Campos dos Goytacazes, 29/06/2018
Homenagem de Leonardo Bacelar a Pedro Otávio
Ao meu pedido, feito ontem na sede da Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia, o velho colega de escola, hoje Dr. Leonardo Bacelar, enviou hoje por e-mail o discurso que escreveu e leu em homenagem a Pedro Otávio Enes Barreto. Abaixo da foto, segue a transcrição…
Pedro,
A Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia tem o orgulho de lhe conceder a homenagem de médico do ano (2011).
Quando eu retornei para Campos, há cerca de 10 anos, vim para exercer clínica médica e geriatria e acabamos por “dividir” pacientes seus que internavam no Hospital Pró Clínicas.
Vi nesses pacientes a imensa satisfação em responder a pergunta, O Sr. tem algum médico?
Dr. Pedro Otávio!
E até hoje, ainda temos diversos pacientes em comum, e todos, são extremamente fiéis a você e demonstram o carinho com que você os trata.
Como Paracelso (1450-1541) disse: “A medicina não é apenas uma ciência, mas também uma arte. Ela não consiste em compor pílulas, emplastros e drogas de todas as espécies; trata, ao contrário, dos processos da vida, que devem ser compreendidos antes de ser orientados. Uma vontade poderosa pode curar, num caso em que a hesitação, ou a dúvida, podem desembocar em fracasso. O caráter de um médico pode atuar mais poderosamente sobre o enfermo que todas as drogas empregadas”.
“Não é o diploma médico, mas a qualidade humana, o decisivo”. (Carl Gustav Jung)
Assim é você, Pedro!
Mas, é preciso continuar a luta…
As suas esperanças em vez de se perderem nas apreensões de cada instante, mais devem se avivar, para que possa cumprir a penosa missão na “arte de curar”.
Os conselhos, as curas, os desvelos, os sofrimentos curáveis ou incuráveis, todos constituem, como num desenho, a forma do coração humano, onde está inscrito o Amor ao Doente.
O médico vive com a Dor. Trabalha contra a Dor. Descansa ouvindo a Dor.
Se padecer o cliente do corpo ou da mente, é sempre Dor. Dor no corpo, Dor na alma.
A máxima de Hipócrates está sempre presente no ato médico:
“Sedare Dolorem Opus Divinum Est” (“Sedar a Dor é obra Divina”).
Parabéns, Pedro! Você é um vencedor!
Quando a busca é o outro
“Pois que, eu essência, não habito
Vossa arquitetura imerecida;
Meu Deus e meu conflito”
(carlos drummond de andrade)
sétimo selo
há os dias em que busco Deus
há aqueles em que topo o dedão
e O chamo de filho da puta
mas guardo na cômoda, por utopia
um pequeno grão de mostarda
e o amor da carpintaria
eu, quase sempre distante
como filho criado por outros
numa ilha sem fé no mar
e às vezes, meu Deus, tão seu íntimo
agarrado como uma criança
a quem a salvou de se afogar
minha imagem e semelhança?
falho demais para meu Deus
— teria mais em conta um gorila
ou a árvore que o aproxima do céu
caminho em sua vida
abençoado por sua sorte
encontro marcado com a morte
delirando chorar como hamlet
na certeza química dos anjos
nas dúvidas de antonius block
campos, 11/12/06
“O país não descoberto, de cujos confins/ Jamais voltou nenhum viajante”. Pela boca do príncipe Hamlet, em meio ao conhecido monólogo do “Ser ou não ser” (Ato III, cena 1), é assim que o dramaturgo William Shakespeare define a morte.
Desde o início do séc. 17, quando a mais famosa tragédia foi escrita, muito se tem debatido sobre o paradoxo da definição, proferida pelo atormentado príncipe num momento da peça em que ele já tivera contato com o fantasma do pai. Por óbvio, como “jamais voltou nenhum viajante”, após o espectro do rei surgir no mundo dos vivos para revelar ao filho homônimo que fora assassinado?
Da arte à vida que a imita, quem de fato já encarou a morte, e pode voltar com sua lembrança, não guarda dúvida sobre o divisado pelos olhos que transcendem à própria cara. Passa-se a integrar uma categoria diferente de gente — nem melhor, nem pior, mas diferente. Distinto à grande maioria dos que vivem, só a partir do renascimento se dá a gênese do sobrevivente, “viajante” sorteado com bilhete de ida e volta à fronteira do tal “país não descoberto”.
Todos que lá estiveram guardam suas cicatrizes. Não necessariamente visíveis em plano físico, embora sempre tangíveis diante de um igual em experiência.
Há pouco mais de seis anos, logo depois que comecei a namorar Lívia, minha esposa, conheci seu pai, Pedro Otávio Enes Barreto, Dr. Pedrinho dos amigos, vovô Pedinho da pequena Maria Eduarda. Se de cara distingui nele um igual, não demorou muito para que descobrisse se tratar de um tipo ainda mais especial de sobrevivente.
Do meu encontro com a morte, aos 19 anos, ficaram um buraco no lugar de testa e um apego radical a determinados valores pessoais, aos quais me agarrei para continuar vivo e busquei manter a despeito de qualquer necessidade de simpatia ou aceitação. Por sua vez, em Pedrinho, com apenas 16 anos, embora as consequências físicas tenham sido piores, aquelas operadas em seu caráter foram melhores, muito melhores.
Após mais de um ano integralmente submetido ao mais árduo trabalho de fisioterapia para tornar a andar, Pedrinho voltou a fazê-lo com limitações motoras. Diante delas, no lugar de se bastar em conceitos abstratos e ensimesmados, soube comungar sua própria luta pela vida numa peleja real por qualquer outra. Se a medicina e sua força de vontade o fizeram caminhar novamente, ele iria usar ambas, como as duas pernas, para fazer o mesmo por quem pudesse.
Quando o conheci, Pedrinho já era um dos clínicos gerais e geriatras mais conceituados de Campos. Ainda assim, acumulava seu concorrido consultório particular com a função de médico público municipal, professor da Faculdade de Medicina e diretor clínico do Hospital Manoel Cartucho. E, mesmo andando com o auxílio da surrada e inseparável muleta, nunca buscou esta em ninguém para deixar de cumprir sozinho os afazeres diários, guiando o próprio carro entre tantas frentes de trabalho e sua casa, da qual saía quase sempre de manhã cedo, para só regressar tarde da noite.
A medicina pública, na qual diz ter se dado sua verdadeira formação profissional, não teria exercício exclusivo no cargo conquistado mediante concurso. Também na prática privada, nunca se furtou em atender quem não pudesse pagar pela atenção de um profissional do seu nível. A muitos pacientes carentes, chegou por incontáveis vezes a fornecer acesso aos remédios que receitava, por meio de amostras grátis recebidas dos laboratórios.
Mesmo com a labuta incessante pela vida alheia, não se furtou em viver intensamente a sua própria. Amigo de primeira hora e necessidade de todos seus muitos amigos, nunca deixou de cultivá-los ou construir novos, em torno da mesa da sua casa, indiscriminadamente aberta a todos, ou nas dos restaurantes, bares e botequins. Afinal, como o poetinha Vinícius de Moraes, Pedrinho também “nunca viu uma boa amizade nascer em leiteria”.
A humanização que pregou à exaustão no exercício da medicina, sobretudo em sua atividade no magistério, era só uma extensão de todas as demais relações mantidas com seus semelhantes.
Por todos estes motivos e outros também, Pedrinho recebeu ontem o título de médico do ano pela Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia. Num auditório que o recebeu com palmas e ao final o ovacionou de pé, a entrega foi precedida pela fala de três colegas: Leonardo Bacelar, Makhoul Moussallém e Luiz Carlos Sell.
O primeiro deu o testemunho do pavor de uma paciente, ao saber, numa necessidade eventual, que não seria atendida por Pedrinho. Já o último fez a pertinente lembrança a Luiza Helena, minha sogra, para ressaltar que nenhum guerreiro lutaria com tanta coragem, diante de tantas dificuldades, se não tivesse ao lado uma camarada em armas da mesma têmpera.
Todavia, na minha opinião, partiu de Makhoul a definição mais precisa daquilo que todos que estavam ali, sentiam e sentem em relação ao homenageado da noite de terça. Antes de fechar sua fala com a aparência de superlativo, ao afirmar que Pedrinho não é o médico do ano, mas do século, o orador egresso de uma raça milenar endossou que sempre quando se vê diante de alguma dificuldade na vida e pensa em esmorecer, ministra para si mesmo a cura ao se mirar no exemplo do ex-paciente, ex-aluno e colega de lida.
Numa dessas coincidências da vida, daquelas que Nietzsche dizia não haver enquanto coincidências, Makhoul foi o neurologista que salvou a vida de Pedrinho e, anos depois, a minha. Se poucos, como nós dois, tiveram a sorte de ir e voltar, menos ainda, como ele, são os que dedicaram esse retorno à missão de adiar a inexorável partida daqueles que o cercam.
Pedrinho ensinou meu filho, a quem ele e Luiza adotaram como neto, a jogar xadrez. Ícaro já era fascinado pelo jogo desde que assistimos juntos a “O Sétimo Selo”, clássico do cinema de Ingmar Bergman, no qual o cavaleiro medieval Antonius Block, na pele do ator Max Von Sydow, assim que retorna das Cruzadas na Terra Santa para uma Europa arrasada pela peste, encontra a Morte, a quem propõe uma partida de xadrez, visando mais tempo à busca dos questionamentos existenciais aos quais, como Hamlet, dedicou sua vida sem achar respostas.
Com a modéstia do plebeu a humanizar uma alma das mais nobres, a busca de Pedrinho, após seu encontro com a morte, teve resposta pronta a indagações menos pretensiosas. Seu jogo, a partir dali, passou a ser estender a mão a quem estava do outro lado deste tabuleiro de nós todos e simplesmente precisava de ajuda.
Meio pai e meio irmão, meu e de outros tantos, é o melhor homem que já conheci.
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