Paula Vigneron — Luzia

 

Campos, pôr do sol de 20/05/18 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Às oito da manhã, o desjejum estava sobre a mesa. Diariamente, os alimentos eram consumidos a essa hora. Pães, bolo, suco e café, arrumados pelas mãos habilidosas de Luzia, eram devorados por seu filho e marido com uma pressa característica da família. Eles conversavam animadamente enquanto a mulher lavava as louças, com um leve sorriso no rosto, captando frases soltas e risadas escandalosas. Não sabia sobre o que os dois falavam, mas gostava de ver a união deles. Mesmo que sempre se mantivesse distante para não incomodá-los, admirava-os em silêncio.

Luzia, em sua aparência cansada, não negava pedidos dos seus. Sufocava suas vontades para satisfazer os outros, mas não lamentava. Nunca levantara a voz para contestar o que era dito pelos homens da casa: Paulo, o marido, e Leonardo, o filho. Autoritários, raramente eles abriam mão de seus desejos para satisfazê-la. Mas, resignada, Luzia entendia que a vida era exatamente assim. Fora criada para servir, não para contestar. Embora, em certos momentos, tentasse modificar a sua situação, era contrariada pela família.

Ainda menina, gostava de correr pela casa. Enquanto o pai trabalhava, ficava observando-o de longe, concentrado em seu escritório. “Não faça barulho. Já mandei você ficar quieta e não vou repetir”, gritava diariamente. Ele não sabia, mas a filha era a sua maior admiradora. No entanto, ela evitava dirigir a palavra àquele homem sempre ocupado para dizer a ele as suas verdades. A mãe de Luzia vivia para cozinhar e agradar ao marido. A garota tinha herdado suas características, e a forma de viver de ambas era semelhante. Desde pequena, Luzia respeitava quaisquer sinais enviados pelo pai para que ele não perdesse a paciência e a repelisse mais do que o normal.

Na adolescência, tornou-se companheira de atividades de sua mãe. Sempre com um sorriso leve no rosto e um traço confuso no olhar, ora feliz, ora pesaroso, ela vivia para auxiliar no que fosse possível. Acreditava que, dessa maneira, poderia afastar de si a alcunha de estorvo, dada pelo seu pai, ainda mais impaciente. Por mais que a jovem tentasse agradá-lo, era afastada com repulsa.

Casou-se com Paulo. Encontrou no rapaz a oportunidade de sair de uma vida em que fora jogada sem escolha. Via no noivo, que a tratava com um carinho atípico, a chance de ter uma vida mais próxima da que era descrita pelos romances narrados por suas amigas. Ao encarar a realidade do convívio diário, percebeu o engano e viu as ilusões se esvaírem diante de seus olhos. Luzia se tornou a sombra do que costumava ser a mãe. O silêncio em que era obrigada a viver a sufocou. Em algum pequeno espaço dentro de si, ela estava escondida e trancafiada. As chaves tinham se perdido entre uma lágrima e outra.

Sem se despedirem, Leonardo e Paulo saíram de casa, conversando animadamente. Mecanicamente, Luzia foi até a mesa e retirou as sobras do café da manhã. Agia sem sentir. Vivia sem perceber e entender para onde se dirigia. Evitava pensar e arrumava trabalhos que exigiam esforço físico para não se concentrar em suas idéias angustiadas. Por trás do perfeito desempenho do papel de dona de casa, sua verdadeira identidade teimava em vir à tona. Quando se via sozinha, sentava-se em uma cadeira na varanda e encarava seu passado. Lembrava-se da infância, dos maus tratos e desprezo e da falta de iniciativa da mãe para ajudá-la a mudar a realidade. Guardava rancor, medo, mágoas e tristeza. Vivia com um esboço de sorriso. Lutava para ocultar o que se passava em sua alma. Trouxera da infância o medo de atrapalhar a família. Sentia que deveria ser grata ao marido e ao filho e não lamuriar a vida. Mas estava enfraquecida e com maior dificuldade para manter a máscara de mulher perfeita e mãe dedicada. Gostaria de vê-los preocupados verdadeiramente com ela ao invés de enxergarem-na como uma máquina.

Mas sabia que a culpa era sua. Acostumou-os assim. Como sempre, havia feito tudo errado. Seus conflitos eram cada vez maiores e mais intensos. Percebia que presenciava um desmoronamento dentro de si e não conseguia mais reconstruir o que fora perdido. Estava velha. Suas mãos fracas, embora mantivessem a agilidade, doíam muitas vezes e eram trêmulas. A sensação de solidão a seguia por onde fosse. O ventre, outrora ocupado, abrigava um enorme vazio, que crescia cada vez mais. Se o parisse, tudo mudaria. E sabia que o parto se aproximava.

Acenava esporadicamente para vizinhos que passavam animados. O que os fazia sorrir? Não compreendia os motivos. Não entendia o porquê de as pessoas estarem sempre felizes. Escondia seus sentimentos mais uma vez para que todos a vissem em sua falsa perfeição. Sabia que os maridos da redondeza invejavam Paulo pela mulher dedicada. A mãe de Leonardo era usada como exemplo na roda de amigos. Mas ninguém conhecia Luzia.

Levantou-se da cadeira e caminhou até a cozinha. Pegou uma xícara de porcelana e encheu-a de café. À bebida, acrescentou algumas gotas de morte e tomou-a lenta e silenciosamente. Optara, mais uma vez, por não atrapalhar quem estava por perto.

 

Gustavo Alejandro Oviedo — Notas inflamáveis

 

 

 

Pedro Parente, o presidente da Petrobras, está sendo atacado por sanear as contas da empresa, reverter a situação deficitária em que se encontrava e posicioná-la novamente como a maior companhia do Brasil. A lógica por trás das criticas é que nada disso é importante se os combustíveis não são vendidos a preços mais camaradas. Afinal, para que é a Petrobras uma empresa estatal, se não pode renunciar ao lucro e à eficiência em favor dos motoristas? Por que ela tem que ser uma empresa de economia mista, com sócios privados minoritários e com ações na bolsa de Nova Iorque, quando poderia ser uma decadente e generosa empresa pública – como os Correios, por exemplo?

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Muitos aproveitaram os eventos dos últimos dias para alertar, nas redes sociais, do perigo da ‘mão invisível do mercado’ e do livre comercio, tomando como base os aumentos expressivos dos produtos que ficaram escassos.  Convém recordar aqui que Adam Smith defendia o livre mercado, mas não o caos. “O exercício da liberdade natural de algum indivíduo que faça perigar a segurança de toda a sociedade é e deve ser impedido pelas leis de todos os governos”, escreveu em A Riqueza das Nações. Quando alguém impossibilita um produtor de comercializar seus produtos sob a ameaça de queimar o caminhão que os transporta, tal atitude não parece se enquadrar num ambiente de liberdade.

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Tenho pavor a uma fila. Por isso, me recusei a perder tempo perto dum posto quando a falta de gasolina começou semana passada,  e me recuso agora, quando a lenta normalização provoca tumultos ao redor das bombas. A necessidade locomoção está sendo resolvida com o álcool de limpeza 92,8º, adquirido na mercearia da esquina, que o meu pequeno carro flex aceita sem reclamar.

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Falando de etanol, não deixa de ser irônico que a nossa região, que já foi e poderia voltar a ser uma das maiores processadoras de cana de açúcar, dependa dos caminhões pipa que vem de Duque de Caxias para suprir a necessidade de combustível. O deputado Mendonça Filho (DEM) apresentou nesta segunda um projeto de lei que libera a venda de etanol pelas usinas, sem a intermediação das petroleiras/distribuidoras.  Segundo Mendonça Filho, isto poderia significar uma redução de 10% no preço do produto.

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Acrescentaria a essa boa ideia outra que venho matutando há algum tempo (desculpem insistir): a desvinculação da venda de etanol dos postos que vendem gasolina. Se uma usina puder ter seu próprio posto, por exemplo, poderia vender seu produto ao preço que quiser, e não necessariamente a 70% do preço da gasolina, como acontece hoje.

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A greve/locaute dos caminhoneiros demonstrou como a população acompanhou com simpatia um movimento que provocou desabastecimento, encareceu produtos, coagiu aqueles que não queriam aderir ao protesto e clamou por uma intervenção militar. O balanço foi positivo, ao menos, do ponto de vista do estudo sociológico.

 

Saulo Pessanha — Morte na redação

 

Jornalista José Cunha Filho

Anos 1980.

A noite é trevosa e má. Chove sapos.

José Cunha Filho, editor-chefe da Folha da Manhã, já está com o jornal fechado, mas aguarda, na redação, que a chuva passe, já que o seu veículo de locomoção é a Matilde, uma motocicleta Honda 125.

Eis que o telefone toca. Do outro lado, uma voz dorida informa que acaba de morrer o professor Áureo, do Liceu, e pede que a Folha registre o óbito.

Cunha então pergunta:

— Que professor? O de latim?

A voz confirma. Uma hora da manhã e Cunha, que tinha sido aluno de Áureo Azevedo, redige a nota de falecimento. Antes, tomado de dúvida, tenta encontrar o seu telefone no catálogo. Inútil. Liga para o hospital onde, segundo o informante, um fulminante infarto liquidara o professor.

— O professor que morreu era o Áureo? O do Liceu, um baixinho simpático?

— Era. Só que o corpo já foi removido e não tem mais ninguém da família para dar informação — responde a pessoa.

Cunha inclui a nota na única página ainda não fotolitada e pronta para a impressão. No dia seguinte, de volta ao jornal, já pela manhã, para fazer a pauta, é avisado que um senhor quer lhe falar.

Entre a distribuição de uma matéria e outra e eis que…

— Bom dia… Aliás, lindo dia, não é verdade? Sou o professor Áureo, lembra? Aere perennius, no dizer do nobre Horácio, mais durável que bronze…

Cunha pole o latinório de sacristia e responde no mesmo nível. Diz que não fora movido por anims laedendi, ao, para a sua alegria, ter barrigado a edição do jornal com a nota da morte do mestre.

Sorridente, Áureo o abraça e diz que continua caminhando. O finado é um homônimo, professor de colégio estadual em São Fidélis. Por ser Áureo acreditaram que se tratava do latinista emérito e jubilado.

De qualquer forma, a nota de falecimento serve para que Áureo teste a sua popularidade.

— Valeu pelas demonstrações de carinho. Estou com a casa repleta de coroas e flores que irei doar ao legítimo dono, ad majorem Dei gloriam pois, afinal, a cada um o seu, cuique suum…

 

A partir desta terça, Saulo Pessanha é novo colaborador do Opiniões

 

Alguns dos colaboradores deste “Opiniões”, por motivos pessois e acúmulo profissional, optaram por encerrar suas participações. Foram os casos recentes do jornalista e servidor federal Ricardo André Vasconcelos e da professora, escritora e atriz Carol Poesia. A eles fica o agradecimento em nome deste “Opiniões” e no seu, leitor.

Mas é hora de dar espaço a outros para escreverem aqui quinzenalmente. Amanhã, quem estreia sua colaboração, terça sim, terça não, é o jornalista e escritor Saulo Pessanha.

Abaixo, em palavras póprias, um resumo do que Saulo pretente fazer neste blog e um pouco de quem é e do que já fez:

 

Saulo Pessanha

 

Acolhi convite do jornalista Aluysio Abreu Barbosa para escrever, quinzenalmente, no concorrido blog “Opiniões”. Vou dar, portanto, uns pitacos no espaço que agrega outros colaboradores, sem deixar de estar produzindo o meu próprio blog, também hospedado no Folha 1.

A colaboração no “Opiniões” envolverá a inserção de crônicas, com um foco sobre Campos, suas coisas, sua gente. Daí que, inclusive, estarei registrando “causos” que envolva os nossos políticos e afins. São histórias divertidas, irreverentes, que, de alguma forma, resgata a memória política da cidade sob o viés do humor.

Ao falar de humor, recordo de observações feitas pelo saudoso jornalista Prata Tavares. Ele dizia que o (bom) humor se apóia no ridículo das situações e que fossem os humoristas mais inteligentes jamais se preocupariam em inventar anedotas — precisariam apenas olhar em torno de si para colher os mais hilariantes casos.

E citava o genial Charles Chaplin. As gafes do seu personagem nunca eram obras de ficção, mas fatos reais, a maioria tirados do cotidiano e colhidos nos embraçados gestos dos homens.

Saulo Pessanha nasceu em Campos, em 1950. É jornalista e começou em 1969, em A Notícia, como repórter esportivo.

Ao longo da carreira, foi correspondente da revista Placar, do Jornal dos Sports e da Última hora. Também atuou em O Fluminense, de Niterói, no Monitor Campista e O Diário.

Foi redator noticiarista nas Rádio Cultura, Jornal Fluminense, Campista Afonsiana e Nova Campos (FM) e exerceu a chefia de Jornalismo nos anos 80 na TV Norte Fluminense.

Em 1991, lançou o Economia Rural, com circulação regional. Na Folha da Manhã, é colunista. Mas já foi repórter da editoria de Política.

Fora do jornalismo, foi proprietário do Bar Doce Bar, que marcou época na noite campista nos anos 1970 por duas características básicas: a informalidade do ambiente e a excelência musical, com predominância da música popular brasileira.

 

Alexandre Buchaul — Lá vai o pato…

 

Nossos vizinhos do norte dão ao político que está em decadência, perdendo poder e que, em razão disso, já não é muito respeitado e ocupa o cargo mas não tem influência na cena, o apelido de pato manco (lame duck).

A paralisação dos transportadores rodoviários nos evidencia uma série de verdades.

O país é refém do modal rodoviário e qualquer dificuldade referente a essa via de transporte gera enorme transtorno no já tenso gargalo logístico tão conhecido de nossos exportadores, notadamente os agroexportadores.

O brasileiro detesta política, mas ama o Estado. A solução mágica da caneta do executivo transfere ao ente abstrato, governo, o custo de benesses direcionadas a uma e outra categoria. Os mais organizados e poderosos acumulam benefícios, aos demais cabe a conta aplicada na forma de impostos, taxas e contribuições majoradas e coincidentes com ineficiência no que se espera de retorno como papel do Estado Moderno, prestador de serviços. Uma espécie de Estado condomínio.

O modelo político, presidencialismo de coalizão, brasileiro falhou. Essa espécie de semiparlamentarismo torna o executivo refém do legislativo e governos fracos acabam por se arrastar por meses a fio trazendo prejuízos incalculáveis a nação. Creio que melhor seria termos a aplicação de modelo parlamentarista com voto distrital misto, mas quem sabe que jabuticaba pode surgir aqui no futuro.

Passada a crise, é provável que o futuro repita o passado e uma vez mais continuemos a viver como se nada houvesse a ser corrigido. Em todos as esferas de governo (federal, estaduais e municipais) vivemos uma bela “safra de patos” a falta de representatividade é clara e as eleições que se aproximam não nos trazem grande alento.

Lá vai o pato, manca aqui, manca acolá. Lá vai o pato sem saber para onde irá!

 

Artigo do domingo — O petróleo é deles

 

 

 

O petróleo é deles

Por Martinho Santafé(*)

 

Os ratos continuam à espreita. Já no terceiro dia da “greve” dos caminhoneiros (coloco entre aspas porque greve de patrão é outra coisa, é locaute), o deputado e líder sindical Paulinho da Força e outros parlamentares à esquerda, à direita e do Centrão sugeriram a demissão do presidente da Petrobras Pedro Parente, a mais recente Geni do cenário político nacional, pois tem sido responsabilizado (junto com a Globo, sempre ela…) por coxinhas, mortadelas e outros espécimes jabuticabas de alta complexidade por uma crise que não inventou.

A crise, na verdade, começou a ser gestada lá no governo JK, quando o então presidente com fama de progressista adotou o slogan “50 anos em Cinco” e iniciou a desconstrução da infraestrutura centenária do modal ferroviário que funcionava bem desde o Império, a fim de transformar o país em uma imensa rodovia — hoje com mais buracos e lama que asfalto. Por uma triste coincidência, um país realmente desenvolvido se reconhece pela qualidade e extensão de suas ferrovias.

Estavam inauguradas no final da década de 1950 a era das carretas e a categoria dos chantagistas sobre quatro rodas. Décadas depois, já tri-campeões mundiais nos gramados, quebraríamos o recorde global de acidentes automobilísticos, com mortos, feridos e deficientes físicos comparáveis a uma guerra civil, ranking ampliado no dia-a-dia pelos milhões de motociclistas que trafegam por nossas ruas e rodovias. E mais recentemente, após os relatórios do IPCC sobre mudanças climáticas, despontamos entre as principais lideranças dos poluidores da atmosfera. Nessas modalidades, nosso país continua imbatível. Viva os combustíveis fósseis! Viva o Século XX!

Nos meus 67 anos bem vividos, preservei poucas certezas, mas uma dela é inarredável: se Paulinho da Força & Cia. são a favor, soy contra! Aliás, nunca vi nem ouvi deste e de outros personagens conhecidos ou nem tanto nada que lembrasse alguma crítica a ex-presidentes e ex-diretores recentes da estatal queridinha dos nacionalistas contra a rapinagem sistêmica cometida por eles, em conluio com a elite da corrupção no Congresso e nas empresas.

Na verdade, o que leio ultimamente são verdadeiros tratados complexos e sofisticados descrevendo as estratégias globais e os nebulosos bastidores do mercado internacional do petróleo, “dominado pelos interesses imperialistas que colocam em constante risco as nossas ricas reservas do pré-sal”. Nem uma linha sobre os R$ 40 bilhões de prejuízos sofridos pela Petrobras em conseqüência da política de preços demagógica e irresponsável, como também a respeito dos bilhões desviados da empresa pela corrupção. É uma crítica seletiva com claro verniz “ideológico”, mas com um novo “bode expiatório” da vez.

Enquanto essa turma insiste em preservar as narrativas do século passado tendo o devido “escrúpulo” de, sutilmente, perpetuar o ranço escravagista do século anterior, outros países cujas riquezas não são tão “cobiçadas” como as nossas — mas que optaram por priorizar o conhecimento e a informação ao invés da safadeza —, já lançaram o carro elétrico, devem lançar nos próximos dois anos, o carro autônomo e outras inovações que certamente custarão a chegar até nós. A Alemanha, por exemplo, estipulou um prazo máximo de 10 anos para proibir totalmente a circulação de veículos movidos a diesel. Aqui, continuamos sonhando com o pré-sal, seu potencial quase infinito de poluição, seus milhares de empregos prometidos e nunca cumpridos, seus milhares de cidadãos exilados nas periferias desta riqueza ilusória e, como sempre, poucas dezenas de “meia-dúzia” de espertos no topo da pirâmide.

Lembra Macaé? Pois é…

Concluindo: por que Pedro Parente, representante de uma diretoria nomeada por um governo altamente suspeito e com credibilidade quase zero, mas que adotou o “compliance” para blindar a empresa das ratazanas públicas e privadas, passou a ser a Geni deste conturbado cenário nacional, a ponto de parlamentares em quem eu não confiaria a vigilância de meu galinheiro pedir a sua saída? Ora, porque no obsceno imaginário político-institucional do país, a Petrobras continuaria sendo a eterna “vaquinha das tetas de ouro”, cuja “generosidade” viabilizada pelos impostos escorchantes cobrados aos consumidores “na bomba” alimenta o apetite voraz da União, dos estados e dos municípios, materializando a compra de votos no Congresso e nas campanhas eleitorais, os jantares em Paris e os shows superfaturados. Sem contar, é claro, com o sonho de consumo de todo político corrupto: “aquela diretoria que fura poço”.

E tudo isso financiado pela imensa legião de otários conformados que sacam seus cartões de crédito como se fossem ingressar no Paraíso. Alguns deles até brilhantes no esforço de explicar o inexplicável.

“O petróleo é nosso”? Nós quem, cara-pálida?

 

(*) Jornalista, poeta e artista plástico

 

Pubicado hoje (27) na Folha da Manhã

 

Hamilton Garcia — A evolução da esquerda (I)

 

A esquerda moderna no Brasil, que compreende a organização dos trabalhadores em movimentos de luta por direitos econômico-sociais associados a correntes ideológicas de viés socialista, nasce em meio à confluência, na passagem do séc. XIX ao XX, da industrialização propiciada pela acumulação dos excedentes econômicos da cafeicultura paulista, da urbanização incrementada pelo fim da escravidão e do incentivo governamental à imigração europeia visando o aumento da produtividade do trabalho.

É daí que surgem as primeiras greves e organizações sindicais que iriam colocar em xeque a Primeira República por meio de inéditas reivindicações político-sociais que abarcavam do direito de organização política à regulamentação da jornada de trabalho, passando por melhorias salariais e de condições de trabalho; reclamos inassimiláveis pelo Estado liberal-oligárquico de então.

A reação conservadora-liberal a tais movimentos, que se seguiu, com repressão violenta das greves, perseguição aos líderes e deportação de estrangeiros anarquistas, acabou, ao contrário do que se esperava, impulsionando o ideário revolucionário entre os indivíduos mais ativos das classes trabalhadoras e camadas médias. A partir do bloqueio ao diálogo e à participação, emergem, de um lado, o anarcossindicalismo como força mobilizadora de greves nos maiores centros industriais – cujo ápice foram as greves de 1917-1918 – e, de outro, os tenentes, jovens oficiais subalternos do Exército com capacidade de organização e liderança para deflagrar rebeliões políticas nos quartéis, a partir de 1922, contra o domínio oligárquico-liberal.

O fracasso de ambas as vertentes propiciará a convergência de classe entre operários e setores médios a partir da criação do PCB (1922) e das repercussões da Coluna Miguel Costa-Prestes (1925-1927) dentro e fora da caserna. Os comunistas aparecem, então, em meio aos impactos da Revolução Soviética (1917) — que populariza o marxismo entre nós pela chave russa do “marxismo-leninismo” —, deslocando a influência anarcossindicalista para o segundo plano, influência esta já abalada pela deportação de seus líderes, a partir de 1921, e pelo isolamento político ocasionado por uma radicalização que propunha destruir as instituições vigentes por meio da ação direta de indivíduos de uma classe ainda em formação, e que, ademais, era preponderantemente católica e de engajamento sindical majoritariamente moderado.

Do lado dos tenentes, a situação não era melhor, pois sua filosofia positivista, de caráter elitista, estabelecia uma relação vertical-civilizatória com a massa popular a partir de sua submissão aos cânones da sociedade industrial — vulgarmente traduzidos em termos de fé (Religião da Humanidade) —, o que tornava o engajamento político da massa subalternizada não só um contrassenso, mas uma temeridade.

Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, engajados na Revolta Militar de 1924, é verdade, rompem com essa perspectiva ao iniciarem sua marcha pelo interior do país — maior em extensão e tempo de duração do que a famosa Grande Marcha dos comunistas chineses de 1934-1935 —, conscientizando os camponeses sobre as razões político-econômicas de sua pobreza e a necessidade da revolução para dar fim a esta opressão e à dominação das oligarquias agrárias sobre o país. Todavia, sem serem derrotados militarmente, os revoltosos se dispersariam pelo país e pelo exterior após verem seus esforços frustrados pela inação política do campesinato e o temor das populações rurais pelos saques e violência que sua passagem provocavam.

Enquanto as formas radicalizadas de ação se viam prejudicadas por sua inspiração utópica, permeada tanto por equívocos político-doutrinários como tático-estratégicos, com seu consequente isolamento social, os comunistas, liderados por Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, inauguravam uma nova radicalidade ao romperem com a perspectiva antipolítica dos anarquistas e estabelecerem alianças político-eleitorais com segmentos moderados da esquerda para a exploração dos (poucos) espaços democráticos existentes na República Velha (1889-1930), ao mesmo tempo que procuravam atrair os tenentes para uma aliança democrático-popular. Mas, por esses azares da história, perto de colherem os frutos de sua estratégia mais consistente e colada à realidade do país, os comunistas seriam atropelados por seus camaradas da Internacional Comunista (IC), que, sintonizados com a guinada stalinista ocorrida na União Soviética após a prisão de Trótsky, em 1929, pressionaram o PCB a mudar sua direção partidária, tida como excessivamente moderada (bukharinista).

Morto Lênin, em 1924, a russificação do comunismo internacional se completaria nos anos 1930, agora sob a égide do orientalismo despótico do cristianismo-ortodoxo, em oposição ao ocidentalismo libertário do materialismo-histórico, com reflexos também no Brasil, onde a IC iria iniciar um período de expurgo das lideranças “reformistas” em proveito daquelas que considerava aptas à “ação revolucionária” e mais diretamente ligadas à classe operária (obreirismo). Com isso, a interessante experiência comunista brasileira seria desperdiçada, impondo-se, a seguir, a filiação ao PCB dos tenentes convertidos ao comunismo, que, a partir daí, se empenhariam na preparação do Terceiro Levante Tenentista (1935) sob a liderança de Prestes – filiado ao partido, por pressão de Moscou, em 1934 –, cuja derrota marcará o recuo, mas não o abandono, do radicalismo pequeno-burguês no interior do PCB.

A substituição do novo radicalismo democrático-popular pelo radicalismo militar-popular (prestismo), está na raiz da sinuosa trajetória da esquerda radical brasileira desde então, que se tornará hegemônica — confundindo-se com a própria noção de esquerda — dada a incapacidade do sistema político, reformado pela Revolução de 1930 e pela Constituição de 1946, de institucionalizar as organizações intersindicais e partidárias dos trabalhadores, bloqueando, assim, a difusão da cultura democrática em seu seio e reforçando a internalização do putschismo em sua cultura política.

O blanquismo — que é como o putschismo se propagou na tradição revolucionária internacional — voltaria a jogar um papel fundamental entre nós a partir da Revolução Cubana (1959), em especial depois do golpe de 1964, possibilitando o aparecimento de inúmeras dissidências comunistas revolucionárias que viriam, na fase da abertura geiselista — de intensa repressão ao PCB —, somar-se ao PT; mas isto é assunto para um próximo artigo.

 

Teatro de Campos perde seu maior ator, Yve Carvalho

 

No verão de 2010, Yve Carvalho na montagem de “Pontal”, no Pontal

 

 

Morreu por volta das 9h da manhã de hoje (26) o ator e professor Yve Carvalho. Ele tinha 54 anos e estava internado há cerca de 70 dias no Hospital Ferreira Machado (HFM), por conta de insuficiência renal. O velório ocorre no Teatro Trianon, a partir da meia-noite, cujo palco foi um dos tantos ocupados pelo talento de Yve. O enterro será às 16h deste domingo, no Campo da Paz.

Yve começou no teatro nos anos 1980. Sua primeira peça foi “Blue jeans”, encenada no Teatro de Bolso (TB) sob a direção do também já falecido Félix Carneiro. A partir daí, ele fez várias peças em Campos, chegando a dividir elenco com a então atriz e depois governadora do Rio e prefeita de Campos, Rosinha Garotinho. Foi em “O auto do lavrador”, sob direção de Orávio de Campos.

A partir da sua atuação na peça “O Noviço”, de Martins Pena, em 1986, Yve saiu de Campos, como o primeiro ator pago da planície goitacá nos palcos do Rio. Lá, ele investiu na sua formação acadêmica. Após se formar como técnico em ator na Escola de Teatro Dirceu de Mattos, também se graduou em licenciatura em teatro na Unirio. Nos anos 1990, ele trabalhou como secretário de uma musa daquela década, a atriz global e ex-modelo Isadora Ribeiro.

Aprovado em concurso como professor de arte da rede estadual e ainda morando no Rio, Yve integrou o elenco da peça campista “Auto do Ururau”, dirigida por José Sisneiro, que arrebatou o prêmio Shell, um dos mais importantes do teatro brasileiro, em 2005. No mesmo ano, ele venceu como intérprete o FestCampos de Poesia Falada, no hoje fechado Palácio da Cultura. O poema que Yve defendeu também ganhou aquele FestCampos, do qual participei como júri: “Goya Tacá Amopi”, do poeta, diretor teatral e turismólogo Antonio Roberto de Góes Cavalcanti, o Kapi (1950/2015).

O reconhecimento na terra natal, a amizade e intensa parceria artística com Kapi, além de ter passado em concurso como professor de arte também na rede municipal de Campos, trouxeram Yve de volta em 2006. Como eu já tivera alguns poemas dirigidos por Kapi, mas com outros intérpretes, em FestCampos anteriores, formou-se uma nova parceria ator/diretor/autor que estreou com bastante sucesso no FestCampos de 2007. Naquele ano, sob direção de Kapi, Yve interpretou “muda”, poema sobre Atafona, que acabou tirando o primeiro lugar.

O fato da obra ter vencido, mas não seu intérprete, revelou a mim e ao público o imenso compromisso de Yve com sua arte. Após o poema ter passado sem nenhum deslize pela semifinal, Yve esqueceu o texto no meio, na final do dia seguinte. E a culpa pode ter sido também minha, pois estávamos numa tremenda ressaca, após bebermos até amanhecer o dia, comemorando a classificação.

O grande ator não se fez de rogado, pediu desculpas, saiu de cena e voltou de imediato ao palco do auditório do Palácio da Cultura, retomando o poema do início. Se o erro na primeira tentativa acabou lhe impedindo de ganhar como intérprete, sua coragem fez com que a obra fosse a vencedora daquele FestCampos.

A parceria ainda colheria mais frutos em 2008. Novamente com a interpretação de Yve, sob direção de Kapi, outro poema, “conversão a mais de uma atmosfera”, acabaria vencedor do 11º Concurso Nacional de Poesia Francisco Igreja, em 2008. O palco, não poderia ser mais honroso: a sala Machado de Assis, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Além da obra, Yve ganharia como melhor intérprete daquele festival, seu maior prêmio como ator em terras cariocas.

Ainda em 2008, Yve faria sua primeira experiência no cinema. Sob a direção do campista Carlos Alberto Bisogno, ele protagonizou o curta “Efígie”. O filme seria lançado em 2009. Enriquecido pela experiência, retornaria aos palcos no mesmo ano, para encenar no TB seu primeiro monólogo: “Meu querido diário”, do dramaturgo, poeta e professor Adriano Moura. Novamente sob direção de Kapi, foi um ato de resistência. Encenada já em setembro, foi apenas a segunda montagem de artistas locais naquele ano triste para o teatro de Campos.

Após a estreia da peça, escrevi sobre seu protagonista numa resenha crítica publicada na Folha Dois:

— Podemos também notar um intérprete superior, que soube pontuar sua conhecida visceralidade com um timing de comédia quase casual, servindo as deixas do texto ao riso do público numa fruição espontânea, sem fazer força, mesma caudalosa.

No verão de 2010, Kapi passava uma temporada em Atafona, quando teve uma ideia. Juntaria poemas sobre Atafona, meus, dele, de Artur Gomes e Adriana Medeiros, que seriam adaptados como causos contados entre pescadores, numa peça chamada “Pontal”. O palco não poderia ser mais apropriado: o bar do Bambu, como Neivaldo Paes Soares passou a ser conhecido após ocupar no Pontal de Atafona a antiga casa de barco da família Aquino, proprietária do Grupo Thoquino, transformando-a em bar e sua residência.

O primeiro ator pensado foi Yve, que já conhecia alguns poemas. A ele se juntaram o campista Sidney Navarro e o gaúcho Mairus Stanislawski. Administrar o conflito entre personalidades fortes como Kapi, Neivaldo e Yve não foi fácil, mas valeu a pena. A peça acabou sendo um inesperado sucesso de público, apesar do acesso ao local só pela areia e ausência de energia elétrica. E talvez tenha sido o último grande momento de um lugar mágico, entre o Paraíba do Sul e o Atlântico.

O avanço do mar levaria o bar do Bambu em julho de 2012, enquanto Neivaldo desapareceria misteriosamente na foz do rio em 21 de junho de 2015.

Cerca de dois meses antes de Neivaldo, Kapi também partira em navegação ao desconhecido. Um dos maiores artistas de Campos, foi condenado ao ostracismo nos oito anos da gestão municipal da ex-atriz Rosinha, vítima de ressentimento mesquinho por ter gravado um vídeo de apoio à oposição, na eleição de 2008. Em 2 de abril de 2015, Kapi também não resistiria a um quadro de insuficiência renal.

Com a morte de Kapi, Yve se assumiu também como diretor. Trabalhando com a produtora Oráculo, do odontólogo, psicólogo e ator Luiz Fernando Sardinha, ministrou cursos sobre tragédias gregas para jovens. E os dirigiu em clássicos como “Édipo Rei”, de Sófocles; “Medeia”, de Eurípedes; e “Prometeu acorrentado”, de Ésquilo. Depois de montar os três do TB, levou o último também ao palco do Trianon.

Passado o sucesso no verão de 2010, Yve também assumiu a direção de “Pontal” com a morte de Kapi. E a encenou em palcos como o Cais da Lapa, o auditório do Porto do Açu, o Sesc e o Sesi de Campos, além da praça do Liceu, durante a primeira edição do Festival Doces Palavras (FDP). Vários outros atores compuseram o elenco, sempre ao lado de Yve: Artur Gomes, Toninho Ferreira, Saullo Oliveira e Jota Z.

Após sua estreia num pedaço do Pontal que não existe mais, foi por iniciativa de Yve que “Pontal” teve outra montagem muito emblemática. Durante a ocupação do Teatro de Bolso pelos artistas de Campos, no movimento Ocupa TB, entre maio e junho de 2016. A peça foi exibida no palco fechado há mais de dois anos. Com os mesmos Yve, Saullo e Jota Z, “Pontal” teria uma reestreia no Teatro de Bolso já reaberto, com casa lotada, em 30 de junho de 2017.

Mesmo que eu tenha escrito 17 dos 22 poemas que compõem a peça, Yve era o capitão de “Pontal”. Ao longo dos anos, nossa parceria nasceu na afluência entre poesia e teatro. E a amizade foi irrigada com cerveja e cachaça, dos festivais e peças às mesas de bar de Campos, Rio e Atafona.

Como ator, Yve era dramaticamente visceral, sem ser hiperbólico, ou baixar a pulsação da veia cômica. Ninguém precisava lhe dizer isso, pois ele já sabia, fazendo questão de deixar claro em alto e bom som, sempre que possível. Era uma estrela com consciência do seu brilho; um artista e pessoa por vezes difícil, mas absolutamente necessário.

Se seu desbordar era capaz de preencher as vidas ao redor, com sua morte ficam muitos vazios. O teatro de Campos perde seu maior ator. Eu e outros tantos, um amigo.

Com versos familiares, me despeço. Até o reencontro em outra foz, meu irmão!

 

 

ACENOS

(Antonio Roberto Kapi)

 

Quem parte

deixa saudade,

deixa acenos,

esquece livros.

Deixa tolhido

um mundo de desejos,

vida desarrumada

e a gente sem prumos.

Quem fica

fica de lembranças,

fica mais criança,

fica solidão.

Quem parte,

parte inteiramente,

parte de repente

sem um avisar.

Quem fica

fica de inocente

regando as sementes

de um tal regressar.

Quem fica

fica sem despedida

fica sem guarida

e morre um pouco em vida

pois quem parte

parte corações

mata as ilusões

e parte.

 

Atualizado às 7h27 de 27/05