Carta a Ícaro — Dia das Mães, civilizações e a prejereba

 

“O que não pode acontecer é deixarmos de saber que a pessoa do nosso lado sangra, come, alimenta-se, ama, sofre, enfim, sente as mesmas coisas que nós e que não é uma diferença no modo de pensar que nos faz uma espécie diferente”.

(Ícaro Barbosa)

 

Ícaro e Aluysio Abreu Barbosa no cume do Monte Sinai aos cristãos, Monte Horebe aos judeus, Jebel Muça aos islâmicos, aurora de 25 de janeiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Bom dia, filhote!

Hoje é a véspera do Dia das Mães. Como era em 2023, dia em cuja noite você decidiu voar.

“O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”, sentenciou Guimarães Rosa. Foi em 16 de setembro de 1967, no discurso dele de posse na Academia Brasileira de Letras. Três dias depois, ficou encantado.

Olhamo-nos, com você sorrindo, na foto feita banner na parede da sala. Onde levanta um pint de Guinness em brinde em Amsterdã. Cidade que disse muitas vezes ter sido a que mais gostou na nossa última viagem.

Era 2 de janeiro de 2023, tão perto e distante. Havíamos chegado do Brasil na noite holandesa anterior. Para dar início à jornada pelos três continentes do Velho Mundo. Tínhamos o Êxodo por roteiro. Mas isso é um outro livro. Cuja escritura devo a você, a Deus e a mim.

Voltei à Brasília no início de abril deste ano, que já tinha conhecido no final de 2001. Quando, não sem surpresa ou orgulho, fui convidado pela embaixada do Irã. Que me achou naqueles tempos pré-redes sociais por artigos que eu havia escrito sobre Alexandre e o Império Persa.

Você tinha 2 anos. Quando reagiu com intensidade precoce ao atentado da Al-Qaeda de 11 de setembro. Guardo o impacto nítido na sua retina, na expressão da face de criança ainda de colo, aos jatos se espatifando contra as Torres Gêmeas. E estas vindo ao chão.

Em ironia da vida, 2001 já havia sido eleito pela ONU como o ano do Diálogo entre Civilizações. Por proposta do então presidente do Irã, Muhammad Khatami. Era um intelectual reformista. Que acabaria emparedado pelo fundamentalismo religioso do Colégio dos Aiatolás.

Com ele ainda no poder, rendeu aquele encontro sobre a Civilização Islâmica em Brasília. Na verdade, por conta de uma greve na UnB, acabou sendo em Taguatinga. Aquela em que João de Santo Cristo “ganhava cem mil por mês” como aprendiz de carpinteiro.

Vinte e três anos depois, saí na manhã do último dia 7 de abril da Catedral de Brasília. É história que já contei. E, com Paulinha, fomos caminhando ao Museu da República. Onde estava rolando a exposição “Matéria Prima”. Da artista plástica porto-riquenha Gisela Colón.

Não conhecia ela ou seu trabalho. Que se baseava na montagem de esculturas totêmicas em diferentes lugares do mundo. A intervenção espacial era registrada em fotos. E estas estavam expostas em grandes murais horizontais no interior do Museu.

 

Museu da República de Brasília, exposição Matéria Prima, da artista porto-riquenha Gisela Colón, 7 de abril de 2024 (Foto: Paula Vigneron)

 

Dobrando à direita da entrada, topei logo com a primeira. E tomei um susto com a obra côncava de Colón retratada no Complexo de Gizé. Diante da Esfinge e das três Grandes Pirâmides do Egito. Que havíamos conhecido juntos, filhote, exatos 15 meses antes.

 

Aluysio e Ícaro Abreu Barbosa diante da Esfinge e das três Grandes Pirâmides do Egito, Gizé, 7 de janeiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Ainda supunha estar na coincidência. Até que, dois painéis adiante, dei com três monólitos da artista interagindo com a Cidadela de Saladino, no Cairo. Estavam entre suas muralhas e os domos e minaretes da Mesquita de Muhammad Ali, fundador do Egito moderno, ao fundo.

 

Museu da República de Brasília, exposição Matéria Prima, da artista porto-riquenha Gisela Colón, 7 de abril de 2024 (Foto: Paula Vigneron)

 

Em outro diálogo entre civilizações, havíamos estado ali em 22 de janeiro de 2023, tão perto e distante de 7 de abril de 2024. Lembrei-me de Nietzsche, seu filósofo: “Nenhum vencedor acredita no acaso”. E vi que não perdi. Ganhei os 23 anos, 10 meses e 13 dias da sua vida.

 

Aluysio e Ícaro Abreu Barbosa na Cidadela de Saladino, diante da Mesquita de Muhammad Ali, Cairo, 22 de janeiro de 2023 (Foto: Ícaro Barbosa)

 

Mesmo antes de visitar novamente o Planalto Central, estava há meses sem ir a Atafona. E voltei ao Dia da Criação do Poetinha: “hoje é sábado, amanhã é domingo”. Já era o último domingo, 5 de maio, do final de semana que voltei à nossa praia.

Para fazer uma torta de frutos do mar ao almoço, fui à peixaria diante da Igreja Nossa Senhora da Penha, onde você foi batizado. Vi o peixeiro em sua mesa de trabalho ao fundo, que limpava um grande pescado. Dei com a mão, ele deu de volta, enquanto seu filho me atendia.

Escolhi entre os freezers camarão cinza e sete barbas descascado, mexilhão e lula em anéis para a torta. Tudo pesado, somado e já pago, o dono da peixaria se aproximou. Trazia o grande peixe discoide já limpo às mãos. E jogou a cantada: “Prejereba de 9kg para o Dia das Mães”.

De carne branca, tão boa, mas menos conhecida e cara que a de cherne ou robalo, comemos muita prejereba juntos. Na moqueca ou assada. Além de Paulinha, estava com Aquiles, seu irmão. Com quem troquei olhares como os seus, bebê, à queda do World Trade Center.

De novo, supus não ser coincidência. E comprei o peixe para assar inteiro no Dias das Mães de amanhã. A suposição se reforçou na saída da peixaria. Quando Aquiles e eu verbalizamos o olhar de encantamento que trocamos segundos antes: “Isso é coisa de Carô”.

Seja feita sua vontade, sempre, filhote!

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Flavio Mussa Tavares

    Obrigado pelas lembranças do coração Aluysio!!

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Flavio,

      Em nome de Ícaro e meu, obrigado a vc.

      Abç fraterno.

      Aluysio

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