Crônica do domingo — Papo de boteco no país de Neymar e Marta
— E o Neymar, hein?! Que furada! — Paulo abriu os trabalhos sem preliminares na mesa do boteco, após a primeira talagada que consumiu metade do copo de cerveja
— Era previsível. Se não fosse isso, seria outra coisa. Neymar é desperdício de talento por falta de caráter — respondeu Aníbal, após gole menor e com menos entusiasmo, aparentemente conformado.
— Falta de caráter dele? E da tal da Najila?
— Essa mulher parece ser aquilo que Chico Buarque diz num daqueles quatro DVDs sobre sua obra separada em temas: “é capaz das coisas mais baixas, exatamente como os homens”.
— Então para você não há diferença?
— Somos todos da mesma espécie: macaco com polegar opositor, sem rabo, de pouco pelo e metido à besta. Somos capazes das mesmas coisas que os chimpanzés, nossos parentes mais próximos. São os únicos na natureza, além de nós, capazes de matar não só para comer e se defender. Nos humanos, a diferença de gêneros talvez seja só hormonal, muscular e cultural. Se as mulheres são mais identificadas ao sentimento de posse, todas as estatísticas revelam que são os homens que matam bem mais por não aceitarem o fim de uma relação amorosa.
— Mas o vídeo mostrou que foi ela quem bateu nele. Aliás, foi o primeiro VAR de Maria Chuteira.
— Não se discute com as imagens. Mas repare nas reações desde o início. Alguém condenou Neymar de ser culpado por se encontrar em quarto de hotel com uma mulher praticamente desconhecida? Porque foi isso que fizeram com a empresária Elaine Caparroz, agredida por quatro horas pelo jovem que também mal conhecia e levou ao seu apartamento. Lembra?
— Eita! Tá virando politicamente correto agora, é? — questionou Paulo, em meio a gargalhadas de desdém umedecidas por outro gole largo de cerveja.
— Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não caio no segregacionismo da pauta identitária. Que é abertamente criticada por pensadores progressistas como o cientista político Mark Lilla, ou o filósofo Slavoj Zizek. Serve só para dividir, não unir para chegar ao poder. No que se refere ao feminismo misândrico dessa pauta, é como definiu a Camille Paglia: “um bando de mulheres burguesas que pensam poder fazer do mundo a sua sala de estar”. Querem crucificar o tal “macho hétero opressor” por todos os pecados da história e acham o quê? Que ele não vai reagir? Foi o que elegeu Trump nos EUA, Salvini na Itália, Orbán na Hungria, Bolsonaro no Brasil e até o “ex-gay” Duterte, nas Filipinas. Isso é uma bola de ferro acorrentada ao pé da esquerda!
— A resenha era sobre Neymar e você vem com papo-cabeça para tentar abrir na ponta esquerda da política. Menas, como diria o Lula.
— O problema de Neymar, eu já te disse, é de caráter. Ele não tem, não desenvolveu. E, à esta altura, nem vai mais. Nasceu com um talento enorme para futebol e, desde criança, foi tratado como príncipe mimado pelo Santos. Como é agora, mesmo aos 27 anos, pelo xeique do petróleo do Catar que arrendou o Paris Saint-Germain. Até aí, faz parte do mercantilismo que tomou conta do esporte. O problema é quando o pai do Neymar, parasita pecuniário do futebol do filho, passa a circular livremente na concentração da seleção brasileira, que deveria representar o país.
— Isso é verdade. Aliás, foi assim na Copa do Mundo de 2018. O resultado? O incrível jogador que virou meme, sinônimo de simulação de queda às crianças do mundo. E estava sendo assim agora, na preparação da Copa América.
— Essa Copa América só terá valor para definir a permanência ou não de Tite como técnico do Brasil. Tanto que ele abriu mão da renovação para a Copa do Mundo de 2022 e convocou veteranos agora para tentar se segurar no cargo. Ao jogar fora todo o belo trabalho que fez no Corinthians e se submeter aos mandos e desmandos de Neymar, seu pai e “parças” no comando da seleção, Tite deveria mesmo sair.
— Sim, os caprichos de Neymar violentaram a seleção. Só não dá para dizer que fez o mesmo com a tal Najila.
— Quem tem que definir isso é a Justiça. O fato é que Neymar e Najila são mais parecidos do que se pensa. Ambos foram agraciados com dons naturais, que se esforçaram para aprimorar em academias: um, a habilidade para jogar bola; a outra, a beleza física. Só que são atributos-laticínio: têm prazo de validade. Malhação nenhuma impedirá que se percam com o tempo. E sobrará apenas o caráter que não construíram. O problema está na sociedade que produz tantos Neymares, Ronaldinhos Gaúchos, Adrianos Imperadores, sob a marcação cerrada de tantas Najilas.
— Mas foi a mesma sociedade que produziu Zico. Até eu, que sou botafoguense, tenho que reconhecer o que ele foi como jogador e é como homem.
— O Botafogo tem como maiores ídolos dois “antepassados” de Neymar. Vindos de classes sociais bem distintas, é só olhar as vidas trágicas muito parecidas de Heleno de Freitas e Garrincha. Mesmo sendo carioca da gema da periferia de Quintino, Zico é uma exceção. Filho de um português e de uma filha de portugueses, teve uma criação modesta, mas de certo modo europeia. E, ironicamente, foi o maior ídolo do clube mais popular do Brasil.
— Ser europeu não quer dizer nada. Isso é “complexo de vira-latas”, Aníbal. Basta ver os exemplos do irlandês George Best, considerado o melhor jogador britânico da história, e do sueco Zlatan Ibrahimovic, ainda na ativa, descolando uns trocados no futebol dos EUA.
— Bom ponto. Mas o caso de Best foi de hedonismo consciente, não falta de caráter. Ele dizia: “Gastei muito dinheiro em bebida, mulheres e carros rápidos. O resto eu desperdicei”. Tanto que teve uma carreira consistente no Manchester United. Em Copa do Mundo, pela Irlanda do Norte, não dava. É diferente de Ibrahimovic, que sempre foi desagregador e nunca se firmou em clube nenhum. Na Copa da Rússia, até a seleção da Suécia, sem ninguém do mesmo nível, dispensou ele. Neymar teve uma chande no Barcelona de Messi, a quem se submeteu para jogar seu melhor futebol. E fez o quê? Desperdiçou para tentar brilhar sozinho como estrela cadente da Torre Eifel.
— Já que você agora virou feminista, e a Copa do Mundo feminina de futebol? — provocou Paulo.
— Olha, vou torcer. Mais do que pra os marmanjos da Copa América. Mas, aos 33 anos de idade, pode ser que Marta termine a carreira sem ganhar uma Copa do Mundo. O que seria uma injustiça tão grande quanto foi com Zico. Mas vale ao casal o que o Fernando Calazans escreveu: “Zico não ganhou Copa? Azar da Copa!”. No meu tempo de vida, vi três grandes camisas 10 na seleção brasileira de futebol: Zico, Rivaldo e Marta.
— Mas Ronaldinho Gaúcho ganhou a Copa do Mundo de 2002. E Neymar, a inédita medalha de ouro olímpica em 2016. E os dois usavam a 10.
— Pois é. Daí você tira o que eu vi dos três primeiros — emendou Aníbal, antes de pedir outra Original ao garçom.
Publicado hoje (09) na Folha da Manhã