curto de brim, com estampas trançadas em linha branca. Recuaram um pouco das cadeiras a um ângulo mais aberto na parte traseira da nave da Catedral. Onde, centralizada, a mulher teve acopladas como asas abertas os vitrais de Marianne Peretti, em combinação exata de azul e branco nessas coincidências que não há.

O homem registrou a imagem. E notou que, nela, a mulher se assemelhava ao intercessor a quem acabara de pedir proteção ao filho. Os turcos otomanos tomaram Constantinopla e decretaram o fim da Idade Média enquanto os teólogos da grande cidade, depois Istambul, discutiam sem conclusão o sexo dos anjos. Como nos debates de gênero humano entre biologia e cultura do pós-modernismo de hoje, enquanto a China bate à porta do Ocidente.

Desde uma Bíblia ilustrada que o pai lhe dera criança, com a qual dominou os argumentos das suas principais histórias, constatou. Entre os arcanjos, foi Gabriel quem anunciou a Daniel a sucessão de potências mundiais e a vinda do Messias, a Zacarias que seria pai de João Batista e a Maria, que seria mãe de Jesus. Como, ao ler o Corão já adulto, descobriu que foi Gabriel quem também revelou a mensagem divina do Islã a Mohammad, enquanto o alfabetizava.

Entre os arcanjos, porém, sempre preferiu Miguel. Além de também aparecer em Daniel como “grande príncipe que defende o povo de Deus”, é ele quem, no Apocalipse de João, comanda as falanges divinas que enfrentam e derrotam Satanás e os demais anjos decaídos. Se Gabriel é o grande RP de Deus, é Miguel quem assume quando a porca torce o rabo. E por essa identificação pessoal, desde criança, destinou-se a tê-lo por anjo da guarda.

Além do judaísmo, cristianismo e islamismo, Miguel Arcanjo é adorado na umbanda e no candomblé, em sincretismo com o orixá Xangô Agandjú. Quem usa o nome de Deus para atacar terreiros, se fosse diferente do anjo caído por se supor a luz que cabia guardar, não ignoraria: além da lei dos homens, age espiritualmente contra o “grande príncipe que defende o povo de Deus” no Velho Testamento. Onde Deus nunca reservou castigo brando.

Como os teólogos de Constantinopla nunca definiram o sexo dos anjos, lhe pareceu adequado, pela coragem de Miguel, que a figura alada pelos vitrais de uma mulher fosse outra mulher. Do Velho Testamento ao Novo, o casal saiu da Catedral de Brasília. E deu novamente com as estátuas de bronze dos quatro evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas à esquerda de quem entra; João do lado oposto. Todos tinham pombos pousados na cabeça e ombros.

Com três metros de altura cada, os evangelistas eram obras do mineiro Alfredo Ceschiatti, parceiro de Niemeyer desde Belo Horizonte, no trabalho conjunto que ampliariam em Brasília. Já despida de asas, a mulher lembrou que Ceschiatti também esculpiu a estátua “A Justiça”, em granito, diante do Supremo Tribunal Federal. Que tinham visitado no dia anterior, após desembarcarem, fazerem check-in no flat e tomarem um uber à Esplanada dos Ministérios.

Enquanto ainda digeriam tudo que viram e sentiram na Catedral, antes de seguirem a pé, na mesma margem do Eixo Monumental, ao Museu Nacional da República e à Biblioteca Nacional, ouviram a voz feminina e candanga. Dos que ergueram com as mãos tudo aquilo. “Ajude a ceguinha; opa! Ajude a ceguinha; opa! Se não tiver notinha, pode ser uma moedinha. Se não tiver moedinha, tem o PIX da ceguinha. Ajude a ceguinha; opa! Ajude a ceguinha; opa!”

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário