“Ainda Estou Aqui”: Brasil no Oscar em domingo de carnaval
O Brasil amanheceu na quinta (23) em clima de final de Copa do Mundo, com as três indicações ao Oscar ao filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. Não só a filme internacional e atriz, categorias a que já tinha sido indicado no Globo de Ouro. Que deu prêmio inédito a um(a) brasileiro(a) com Fernanda Torres como atriz dramática. Em outro ineditismo histórico: nos 96 anos do Oscar, foi a primeira vez que uma obra do Brasil e da América do Sul foi indicada ao Oscar de melhor filme — maior prêmio da indústria do cinema de Hollywood.
Brasil a filme estrangeiro — A primeira edição do Oscar é de 1929. Mas a categoria de filme estrangeiro (depois internacional) só passou a ser entregue regularmente em 1957. Desde então, quatro filmes brasileiros foram indicados à categoria: “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte; “O Quatrilho” (1995), de Fábio Barreto; “O Que é isso, Companheiro?” (1997), de Bruno Barreto; e “Central do Brasil” (1998), outro de Walter Salles.
Fernandas, a revanche — Nenhum desses quatro filmes brasileiros levou o Oscar. Mas, em outra coincidência histórica, no último, Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, foi indicada ao Oscar de melhor atriz. Dirigida pelo mesmo Walter em “Central”, Fernandona também havia sido indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática. Se não ganhou, viu a filha disputar e conquistar, 26 anos depois, o mesmo prêmio. E dedicá-lo, emocionada, à mãe.
Melhor atriz no Globo de Ouro de 1999 — Muito se tem falado em reparação histórica de Fernandona por Fernandinha. Mas, nacionalismo e torcida à parte, de direita ou esquerda, a questão é sempre mais complexa. Fernanda Montenegro perdeu o Globo de Ouro de 1999 para a australiana Cate Blanchett. É atriz do nível da brasileira que vinha de atuação igualmente irretocável em “Elizabeth” (1998), de Shekhar Kapur.
Melhor atriz no Oscar de 1999 — No Oscar daquele mesmo ano, sim, é que as craques Montenegro e Blanchett perderiam a estatueta dourada para uma estadunidense nada mais que regular: Gwyneth Paltrow. Por sua atuação açucarada na comédia romântica “Shakespeare Apaixonado” (1998), de John Madden.
Injustiças históricas — Não foi, no entanto, a maior injustiça do Oscar. O irlandês Peter O’Toole e o ítalo-estadunidense Robert De Niro não levaram o prêmio de melhor ator por suas atuações, respectivamente, em “Lawrence da Arábia” (1962), de David Lean; e “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese. E ambas estão entre as maiores da história do cinema. Como a do suíço Bruno Ganz em “A Queda — As Últimas Horas de Hitler” (2004), de Oliver Hirschbiegel, que sequer foi indicado ao Oscar de ator. A personagem contou mais que sua visceral interpretação.
O lobby e a desgraça da Miramax — Em 1999, o que definiu o Oscar de melhor atriz a Paltrow foi o lobby financeiro da então toda poderosa produtora estadunidense Miramax. Como o de filme estrangeiro ao italiano “A Vida é Bela” (1997), de Roberto Benigni, que bateu o brasileiro “Central”. Foi antes de o fundador da Miramax Harvey Weinstein cair em desgraça em 2017, com denúncias de assédio sexual a mais de 80 mulheres na indústria cinematográfica.
O lobby e o paradoxo do “politicamente correto” — Em 2025, o lobby que prevalece há alguns anos em Hollywood é oposto: o “politicamente correto” da esquerda identitária. Que foi exportado dos EUA ao mundo, a partir dos anos 1990, com o mesmo sucesso do seu cinema. E é, paradoxalmente, a maior virtude e dificuldade a “Ainda Estou Aqui” na premiação do Oscar na noite do próximo dia 2 de março, num domingo de carnaval.
Hollywood contra Trump — Por denunciar os crimes da última ditadura militar do Brasil (1964/1985), o filme de Walter e Fernandinha, além das suas inegáveis virtudes artísticas, ganha força política. Numa Hollywood que tem se colocado, pelo menos desde 2016, como trincheira de resistência cultural à extrema direita. Que, neste 2025, inicia o ano mais empoderada do que nunca com Donald Trump de volta à presidência dos EUA.
México sem mexicanos — Pelo mesmo motivo político, também ganha força o, talvez, mais forte adversário do filme brasileiro: “Emília Pérez”, de Jacques Audiard. Produção francesa ambientada no México, o musical de comédia criminal traz atores espanhóis e estadunidenses de ascendência latina. Que, por isso, tem sido considerado estereotipado e bastante criticado pelos mexicanos. Mas colhe sucesso em festivais internacionais com sua história de um chefe do narcotráfico em sua afirmação como mulher trans, que leva a bandeira LGBTQIA+ ao Oscar.
Recordista — Além de também concorrer, como “Ainda Estou Aqui”, nas categorias de filme, filme internacional e atriz — com a espanhola Karla Sofía Gascón —, “Emilia Pérez” foi indicado em outras 10 categorias. No total de 13, foi não só o recordista da atual edição do Oscar, como o filme em língua não inglesa que até hoje recebeu mais indicações ao maior prêmio de Hollywood.
Chances a atriz — No Globo de Ouro de janeiro, que divide suas categorias entre comédia/musical e drama, quem levou como melhor atriz na primeira, por sua atuação em “A Substância”, de Coralie Fargeat, foi Demi Moore. Ela, Gáscon e a inglesa Cynthia Erivo — por “Wicked”, de Jon M. Chu — são as três mais fortes adversárias de Fernanda Torres em 2025. Ao Oscar que Fernanda Montenegro não levou em 1999.
Chances a filme e filme internacional — A inédita indicação de um filme brasileiro e sul-americano ao Oscar de melhor filme já pode ser considerada um prêmio a “Ainda Estou Aqui”. Como a toda a cultura do país e sua resistência democrática ao autoritarismo do passado mais distante e recente. Para filme estrangeiro, há chance ao Brasil. Mas o favorito político parece ser o francês trans de mexicano “Emilia Pérez”. A ver.
Indicações do Brasil ao Oscar por cineastas, atrizes e críticos de Campos
Por Joseli Matias
As três indicações do filme “Ainda estou aqui” ao Oscar também repercutiram em Campos. Profissionais ligados ao cinema avaliaram o desempenho da obra e da atriz Fernanda Torres e os reflexos para a arte brasileira e de Campos.
— A premiação já recebida no Globo de Ouro, a sua aclamação em Veneza e essas três indicações do filme, em diferentes categorias do Oscar, reafirmam internacionalmente a força artística da cinematografia brasileira. Como cineasta e produtor, destacaria em primeiro lugar que tudo isso reaproxima de forma muito afetuosa a sociedade do nosso cinema, com os nossos artistas e o fazer cinematográfico. É uma enorme alegria a gente ter como principal pauta do dia o feito internacional de um filme brasileiro. E isso é feito extraordinário, que nos enche de orgulho, afirma a nossa brasilidade e que precisa ser celebrado. A gente espera que o filme impulsione e desperte ainda mais a audiência do público com filmes brasileiros, com a nossa literatura, o teatro e as nossas artes em geral. Viva o Cinema Brasileiro! — destacou o cineasta e produtor Fernando Sousa.
Fernando espera que esse prêmio e indicações abram reflexão sobre a necessidade de ser criada uma secretaria de Cultura que se dedique ao tema da cultura, do audiovisual e da economia criativa em geral na cidade. “Contar com uma secretaria de Cultura é fundamental para que se tenha políticas públicas consistentes, estratégias articuladas de investimento público na área e para que se possa atrair novos recursos e investimentos, públicos e privados. Campos e o Norte Fluminense possuem uma diversidade potente de desenvolvimento e criações artísticas, que precisam de investimentos e reconhecimento. Para que isso aconteça precisamos de uma atuação mais articulada do poder público local. Além disso, é muito significativo que essa premiação aconteça no contexto em que estamos trabalhando na realização do Festival Internacional Goitacá de Cinema, que abrigará o Seminário de Cinema e Audiovisual do Norte e Noroeste Fluminense, o Cine Market Goitacá e um programa de formação. Essas iniciativas acontecem junto com a retomada do novo projeto da Escola de Cinema e Audiovisual, que volta a ganhar corpo na Uenf e na cidade”.
— Acordar com essa notícia foi emocionante! Foi uma surpresa sermos indicados para três categorias. Fernanda é um acontecimento. Não só pela indicação de melhor atriz, mas por sua escrita e postura como mulher humanamente engajada nas questões culturais e políticas. Fernanda entregou uma performance emocionante, cheia de silêncios e adornos que só grandes artistas sabem entregar. Depois de vivermos anos tão obscuros, assistindo ao quanto a arte e a cultura estavam fragilizadas, saber dessas indicações é um prêmio. Sinto uma festa dentro de mim quando sei que temos um filme, nosso primeiro, concorrendo ao maior prêmio da indústria cinematográfica. Isso é de extrema riqueza para o cinema nacional que bravamente resiste aos arrogantes e ignorantes que permeiam a política do nosso país. Não é apenas um filme político, mas é também. Todas as conquistas desse filme trazem à tona a importância de se investir, aqui, na nossa Campos, no audiovisual, algo tão sonhado por Darcy Ribeiro — ressaltou a atriz Adriana Medeiros.
— Hoje, o cinema brasileiro vive um momento histórico. As três indicações ao Oscar de “Ainda Estou Aqui” representam um marco, principalmente pela indicação inédita na categoria de melhor filme. Independentemente das indicações, o filme já vem sendo um marco por outros motivos, como o fato de atrair o público brasileiro para as salas de cinema e resgatar o orgulho da população pelo nosso cinema. Esse, tantas vezes criticado pelo grande público. Junto a “O Auto da Compadecida 2”, “Ainda Estou Aqui” tem sido um dos responsáveis pelo retorno do público às salas de cinema. Essas indicações reforçam esse movimento, não só pela expansão do número de salas exibindo essas produções, mas também pelo crescente interesse de um público mais engajado com as obras nacionais. O Oscar ainda exerce esse poder. Todos os anos, vários filmes brasileiros concorrem a diferentes prêmios nos maiores festivais do mundo. O Oscar talvez seja a última barreira a ser superada. Esse reconhecimento e, especialmente, o interesse renovado do público são fundamentais para o fortalecimento do cinema brasileiro como indústria. Essas indicações são uma vitória para nossa cultura e nosso cinema, que, certamente, a longo prazo, refletirão em um desenvolvimento significativo da produção nacional. Este momento de crescimento é propício para a formação de novos públicos, para o fortalecimento da indústria e, principalmente, para a criação de novas escolas de cinema e a possibilidade de inserção de disciplinas sobre a sétima arte no currículo escolar. Lembrando que a exibição de filmes nacionais agora é obrigatória em escolas da educação básica. Este momento de resgate do orgulho pelo cinema nacional, aliado ao forte engajamento na internet, demonstra que os efeitos vão além das indicações — afirmou o cineasta e crítico de cinema Felipe Fernandes.
— Inegável a importância das indicações recebidas por este filme. Além do reconhecimento da potência da arte brasileira, abrindo possibilidades para o nosso mercado de audiovisual, a seleção oportuniza também o não apagamento da memória dolorosa da ditadura do Brasil, que não pode ser esquecida. Negar a existência desses anos de torturas física e psicológica é aceitar os comportamentos indignos de grupos que querem, ainda hoje, a qualquer custo, manter seus privilégios e a impunidade para seus agentes — destacou a atriz Lúcia Talabi.
A atriz, entretanto, diz ter dúvidas se essas indicações são incentivos para que a Escola de Cinema de Campos saia do papel: “Tivemos oportunidade concreta de ter essa Escola trazida por Darcy Ribeiro através da Uenf. A ideia foi abortada e perdemos toda estrutura, inclusive os equipamentos já comprados. Até o momento, nenhuma gestão local demonstrou sensibilidade e vontade política de valorizar e fortalecer o fazer cultural de grupos, que durante muitos anos vêm trabalhando pela construção da linguagem cinematográfica na cidade”.
— Filme premiado no Globo de Ouro é indicação quase segura de que ele concorrerá ao Oscar. Por mais que Fernanda Montenegro afirme que a arte brasileira não precisa de reconhecimento acima da linha do Equador, nunca se falou tanto em “Ainda Estou Aqui” depois do prêmio nos Estados Unidos. Ele não mereceu tanto destaque com os prêmios anteriores. “Ainda estou aqui” tem qualidades indiscutíveis, mesmo que não ganhe um Oscar sequer. Mas não vejo reflexos para Campos. A Escola de Cinema da Uenf, por exemplo, não depende de Hollywood, mas de verbas e de empenho dos seus professores — ressaltou o historiador e crítico de cinema Arthur Soffiati.
Confira o trailer do filme: