“Pontal” e suas muitas histórias reestreiam no Teatro de Bolso, às margens do Paraíba
De 2010, quando “Pontal” estreou numa noite de verão no Pontal de Atafona, muita coisa mudou nos sete últimos anos. A começar pelo próprio palco da peça, no antigo Bar do Bambu — “que agora é ponto de parada de sereias e outros viventes do mar”, como definiu o jornalista José Cunha Filho. Dono do bar, conhecido como “Bambu”, Neivaldo Paes Soares (aqui) desapareceria misteriosamente após sair navegando sozinho pelo foz do rio Paraíba do Sul, numa noite fria de 21 de junho de 2015. Um pouco antes, quem também desapareceu atrás das cortinas foi o genial diretor e um dos autores da peça: Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi (aqui), morto por complicações do HIV em 2 de abril de 2015.
Fiel ao lema “o espetáculo não pode parar”, “Pontal” foi encenada nestes anos seguintes em vários outros palcos, entre São João da Barra e Campos. Antes de voltar à cena a partir das 20h de hoje (30), no Teatro de Bolso (TB) Procópio Ferreira, às margens do mesmo rio Paraíba véio de guerra, a última apresentação da peça não poderia ter sido mais emblemática: no mesmo palco, durante o Ocupa TB, movimento que durou entre 9 de maio e 6 de junho de 2016, quando os artistas de Campos tomaram para si (aqui) as rédeas abandonadas do mais tradicional espaço cultural da cidade. Fechado desde 2014 pela gestão Rosinha Garotinho (PR), o TB só seria reaberto (aqui) em 27 de março de 2017, no governo Rafael Diniz (PPS).
Composta de poemas de Aluysio Abreu Barbosa, Kapi, Artur Gomes e Adriana Medeiros sobre Atafona, contados como causos entre pescadores do tradicional balneário sanjoanense, “Pontal” apresentou nessa última encenação, em pleno Ocupa TB, o mesmo elenco que hoje volta ao mesmo palco: os atores Yve Carvalho (que assumiu a direção, após a morte de Kapi), Saullo Oliveira e Jota Z — os dois últimos estavam entre os artistas que participaram da ocupação. Quando o Ocupa TB completou um ano (aqui), em maio deste ano, outro jovem ator e ocupante do teatro, Átalo Willian Sirius, registrou (aqui) em suas memórias do histórico movimento das artes goitacá:
— Enquanto estávamos ocupados, organizamos e participamos de oficinas, shows, aulas, inclusive organizamos o espaço para uma peça, “Pontal”, reabrindo o palco do Teatro de Bolso, que, de conhecimento público, estava fechado há mais de dois anos.
Nestes sete anos, no palco e fora dele, são muitas as histórias que poderiam ser contadas sobre “Pontal”. Muitas delas certamente renderiam outros poemas e peças. Quem ainda não tem as suas, terá chance de escrevê-las por conta própria hoje, nos próximos sábado (01/07) e domingo (02), e na quinta (06), sexta (07), sábado (08) e domigo (09) da semana seguinte, sempre às 20h. O ingresso pode ser comprado no próprio TB e sai por R$ 20 a inteira e R$ 10, a meia.
A benção, Kapi e Neivaldo!
muda(*)
a memória sai da toca
sobe pela palafita
ainda escorrendo lama
e me fita
com olhos de caranguejo
entre as tábuas do piso
do bar do espanhol
quando o pontal era ponta
tinha fé de igreja
e luz de farol
na boca do mangue
passei minha rede de arrasto
mas só peguei filhotes de bagre
que me ferraram o pé
ao chutá-los de volta à água
até que pedro me ensinou
a pegar pitu de mão
entre raízes do mato
na beira do alagadiço
hoje passo no mangue
e não piso na lama
mas na asfixia lenta
dos aterros do homem
e do avanço do mar
perto das ilhas da convivência e peçanha
siamesas da mesma terra
onde ficou minha casca da muda
de caranguejo a espera-maré
atafona, 06/2000
(*) Poema de Aluysio Abreu Barbosa, vencedor do FestCampos de Poesia de 2007 e parte da peça “Pontal”