Fabio Bottrel — Meritocracia Narrativa
Ainda era noite quando Jeremias fez sinal, ouviu o ruído da ferrugem tilintar diante de si, esperou a poeira de terra suja cobrir a sua vista, impregnar suas narinas e colorir o mato alto de bege, era o primeiro dos ônibus quepegaria para ganhar seu pão. Sentiu a lataria tremer ao pisar, passou seu cartão ao entrar, sentou e foi a galopar para a cidade.
— Ninguém disse que seria fácil! — Disse esse narrador para o personagem.
— Fí do cabrunco, por que me criastes pobre do mato, com as calças de carrapato, trotando que nem cavalo nessa gerigonça?!
— Meritocracia narrativa, Jeremias.
— Mas me escrevestes catando latinha desde criança, fui menino bom, ajudei minha família, tentei estudar, mas minha mãe teve menina, tive que catar mais latinha. Que raios de meritocracia é essa que uns já nascem jantando enquanto nóis inda nem tomou café da manhã? Depois vem cobrar o almoço que nóis num teve nem arroz pra fazer. Olha os calos na minha mão, seu narrador, sou gente trabaiadora, faz isso comigo não, milhora pelo menos essa coisa sobre rodas, esse troço é tão ruim que minha bunda inté sente saudade das palmadas que papai dava.
— Não dá, Jeremias. Se te escrevesse num mundo onde todos têm oportunidades perderia verossimilhança. Estamos perdendo agora mesmo, você tem de acreditar ser feliz com o cartão que acabou de passar, com o cheque que eu vou te dar e o emprego de salário mínimo foi Deus que ajudou a encontrar. Não dá para todo mundo ser feliz de verdade!
— Mas eu já sei que isso num é bão, homi!
— Então terei de refazê-lo, Jeremias, você não deu certo nesse sistema narrativo, tenho de rever a ignorância na sua construção, vai sofrer muito sem ela.
— Cê é muito ruim, fí de porco espim, deixa eu seguir assim.
— Está bem, continuemos a história…
Ao descer no centro de Campos dos Goytacazes Jeremias viu o aglutinado diário de pessoas como um formigueiro desorientado, uma esbarrando na outra, correndo buscar seu pão tal como ele. Ergueu o rosto para o céu, encheu seus pulmões com o ar poluído das vans, carros, ônibus e motos compondo com as suas buzinas nervosas uma estridente sinfonia desafinada, a qual Jeremias já se acostumara. Ajeitou seu tênis enfiando a ponta do dedo entre a meia e o pano rasgado do calçado, pois sabia o longo trajeto pela frente até chegar suado com as pernas tremendo nas longas escadas de seu trabalho…
— Ah, vai prus infernos, lamparão! Já peguei três ônibus com a bunda que nem uma paçoca e agora vou ter di andar isso tudo?! Mas nem por diacho! Fico aqui e num continuo essa história disgraçada!
— Está bem, Jeremias…
Ajeitou seu tênis enfiando a ponta do dedo entre a meia e o pano rasgado do calçado, pois sabia o longo trajeto que teria pela frente se não fosse uma boa alma montada em um fusca branco milagrosamente parar em frente ao ponto de ônibus e lhe perguntar como chegar à Praça do Liceu, estava perdida e não sabia como se encontrar. Jeremias, prestativo que é, se animou com a coincidência, trabalhava logo em frente e de pronto montou no fusca branco para guiar a alma perdida.
Sua bunda quicava ainda mais com uma mola solta…
— Óia, lamparão…
Quicava, mas era quase imperceptível… logo chegou ao seu destino. As nuvens pintavam o sol de rosa atrás das montanhas do Imbé e compunham uma obra magnífica ao iluminar a réplica autêntica do Parthenon, símbolo duradouro da Grécia e da democracia, com toda a sua imponência nas longas escadas, um dos maiores monumentos culturais da humanidade. Essa era a casa onde as pessoas representavam Jeremias.
— Seu narrador, um minuto… Há pouco tempo, logo ali no início, o sinhô disse que eu tinha di me estrupiar todo assim por cadi verossimilhança, e que disgraça é essa de quem me representa tá num negócio todo firuloso desse enquanto eu to lá no mato?! Você tá me estrupiando todo pra essa história num fazer sentido nenhum, demonho!
— Jeremias, as pessoas que estão lendo essa história vivem num mundo com um conceito distorcido de realidade, se eu for justo demais algumas coisas perdem o sentido. Permita-me continuar, por favor…
Caminhou até uma pequena sala onde ficavam suas ferramentas de trabalho, colocou seu uniforme, pegou vassoura e balde com sabão para limpar toda a sujeira daquela casa. Enquanto passava pano no chão de uma das salas junto com Sônia, sentia o cheiro forte da colônia, disfarçava e admirava suas curvas quando ela virava as costas.
— Ô Sônia, por que nóis estamos fazendo tudo trocado hoje, limpando coisa que era pra limpar depois?
— É que os que representam a gente acham que oito e meia não é hora d’eles trabalharem aqui, não. Hora de gente como aquela gente trabalhar é dez e meia.
— Uai, mai já são dez e meia, eles num tão aqui cadiquê?
— É que como tava marcado pra oito e meia, aí eles num vem.
— Coitados, eles devem ditá sofrendo com o salário igual nóis…
— Tá nada, recebe dez mil cada um!
— Uai! Mai isso é uma furtuna perto dinóis que estamos aqui! Eles devem de tá trabalhando muito mai que nóis então.
— Tá nada, dois dias da semana só!
— Mai cadiquê isso?! Essa história tá sem pé e nem cabeça!Sônia, me dá uma licencinha que eu vou dar um jeito nisso…
Jeremias larga seu material de limpeza e caminha a passos furiosos para um pequeno cômodo localizado após um grande salão, escutava o eco de suas passadas fortes enquanto certificava-se de estar sozinho pelos ambientes em que passava. Trancou a porta, a escuridão cobria sua respiração ofegante e a perna dando tremeliques. Grita para esse narrador:
— Cêtá doido, homi?! Donde já si viu personagem ter d’insinar autor a escrever?! Pois é isso que vai acontecer aqui! Como é que o sinhô bota gente que não é como a gente para representar a gente sem antes ambientar essa situação doida inté di pensar? Essa história num vai fazer sintido pra leitor ninhum!
— Jeremias, a verossimilhança é construída através da aproximação dos dois mundos, e no meu isso é algo que faz sentido.
— Isso faz sintido?
— Não é que faz sentido… as pessoas do meu mundo entendem…
— Entendem? Assim… do nada?
— Não é do nada… são mazelas de uma história de mais de 500 anos.
— Mas então… qualquer mundo que o sinhô criar pra mim vem como parâmetro esse torto seu?
— Pois é… Há certos princípios em relação ao sacrifício necessários ter em você para a construção da empatia, assim o leitor se enxerga em algumas virtudes suas e as utiliza como um álibi para não tomar a existência dele própria como vã. A arte existe porque a vida não basta, lembra-me Ferreira Gullar, um grande pensador que você não terá a oportunidade de conhecer. As pessoas do meu mundo distinguem a felicidade por conhecerem o sofrimento, terei de te humanizar em qualquer mundo que eu crie, independente da forma física dele e sua.
— Seu narrador, o sinhô mi disculpa, mai eu num tenho culpa do mundo do sinhô tá assim não, eu mereço um mundo mió. Se for pra ficar nessa estrupiação toda eu prefiro num existir.
— Tem razão, Jeremias. Você merece um mundo melhor…
— Seu narrador, o sinhô mi disculpa mais uma vez,num me fizestes com muito conhecimento, mai não é difíci di perceber que se o mundo do sinhô tá esquisito assim, o leitor veio aqui pra fugir e o sinhô escrevendo isso só piora a coisa…
Jeremias esperou que eu respondesse, ele não conseguia enxergar seu corpo no escuro, no meiodo silêncio escutava uma goteira cair lentamente enquanto sentia seus dedos enrolando a ponta da camisa como uma criança envergonhada prestes a pedir desculpas.
— Seu narrador, o sinhô deixa eu deixar de existir?
Enquanto uma lágrima caía ele me esperava impaciente…
— Deixa?
— Deix
— Dei
— De
— D
—
Essa é uma história fictícia e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.