Edmundo Siqueira — Venezuela e a banalização da moral

 

Repressão das forças de segurança, militares e paramilitares do regime Nicolás Maduro a protestos do povo da Venezuela contra a suposta fraude eleitoral no país já deixou 21 mortos (Foto: Samir Aponte/Reuters)

 

 

Edmundo Siqueira, jornalista, servidor federal, blogueiro do Folha1 e membro da bancada do Folha no Ar

A banalidade da moral

Por Edmundo Siqueira

 

Conceituar a “moral” sempre exige um exercício de compreensão da sociedade, uma vez que é nela e a partir dela que será definido o que é algo moralmente aceito como conduta individual. Pela coletividade, temos o conceito da ética, que se confunde com a moral, mas se trata de algo mais coletivista, inclusive classista, como os códigos de ética relativos à determinada categoria social.

A moral é, portanto, um conjunto de valores, sejam eles individuais ou coletivos. A questão é sobre a sua universalidade. Caberia a mesma moral da sociedade brasileira em um país vizinho? A característica de laicidade do sistema político do Brasil permite que os mesmos preceitos éticos e morais sejam aplicados em uma teocracia muçulmana? Ou ainda, caberia a mesma moral em uma comunidade periférica e um bairro abastado da mesma cidade?

A partir de uma visão revolucionária, baseada na luta de classes, principalmente de origem marxista, é possível encontrar o conceito da “moral tradicional”. Para alguns pensadores dessa linha, há valores que são apregoados como universais e dogmáticos, mas que na realidade, na práxis, eles estariam a serviço dos interesses da burguesia, ou de suas representações temporais (hoje, algo como o empresariado ou comerciantes). E estariam essas morais dogmáticas sendo usadas para impedir que movimentos revolucionários fossem aceitos na sociedade, ganhassem forma.

Essa moral tradicional seria defendida e apoiada pela “pequena burguesia intelectual”. Esses “pequenos burgueses” com atuação intelectual poderiam ser jornalistas, acadêmicos, escritores, professores e parte do funcionalismo público intelectualizado e burocrático.

Segundo essa perspectiva revolucionária, a moral e ética, e a democracia, em última análise — e quem as sustentam — são artifícios para a manutenção do status quo e a perpetuação dos interesses dominantes. Mas, temos exemplos contemporâneos que mostram que revoluções são usadas para apenas alterar os grupos dominantes. Um caso notório é o da Venezuela, onde a figura do presidente Nicolás Maduro se torna central na discussão.

Maduro, herdeiro político de Hugo Chávez, tem sido alvo de acusações de fraudes eleitorais e repressão política. As eleições do último domingo foram amplamente contestadas, com alegações de manipulação de votos e intimidação de opositores. Organizações internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Centro Carter não puderam atestar que as eleições foram limpas. A União Europeia e os EUA questionaram a legitimidade do processo, classificando-o como uma fraude que minou a vontade popular.

A crise venezuelana não é apenas uma questão de fraude eleitoral; envolve também uma complexa rede de interesses econômicos e geopolíticos. A moral e a ética, aqui, se tornam ferramentas de retórica tanto para o governo quanto para a oposição. Maduro e seus aliados frequentemente evocam a moral revolucionária e o anti-imperialismo para justificar suas ações, enquanto a oposição apela para princípios democráticos e direitos humanos universais.

O que se observa, portanto, é uma batalha pela definição e controle da moralidade pública. Os valores proclamados pelo governo Maduro são apresentados como defensores da soberania nacional e dos direitos dos desfavorecidos, enquanto a oposição e grande parte da comunidade internacional os denunciam como pretextos para a perpetuação do poder e a violação das liberdades civis.

Assim, a discussão sobre a moralidade e a ética, seja na Venezuela ou em qualquer outra sociedade, transcende a simples análise de valores individuais ou coletivos. Ela se revela um campo de batalha onde se travam lutas intensas pelo controle narrativo e pela legitimação do poder. A questão venezuelana ilustra com clareza brutal como, em tempos de crise, a moral e a ética são armas de retórica, brandidas com fervor por todos os lados. Nesse cenário, a moral não é um farol de princípios universais, mas um espelho fragmentado, refletindo os interesses de quem detém a força para moldar a realidade conforme suas ambições.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Apoio do PT a Maduro na América do Sul e nas urnas do Brasil

 

O venezuelano Nicolás Maduro, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o chileno Gabriel Boric, o uruguaio Pepe Mujica e os campistas Carla Machado, Jefferson Azevedo e Wladimir Garotinho (Montagem: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

 

Venezuela divide a esquerda na América do Sul

A aparente fraude eleitoral para perpetuar Nicolás Maduro presidente da Venezuela, no domingo (28), pode ser um divisor de águas na esquerda da América do Sul. De um lado, o futuro com a esquerda democrática. Representada pelo jovem presidente do Chile, Gabriel Boric, que disse (confira aqui) sobre a suposta vitória de Maduro: “é difícil de acreditar”. Do outro lado, a esquerda do passado. Representada, com ditaduras “companheiras”, pelo PT. Cuja nota oficial na terça (30), chamou a crise da Venezuela de “jornada pacífica, democrática a soberana”. Cujo resultado anunciado revoltou sua população, reprimida com 21 mortes (confira aqui) e 1,2 mil presos (confira aqui).

 

Geracional ou compromisso com a democracia?

Líder maior do PT, o presidente Lula tem 78 anos. Condutor da sua política internacional, Celso Amorim tem 82. Presidente do PT, a deputada federal Gleise Hoffmann tem 58. Presidente chileno, Boric tem só 38. Mas a diferença na defesa da democracia no continente não é apenas geracional. Ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica tem 89 — 11 a mais que Lula, 7 a mais que Amorim, 31 a mais que Gleisi. E o uruguaio mais emblemático à esquerda sul-americana disse (confira aqui) sobre Maduro: “pode chamá-lo de ditador”. Ao considerá-lo “democrático”, o PT pode pagar o ônus nas eleições municipais do Brasil de 6 de outubro, daqui a apenas 64 dias?

 

Compromisso moral de Lula e do PT

Lula foi eleito pela 3ª vez presidente (confira aqui) na perspectiva de defender a democracia do país dos ataques reincidentes do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Que se materializariam na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023. Dos maus perdedores das urnas do 2º turno presidencial de 30 de outubro de 2022 por apenas 1,8 ponto — nos votos válidos, Bolsonaro 49,1% a 50,9% Lula. Por diferença tão pequena, Lula só se elegeu, para além dos petistas, com o voto de quem acreditou que ele era a opção viável para preservar a democracia no Brasil. Lula e o PT teriam, portanto, compromisso moral de defendê-la também nos países vizinhos.

 

Influência nas eleições municipais do Brasil

Cientista político e CEO da Quaest, conceituado instituto de pesquisa do Brasil, Felipe Nunes já disse que quanto maior for o município, maior será a influência na sua eleição da polarização política nacional e internacional. Quanto menor, afetará menos. Assim, pode ter uma importância maior na cidade de São Paulo, em que as pesquisas apontam o empate técnico na liderança (confira aqui) do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), com o deputado federal Guilherme Boulos (Psol) e o apresentador José Luiz Datena (PSDB). E pode ter pouca importância numa cidade de porte médio, mesmo de maioria bolsonarista (confira aqui), como Campos. Menos ainda em cidades pequenas.

 

Ricardo Nunes, Guilherme Boulos e José Luiz Datena lideram a última pesquisa Quaest a prefeito de São Paulo em empate técnico na margem de erro

 

Hamilton Garcia, cientista político e professor da Uenf

O projeto bolivariano

“O projeto bolivariano na Venezuela é uma atualização do modelo revolucionário clássico, com Cuba como modelo. A disputa eleitoral só era aceita se legitimasse o ‘poder revolucionário’. O jogo democrático tinha só valor instrumental, com a destruição das instituições, como a divisão entre os Poderes do Estado e a liberdade de opinião. Quando as urnas começaram a se desencontrar do ‘poder revolucionário’, a partir da queda no preço do petróleo em 2014, a repressão à contestação política e ao direito de opinião se agravaram dramaticamente”, contextualizou outro cientista político, Hamilton Garcia, professor da Uenf.

 

Não ajuda o PT de Campos

“A autoproclamada vitória de Maduro, ao arrepio dos documentos eleitorais, é a crônica da morte anunciada da democracia venezuelana. O PT e o MST estiveram, desde sempre, ao lado dos objetivos ‘revolucionários’ do bolivarianismo. Parcelas importantes de sua ala radical possuem a mesma visão ‘revolucionária’ ao Brasil. O desenlace venezuelano terá impacto efetivo sobre a imagem do lulopetismo na eleição de 6 de outubro, sobretudo nas capitais. E pode, em 2026, esgarçar as franjas centristas que apoiaram Lula em 2022. Em Campos, onde o PT tem poucas perspectivas a prefeito, não ajudará a eleger vereador”, advertiu Hamilton.

 

George Gomes Coutinho, cientista político, sociólogo e professor da UFF-Campos

Limites da influência

“Há uma importação da questão venezuelana, por vezes em termos caricatos e simplistas. Mirando o curto prazo nas eleições municipais brasileiras: 1) o tema irá mobilizar grupos e agentes já suficientemente ideologizados; 2) a agenda internacional não costuma alterar a percepção política de eleitores comuns; 3) estados brasileiros que estão geograficamente mais próximos da Venezuela podem importar, por razões concretas, a pauta das eleições por lá; e 4) em Campos já há um conjunto de pautas ao eleitor comum: empregos, saúde, transporte”, avaliou outro cientista político, George Gomes Coutinho, professor da UFF-Campos.

 

Condição minoritária

George não crê que a crise da Venezuela e a posição do PT sobre ela afete o partido em Campos: “A exploração do tema contra o PT campista é improvável. O PT é uma minoria política, talvez não atraia ataques persistentes por sua condição minoritária, o que não se pode falar do prefeito (Wladimir Garotinho, PP, candidato à reeleição e líder em todas — confira aqui e aqui — as pesquisas). Eleitores que não votariam no PT continuarão não votando. Petistas simpatizantes votarão no PT. E os eventuais eleitores passíveis de serem seduzidos a votar no PT nestas eleições municipais talvez não sejam demovidos pela questão venezuelana”.

 

“Maduro ditador” e “castelo de areia”

No Folha no Ar da manhã de ontem, o sociólogo Fabrício Maciel, professor da UFF-Campos e da Uenf, foi direto ao avaliar a real condição de Maduro e sua tentativa de relativização pelo PT: “Maduro é um ditador. Isso é a pura verdade, não dá para aliviar. A figura de Maduro, hoje, não tem nada a ver com democracia. Mas a Gleisi Hoffmann pode soltar uma nota, como petista clássica, dizendo isso? Não pode! Porque ela está presa a um certo negacionismo. É uma mentira que um partido de esquerda precisa manter, num certo sentido. Porque se abre o jogo e diz, você tem um castelo de areia”.

 

 

“Muito difícil tirar de Wladimir”

“Carla Machado (deputada estadual que desistiu — confira aqui — da pré-candidatura a prefeita de Campos por — confira aqui e aqui — impossibilidade jurídica) tem votos por causa dela. Não tem nada a ver com o PT. É uma política tradicional, conhecida na região. O Jefferson (Azevedo, candidato a prefeito de Campos pelo PT) vai ter dificuldade em (confira aqui) herdar votos aí. Também não há influência da polarização nacional numa cidade como Campos. É difícil alguém tirar essa (eleição) de Wladimir. Está muito cristalizada a situação, ele fez um governo estável. Mais uma vez a ideia (confira aqui) do meu querido amigo George: não vai haver surpresa nessa eleição”, apostou Fabrício.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

Livro, Venezuela e eleição de Campos no Folha no Ar desta 6ª

 

(Arte: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.)

 

Sociólogo, escritor e professor da UFF-Campos, Fabrício Maciel é o convidado para encerrar a semana do Folha no Ar nesta sexta (02), a partir das 7h da manhã, ao vivo, na Folha FM 98,3. Ele falará do lançamento do livro “Re-trabalhando as classes no diálogo Norte-Sul: trabalho e desigualdades no capitalismo pós-covid”, do qual é um dos organizadores.

Fabrício também analisará a crise aberta com as suspeitas de fraude na reeleição de Nicolás Maduro como presidente da Venezuela, sua repercussão pelo mundo e a posição do PT, que chamou de “pacífico, democrático e soberano” um processo que já contabiliza 21 venezuelanos mortos (confira aqui) e mais de mil presos (confira aqui). Por fim, com base nas pesquisas (confira aqui, aqui, aqui, aqui) ele tentará projetar a eleição a prefeito e vereador de Campos em 6 de outubro, daqui a exatos 66 dias.

Quem quiser participar ao vivo do Folha no Ar desta sexta poderá fazê-lo com comentários em tempo real, no streaming do programa. Seu link será disponibilizado alguns minutos antes do início, nos domínios da Folha FM 98,3 no Facebook e no YouTube.