Jornalismo ruim, mortes de Geisel e “tapa” de Bolsonaro

 

 

 

Lições do jornalista

Fundador desta coluna, o jornalista Aluysio Cardoso Barbosa (1936/2012) era crítico ao desdém dos repórteres dos grandes centros com a imprensa do interior. Ele sabia bem do que estava falando, pois trabalhou na redação do Jornal do Brasil dos anos 1970, considerada uma das grandes escolas de jornalismo do país, antes de voltar a Campos, fundar a Folha e continuar trabalhando como correspondente do diário carioca — à época, o maior do Estado. Seu trabalho como repórter no “furo” internacional da descoberta de petróleo na Bacia de Campos está no livro “Jornal do Brasil — História e Memória”, da jornalista Belisa Ribeiro.

 

Jornalismo ruim

Episódios recentes demonstraram como — por incompetência ou, pior, dolo — é ruim a cobertura jornalística dos grandes centros sobre os fatos de Campos. Foi o caso da série de três reportagens do SBT Rio sobre as denúncias da delegada federal Carla de Mello Dolinski contra a operação Chequinho, veiculadas entre 30 de abril e 2 de maio. Foi o caso também da nota publicada na última sexta (11) pela jornalista Berenice Seara no jornal carioca Extra,  sobre o processo de infidelidade partidária movido pelo Rede contra o vereador Marcão Gomes (PR), presidente da Câmara de Campos.

 

Indução a erro

Logo em sua primeira matéria, o SBT Rio chegou a induzir a pensar que as operações Chequinho e a Caixa d’Água fossem a mesma coisa. Na verdade, a primeira nasceu da troca de Cheque-Cidadão por voto na eleição municipal de 2016, denunciada por assistentes sociais da própria Prefeitura. Já a Caixa d’Água foi derivada das delações do empresário Ricardo Saud à Lava Jato, confirmadas pelo empresário local André Luiz da Silva Rodrigues, o “Deca”, relativas ao repasse de R$ 3 milhões não declarados à campanha de Anthony Garotinho a governador, em 2014. Em comum, as operações só tiveram o fato de terem gerado a prisão de Garotinho.

 

105 dias depois…

Mas a pauta das três reportagens do SBT Rio girou mesmo em torno de requentar as denúncias da delegada federal Carla Dolinski contra a Chequinho. Graves, elas já haviam sido investigadas pela Polícia Federal (PF) e Tribunal Regional Eleitoral (TRE), antes de serem arquivadas pelo desembargador Carlos Santos de Oliveira, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), em 15 de janeiro. Foram exatos 105 dias antes do SBT-Rio levar ao ar sua primeira matéria, cujo arquivamento só foi informado, bem de passagem, na segunda reportagem, após a verdade ser devidamente estabelecida nesta coluna.

 

Nove dias depois…

Na sexta foi a vez de Berenice Seara noticiar no Extra sobre o processo de infidelidade partidária contra Marcão. Ela chegou a especular que “vereadores já falam no retorno de Marcos Bacellar (PDT) ao cargo de presidente”. Mas não se deu ao trabalho jornalístico básico de confirmar a informação com Bacellar, que afirmou a esta coluna: “Não passa de especulação”. A jornalista também não informou que o pedido liminar pelo mandato de Marcão foi negado no TRE pelo desembargador Antônio Aurélio Abi Rami desde 2 de maio. Comparado ao SBT, o gap entre o fato e sua sonegação até que foi menor: “apenas” nove dias.

 

Abertura e assassinatos

Por ter preparado o processo de reabertura política do país com sua “distensão lenta, gradual e segura”, Ernesto Geisel (1907/96) era o general-presidente da nossa última ditadura militar (1964/85) visto com mais complacência. Mas sua memória ficou irremediavelmente maculada com a revelação de um memorando da CIA dando conta que, 15 dias após sua posse na presidência, ele soube da execução de 104 opositores políticos e autorizou que a prática continuasse. A CIA descreveu uma reunião da cúpula militar do governo Geisel em 30 de março de 1974. Depois dela, pelo menos outras 89 pessoas foram executadas pelo Estado.

 

Bom jornalismo

Num bom trabalho jornalístico da grande mídia, ontem O Globo publicou uma entrevista com o pesquisador brasileiro Matias Spektor, que encontrou o documento do serviço de espionagem dos EUA. Professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, ele disse: “Eu acho que ilustra, com a nova evidência, aquilo que o (jornalista) Elio Gaspari já mostrou: que o Geisel, apesar de ser o presidente da abertura, também reprimia”. Em seu livro “A Ditadura Escancarada”, Gaspari lembrou a justificativa dada pelo general aos historiadores Maria Celina d’Araujo e Celso Castro, que publicaram o livro “Ernesto Geisel” em 1997.

 

Geisel e Bolsonaro

Enquanto ainda era vivo para tentar se defender por suas mortes, Geisel disse: “Era essencial reprimir. Não posso discutir o método de repressão, se foi adequado, se foi o melhor que se podia adotar. O fato é que a subversão acabou”. A quem sobreviveu ou não viveu a história agora recontada, a lição do passado pode ser válida quando um presidenciável líder nas pesquisas exibe orgulhoso em seu gabinete os retratos de todos os generais-presidentes. Na sexta (11), sobre Geisel, Jair Bolsonaro (PSL) disse: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”.

 

Publicado hoje (13) na Folha da Manhã

 

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Este post tem 9 comentários

  1. Edi cardoso

    Não teve profissionais capazes, em todo o país, inclusive da imprensa, com o famoso furo de reportagem, mostrar a verdadeira face do general.
    Uma investigação internacional, a CIA, mostrar ao povo brasileiro, que a ditadura é uma forma de governo vergonhosa e assassina.
    Faltou profissionais capazes, foi conivencia ou desinteresse para investigar???

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Edi,

      Por força de lei nos EUA, o memorando datado de 11 de abril de 1974, do ex-chefe da CIA William Colby ao então secretário de Estado estadunidense, Henry Kissinger, só foi liberado ao público em 2015. E foi encontrado agora num belo trabalho de pesquisa do professor de Relações Internacionais Matias Spektor. Pelo tempo que o memorando retrata, mais de 44 anos atrás, a pesquisa caberia tanto a historiadores qt a jornalistas, que eram impedidos pela censura de apurar e noticiar no presente dos fatos. Ainda assim, veio de um jornalista, não de um historiador, a mais profunda e completa análise da nossa última ditadura militar (1964/85). Sem a leitura de “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Derrotada”, “A Ditadura Encurralada” e “A Ditadura Acabada”, num trabalho monumental do jornalista Elio Gaspari, nem quem viveu o período poderá compreendê-lo tão bem. Como disse o Spektor em entrevista a O Globo: “Isso (a política de execuções de opositores como política de Estado, com a anuência de Geisel) não é novo. Isso está no Gaspari (em “A Ditadura Envergonhada”, de 2003). O ponto que confunde muito as pessoas é a ideia falsa de que a abertura é o oposto da repressão — e não é. Você pode ter abertura com repressão”.

      Abç e bom domingo!

      Aluysio

  2. Edi cardoso

    Agradeço pelas respostas e sua compreensão.
    Bom dia.

  3. Lucia

    É perfeitamente natural conceder essa ordem judicial provisória na fase inicial do litígio. Evitando possível dano grave ou irreparável. Provavelmente, nessa liminar deferida o edil não havia sequer sido notificado.
    Portanto,seria mais aconselhável guardar os fogos para o apito final.

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Lucia,

      Seria mais aconselhável ler de novo o texto. Noticiar a ação de infidelidade contra Marcão é trabalho jornalístico. Mas este é incompetente ou suspeito quando não se divulgou também a liminar favorável ao vereador nove dias antes da sua notícia pelo Extra. Que sequer cumpriu o dever jornalístico básico de confirmar com Bacellar sua anunciada movimentação para assumir a presidência da Câmara. De resto, é óbvio: o apito final será dado no julgamento do mérito da ação no TRE. Ou, mais provavelmente, na análise do recurso da parte perdedora no TSE.

      Abç e grato pela chance de ressaltar o óbvio!

      Aluysio

  4. Herval

    O Crítica Nacional mostra com exclusividade que o tal Memorando da CIA exibido pela Rede Globo está longe de constituir-se em prova documental sobre supostas ações do governo brasileiro durante o regime militar.

    Mostramos nesse artigo de análise e pesquisa escrito por Christina Fontenelle que tal memorando é peça forjada que insere-se no contexto de tensionamento existente na época entre os governos brasileiro e americano.

    Um tensionamento causado pela presença de globalistas e comunistas como Henry Kissinger na diplomacia americana e também por conta do acordo de cooperação nuclear entre Brasil e Alemanha firmado na época.

    Demonstramos nesse artigo que o tal memorando é uma peça de guerra política e de contra-informação e que jamais pode ser considerado como prova documental, tamanha a sua inverossimilhança.

    (Link excluído pela moderação)

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Herval,

      Vc fez quatro comentários, um com link de um vídeo apagado do Youtube (imagina-se o motivo), um de uma nota delirante no Facebook e dois de um site que não conheço, com artigos laudatórios à última ditadura militar brasileira (1964/85). Dou-me ao direito de não reproduzi-los, liberando apenas um comentário, mas sem fazer propaganda do material falacioso do link.

      Isso posto, só posso entender como piada a afirmação de que que Henry Kissinger era comunista. Secretário de Estado dos EUA nos governos Richard Nixon (considerado um dos mais conservadores daquele país) e Gerald Ford, ele deu apoio aos golpes militares no Chile, Uruguai e Argentina, além de ser considerado o mentor da famigerada Operação Condor, que reuniu os esforços de todas as ditaduras da América do Sul na prisão, tortura e execução de opositores dos regimes.

      Na boa, leia um pouco de história antes de pretender escrever sobre ela. O “tensionamento” entre o governo Geisel e os EUA realmente chegou a acontecer, por conta do acordo nuclear entre Brasil e Alemanha. Mas como o memorando da CIA é datado de 11 de abril de 1974, por óbvio, ele não poderia ter como causa um acordo que só seria firmado em 27 de junho de 1975, mais de um ano e dois meses depois. Forjada (e muito mal) é a sua tentativa de contra-informação às revelações das pelo menos 88 execuções de opositores como política de Estado assumida por Geisel.

      Grato pela chance da explanação!

      Aluysio

  5. Lucia

    Grata por seu esclarecimento. Agora ficou óbvio!

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Cara Lucia,

      Com todo o respeito, as críticas ao jornalismo feito por SBT e Extra para noticiar fatos de Campos estavam bem envidenciados nas cinco primeiras notas. E, me desculpe, nada pode ser mais óbvio do que uma decisão liminar ter que ser sucedida pela análise do mérito.

      Abç e grato pela participação!

      Aluysio

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