Encontros com Hemingway
Escrito por Ernest Hemnigway (1899/1961) em 1951, publicado em 52, e principal motivo para o Nobel de Literatura concedido ao seu autor, em 54, “O velho e o mar” é para muita gente, inclusive para mim, a grande obra em prosa do séc. 20. Pescador, caçador, beberrão, amante, pugilista, toureiro amador, mototista de ambulância na I Guerra Mundial (1914/18), correspondente estrangeiro que pegou em armas na Guerra Civil Espanhola (1936/39) e na II Guerra Mundial (1939/45), estadunidense e cidadão do mundo, Hemingway viveu uma vida intensa, impressa com sangue e suor em toda sua obra, sempre em busca de adrenalina, do limite, até resolver atravessar o último por conta própria, disparando o fuzil contra o próprio peito, em 1961.
Recentemente, tive três contatos ao acaso com o escritor, dois em filmes, um em literatura. O primeiro ao rever o excelente “Wrestling Ernest Hemingway” (no Brasil, “Recordações”), de 1993, dirigido por Randa Haines, no qual um marinheiro irlandês (Richard Harris) e um barbeiro cubano (Robert Duvall), ambos aposentados e solitários, vivendo em Miami, travam amizade em meio às redordações dos triunfos e desapontamentos das suas vidas. Em relação aos primeiros, para o ex-marinheiro, o maior está o momento em que aceitou o desafio de Hemingway, num bar de porto, para uma briga — daí o título original do filme.
O segundo contato se deu num filme mais recente e badalado, mas tão bom quanto: “Meia-noite em Paris”, de Woody Allen. Nele, o escritor contemporâneo e estadunidense vivido por Owen Wilson (imitando dolosamente o próprio Allen como ator de si mesmo), ambiciona passar de roteirista a romancista, assim como pretende se mudar de Los Angeles para Paris, enquanto sonha com a capital francesa dos anos 20, adotada por seus compatriotas da chamada “geração perdida”. Entre eles, destaca-se Hemingway, cujo carisma do personagem (mais que sua interpretação por Corey Stoll) rouba cada uma das cenas em que surge, ditando suas regras viris para composição de uma vida e uma obra dignas de nota, capazes de seduzir mesmo um sujeito pacato e tímido como Woody Allen, seja o que escreveu e dirigiu o filme, ou aquele que na tela é personificado por Owen Wilson.
O terceiro encontro, através da literatura, se deu em novembro passado, quando viajei a Belo Horizonte para visitar os amigos de infância Janife e César Boynard, que haviam acabado de ter a segunda filha, Antônia, companheira do pequeno Davi, que praticamente vi nascer, em outra viagem, numa Lisboa de oito anos atrás. Ao passarmos pela livraria Fnac, no BH Shopping, a lombada vermelha chamou minha atenção para o livro “Poesia Russa Moderna”. E a atenção passou a ser redobrada, quando constatei que os compiladores daquela coletânea eram Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Boris Schnaiderman, os três tradutores do meu inseparável livro de poemas de Vladímir Maiakóvski (1893/1930), maior poeta do modernismo russo, que há tantos anos me ilumina os caminhos nesta vida.
Comprado o livro, fomos da livraria para o Via Cristina, um dos melhores botequins de BH — o que significa dizer, do mundo. Lá, em meio à degustação de algumas das 707 cachaças orgulhosamente expostas no estabelecimento, em prateleiras em estilo colonial que fazem lembrar as da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, passei a folhear o livro recém adquirido, até me deparar com um poema de Ievguêni Ievtuchenko, chamado “Encontro em Copenhague”, que relatava em versos um acaso aparentemente tão feliz ao autor, na capital da Dinamarca, quanto era aquele para quem lia, na capital das Minas Gerais. Abaixo, como em “Hamlet”, numa peça dentro da outra, passemos a eles…
Encontro em Copenhague
Sentados no aeroporto em Copenhague
atacávamos juntos o café.
Ali, tudo era belo,
confortável —
ambiente refinado como o quê!
E de súbito
aquele velho surgiu,
japona simples e capuz verde oliva,
pele curtida
por lufadas salinas,
ou melhor,
não surgiu,
exsurgiu.
Caminhava,
singrando por turistas,
como se houvesse largado o leme faz pouco,
feito espuma do mar
a barba híspida
branca
emoldurava-lhe o rosto.
Com sombria decisão de vitória
caminhava,
erguendo uma onda volumosa,
através de antiqualhas
de um moderno postiço,
através do moderno postiçando o antigo.
E abrindo a gola da camisa rústica,
ele, rejeitando o vermute e o pernaud,
pediu ao balcão uma vodca russa
e repeliu a soda com um gesto:
“No…”
Mãos gretadas, com cicatrizes,
curtidas,
sapatos grossos, arrastando solas,
calças incrivelmente encardidas, —
era mais elegante
do que todos em roda!
A terra sob ele como que afundava,
com o peso daquelas passadas.
Um dos nossos sorriu-me:
“Ei!”
Veja se não parece Hemingway!
Caminhava,
expresso em gestos curtos,
andar de pescador, pesado, lento,
todo talhado num rochedo bruto,
como através das balas,
através dos tempos.
Caminhava, encurvado, como na trincheira,
abria caminho entre pessoas e cadeiras…
Parecia-se tanto com Hemingway!…
Depois fiquei sabendo:
era Hemingway.
(1960)
Publicado na edição de hoje da Folha Letras, contracapa da Folha Dois, na Folha da Manhã